Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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“Compramos e Vendemos Sentimentos” critica consumismo

Produtos audiovisuais de língua portuguesa estão inovando a forma de abordar a sociedade de consumo. Fugindo da habitual crítica do ter-que-substitui-o-ser (que se tornou clichê no momento em que a moderna publicidade absorveu a crítica e transformou a imagem do consumo em atividade “consciente”, “sustentável” e “espiritualizada”), o curta “Compramos e Vendemos Sentimentos”, trabalho de conclusão de curso de Cinema da Universidade Lusófona de Lisboa, apresenta uma nova abordagem crítica ao consumismo: uma sociedade mecanizada e futurista onde as pessoas para poderem ir e vir têm de se vender. São viciadas em sentimentos e têm de trocá-los para adquirirem o que querem. Veja o curta.

Por muito tempo a crítica mais comum à sociedade de consumo sempre foi de que é uma sociedade de alienação e de espetáculo, onde o ter substitui o ser. Mas a indústria publicitária e o consumismo evoluíram e incorporaram essas críticas quando se tornaram mais “espiritualizadas”: parece que assimilaram todas as críticas feitas a ela ao longo da história (consumismo, superficialidade, frivolidade, materialismo etc.) e agora procura demonstrar através de um novo discurso que mudaram, se espiritualizaram e não veem mais o consumo como mero ato de aquisição, mas de enriquecimento espiritual.

Tendências como o chamado “consumo consciente”, “sustentável” e todo um discurso motivacional e ético que envolve agora o ato da compra (o consumo muito menos como um ato de acúmulo e ostentação e mais como uma oportunidade de buscar uma espécie de atalho para a iluminação espiritual – comprar-consumir-espiritualizar-se) parece dominar a linguagem publicitária.

Por isso poucos filmes sobre o tema consumismo conseguem escapar do lugar comum do ter-que-substitui-o-ser, incorrendo no moralismo de que todo o problema da sociedade do consumo está no excesso, na compra de bens supérfluos e nos problemas ambientais decorrentes. Filmes como Sex and the City (2008), Delírios de Consumo (2009) ou mesmo documentários como Super Size Me (2004) ou Surplus (2003) ficam nos aspectos mais evidentes do problema como o excesso, a viciosidade, o terrorismo publicitário e as questões ecológicas.

Filmes mais diferenciados como Amor Por Contrato (2009), Crazy People (1990) ou Como Fazer Carreira em Publicidade (1989) ainda permanecem no campo da persuasão subliminar da linguagem publicitária e do Marketing.

Talvez a novidade crítica em relação à nova fase da sociedade de consumo venha de produções audiovisuais em língua portuguesa. O Filme 1,99: Um Supermercado que Vende Palavras (2003) de Marcelo Masagão foi uma novidade ao tratar o consumo não mais como um ato de compra pura e simples, mas como uma forma fetichista de aquisição de valores abstratos: ideias, motivações, sentimentos, etilos de vida etc. Pessoas entram em um estranho supermercado onde os produtos estão vazios. As pessoas apenas compram as palavras que estão nas embalagens. Nesse filme, Masagão foi mais além: mesmo aqueles que teoricamente estão excluídos do consumo (no filme, aqueles que estão perambulando como zumbis fora do mercado) “consomem” os produtos enquanto desejam, invejam e tentam imitar adquirindo produtos piratas.

O curta “Compramos e Vendemos Sentimentos”

A outra novidade é o curta português Compramos e Vendemos Sentimentos (2007), trabalho de final de curso de alunos do curso de Cinema, Vídeo e Comunicação Multimídia da Universidade Lusófona em Lisboa, Portugal. Dirigido por Vitor Pedrosa e Francisco Souza, lembra bastante o argumento do filme de Masagão. O curta é ambientado em uma sociedade mecanizada e futurista onde as pessoas para poder ir e vir têm de se vender. São viciadas em sentimentos e têm de trocá-los para adquirirem o que querem. O espectador acompanha essa história por um fio condutor, que é o personagem principal, Lúcio, que um dia tenta mudar a forma de pensar daquela sociedade, com um sentimento que não se sabe ao certo qual é.

Nessa sociedade existem espécies de shopping centers bem incomuns: formam-se filas em guichês para se vender e comprar sentimentos. Nesses guichês formam-se filas com vários tipos de pessoas: o velho que quer vender tristeza, o jovem obeso que quer comprar controle… Lúcio está na fila das vendas e quando, chega a sua vez, tenta vender todos os seus sentimentos, colocando uma grande porção de confeitos (no curta os sentimentos são representados por confeitos) em cima da mesa do atendimento. O empregado justifica que não está autorizado a vender um número tão elevado de sentimentos e ameaça chamar a Segurança . No meio da discussão surge uma misteriosa garota que decide ficar com todos os sentimentos de Lúcio, entregando um único sentimento em troca.

A cenografia branca, em fundo infinito e com uma fotografia e décor assépticas tal como um hospital faz lembrar do filme brasileiro 1,99. E o mesmo enfoque abstrato, fetichista e metafísico da sociedade de consumo: não compramos mais coisas (roupas, carros ou comida), mas abstrações, sentimentos, valores como o denominador comum de tudo. Tal como em 1,99, as pessoas vagam como zumbis pelo shopping, com suas roupas cinzas, pretas e brancas, sem cor ou vida. Precisam comprar motivação, élan para viver.

É marcante no curta como os sentimentos são representados: por confeitos. Nada mais descartável do que ser representado por um junky food, símbolo da viciosidade e compulsão: assim como o consumo das drogas onde na primeira vez que é consumida “batem” muito rápidas proporcionando grande prazer, para depois serem consumidas de novo em busca da sensação da primeira vez que nunca mais será alcançada – condição para se criar o ciclo vicioso do consumo até a overdose.

 A virtude tanto do 1,99 de Masagão quanto o brilhante trabalho de conclusão de curso da Universidade Lusófona é conseguir representar audiovisualmente um tema tão abstrato quanto a “espiritualização” atual da sociedade de consumo. Talvez seja por isso que o cinema continue a abordar o tema consumismo pelo seu aspecto mais visível, porque filmicamente é mais fácil de representar por meio do exagero da compra de produtos tangíveis.

 

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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