Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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Curta “Rabbit and Deer” atualiza a Alegoria da Caverna de Platão

O que aconteceria se indivíduos que vivem em um mundo plano e bidimensional acidentalmente descobrissem que existe um universo alternativo tridimensional, até então invisível para eles? Qual a reação deles ao descobrir que seu mundo plano não passa de um fino papel que esconde uma vasta realidade tridimensional? Essa é a proposta de um surpreendente curta de animação húngaro “Rabbit and Deer” (2013) com mais de 100 prêmios em festivais por todo o mundo. O curta faz uma releitura da Alegoria da Caverna de Platão por um ponto de vista dimensional – mais uma evidência de como cresce a sensibilidade gnóstica na indústria do entretenimento atual, desde que a Relatividade e a Mecânica Quântica atualizaram na ciência antigas mitologias gnósticas. 

O leitor deve conhecer a Alegoria da Caverna de Platão, onde o filósofo descreve a situação em que a humanidade se encontra e a proposta de um caminho de salvação: a crença de que o mundo revelado pelos nossos sentidos não é o mundo real, mas apenas uma pálida cópia – a condição humana seria como a de prisioneiros acorrentados em uma caverna vendo sombras  projetadas na parede de objetos que passam diante de um fogo atrás deles. As sombras são tão próximas que passam a designar nomes para elas e toma-las como fossem a própria realidade.

Agora imagine essa alegoria por um ponto de vista dimensional: os homens acorrentados e as sombras pertenceriam a um mundo bidimensional, enquanto o fogo e os objetos que passam diante dele estão no plano tridimensional – mesmo que se virassem, seres da segunda dimensão seriam incapazes de verem o fogo ardente tridimensional. Platão dizia que o brilho do fogo os cegaria. Do ponto de vista dimensional, a tridimensionalidade simplesmente se tornaria invisível para esses seres planos prisioneiros das suas correntes em duas dimensões.

O curta de animação Rabbit and Deer (2013, assista ao vídeo abaixo) do roteirista e diretor húngaro Péter Vácz faz esse nova interpretação da alegoria da caverna, seguindo uma tendência atual nas animações onde em forma e conteúdo cada vez mais flertam com temas gnósticos ou místicos: metalinguagem, narrativa em abismo, criação de mundos dentro de mundos de onde protagonistas tentam escapar etc. – The Paiting (Le Tableau, 2013), MuppetsAlma (2009) ou mesmo uma animação mainstream como Lego Movie (2014) são alguns exemplos.

 

O curta de Vácz já foi exibido em 63 países em mais de 300 festivais ganhando 125 prêmios.

Rabbit and Deer foi um trabalho de conclusão na Universidade de Arte e Design MOME de Budapest. Segundo Vácz, na época vivia um tenso relacionamento amoroso ao mesmo tempo em que explorava diferentes técnicas de animação. Somou-se a esse contexto o gosto por um programa de computador que criava avatares baseado em animais a partir dos dados de personalidade do usuário. Desse mix existencial com alusões filosóficas geek, surgiu a inspiração para Rabbit and Deer (Coelho e Cervo). 

O Cubo de Rubik e a Terceira Dimensão

O curta parte de protagonistas que de repente passam a viver em mundos dimensionais diferentes, mas que tentam, de alguma maneira, conviverem e tocarem a vida. Temas como a Caverna de Platão, universos paralelos e incomunicabilidade nos relacionamentos atuais se misturam numa metalinguagem do próprio universo das técnicas de animação: como uma narrativa pode combinar simultaneamente técnicas de desenho plano 2D, aquarela 2D, stop motion e desenhos em 3D. 

 

 Um coelho e um cervo vivem juntos e felizes em uma casa em um universo plano em 2D, até entrarem numa disputa pelo controle do controle remoto da TV. O conflito leva à queda e destruição da televisão… até que a última imagem que aparece na tela antes de quebrar definitivamente é um cubo de Rubik (ou “cubo mágico”) desenhado em 3D que desaparece em poucos segundos. 

O cervo fica obcecado por aquela figura fugaz, e tenta encontrar a fórmula do 3D em um mundo 2D. Isola-se na leitura de pilhas de livros e pesquisas em um laptop, enquanto o coelho irrita-se até que um novo conflito criará um novo acidente: eletrocutado pelo laptop, o cervo então é projetado magicamente para o universo 3D – transforma-se em um boneco em stop motion que observa o antigo universo 2D como um desenho em uma parede de papel que parece esconder uma realidade além.

Torna-se invisível ao seu amigo coelho 2D ao vê-lo a partir de uma espécie de fundo infinito branco onde encontra-se. Mas sabe que terá de furar aquele papel do universo 2D para conhecer uma estranha realidade 3D que está além…

A sensibilidade gnóstica

O fascinante no curta de Péter Vácz é que tanto o conteúdo quanto a forma da narrativa permitem diversas interpretações. 

O argumento de Rabbit and Deer é claramente inspirado no gnóstico filme A Vida em Preto e Branco (Pleasentville, 1999) onde após dois irmão brigarem pela posse do controle remoto são projetados para o interior de uma série de TV em pb dos anos 1950 – o confronto era entre os universos colorido atual e preto e branco do passado e as implicações místicas e religiosas disso.

 Uma primeira interpretação é que Vácz transpõe o argumento de 1999 para um conflito interdimensional: um mundo tridimensional seriam invisível para seres de um mundo plano. Como superar a barreira? Vácz sugere que a força do amor, amizade e tolerância ajudariam a superar a interdição. A mesma mensagem da produção Interestelar (Interstellar, 2014) de Christopher Nolan onde o amor e entrelaçamento quântico aproximam as distâncias interdimensionais.

Péter Vácz

O curta sugere o tema da incomunicabilidade das relações humanas como originada no conflito de pessoas como universos fechados em si mesmos, como dimensões invisíveis entre si.

A segunda interpretação é metalinguística – Vácz parece fazer uma narrativa dentro de outra narrativa:  a criatividade baseada na tensão estética das diversas técnicas de animação. Vácz parece propor desconstruir as diferentes linguagens em desenho e animação diante do espectador, assim como Lego Movie faz – grande parte da narrativa desse filme baseia-se em brincadeiras com a própria natureza do brinquedo Lego: os diferentes mundos que é possível fazer com o jogo como diferentes universos separados entre si.

Essa interpretação conduz logicamente para outra: a interessante versão da Alegoria da Caverna de Platão proposta por Rabbit and Deer. Certamente essa versão está impregnada com a sensibilidade neoplatônica (ou gnóstica) atual que começa no mundo da Física teórica e termina nas sci fi da indústria do entretenimento.

Física e Gnosticismo

Por exemplo, a chamada Teoria Kaluza-Klein (KK Theory) procura unificar a teoria da gravitação e eletromagnetismo em torno de uma ideia de uma outra dimensão que existiria para além do espaço-tempo habitual – altura, largura, profundidade e tempo.

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Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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