Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
[email protected]

Deus Está Morto no Filme “Zardoz”

 

“Esquisito”, “pretensioso”, incompreensível”, “kitsch”. Mesmo após 38 anos muitos que assistem ao clássico de ficção científica  “Zardoz” (1974) ainda têm algumas dessas opiniões. Mais ainda, muitos não conseguem compreender o tom da narrativa: será uma sátira, um drama, uma tragicomédia? Um filme estranho por apontar para um novo modelo de ficção científica para a época, não mais utópico ou distópico, mas “hipo-utópico”: chegamos ao futuro e ele não mais existe. Uma elite encontra a imortalidade e descobre que Deus é um artifício: uma cabeça de pedra voadora que comanda o extermínio de humanos para extirpar o mal da face da Terra.

O filme dirigido por John Boorman (“O Exorcista II-O Herege” e “Excalibur”) é marcado por duas imagens bizarras: uma gigantesca cabeça de pedra voadora que diz ser o deus Zardoz e Sean Connery (à época com 43 anos) fazendo um personagem brutal, trajando uma espécie de tanga vermelha, um par de botas até os joelhos, com uma arma na mão e uma longa cabeleira com trança, ou seja, o oposto da imagem sofisticada e sexy que o imortalizou como James Bond nos anos 60.

Após ver o fracasso do projeto de uma adaptação cinematográfica do livro de J.R.R. Tolkien “O Senhor dos Anéis”, John Boorman escreveu o roteiro de “Zardoz” carregado de simbologia mística e esotérica e com uma ácida crítica ao papel da religião como forma de dominação. Com um orçamento baixíssimo e roteiro repleto de sequências e ideias surreais, o resultado foi uma direção de arte que chega ao mal-gosto e até roupas de extras tingidas para reaproveitar os figurinos. 

Para compreendermos o porquê da estranheza que “Zardoz” provoca até hoje, temos que inserir o filme dentro de um especial tipo de subgênero sci fi pós-moderno: o que poderíamos chamar de “hipo-utopia”, para distinguir de termos como distopia e da própria utopia.

Mas em primeiro lugar vamos à sinopse: “Zardoz” é ambientado em um futuro pós-apocalíptico onde a humanidade está dividida em três grupos: abaixo estão os “Brutais”, grupos de sobreviventes desesperados e famintos. São perseguidos pelo outro grupo, os Exterminadores, cuja função é “limpar” o planeta dos seres humanos impedindo que se reproduzam. Os Exterminadores são comandados pelas vozes provenientes de uma cabeça voadora, o deus Zardoz, que fornece armas para os Exterminadores executarem seu serviço. “Arma é boa, o pênis é mal, assim disse Zardoz”, diz a cabeça de pedra para os extasiados exterminadores liderados por Zed (Sean Connery).

Na verdade a cabeça de pedra é um artifício criado por uma elite de Imortais que vive numa terra idílica, o Vortex: uma terra com paz, abundância, conhecimento e imortalidade. Como seres imortais, o sexo foi abolido como desnecessário. Controlam o “deus” Zardoz para incutir o temor religioso nos Exterminadores para que, dessa forma, eliminem os “brutais” da face da Terra e evitem que a “ameaça humana” prolifere-se.

Zed secretamente viaja no interior da cabeça de pedra de Zardoz para descobrir quem controla os deuses e encontrar a verdade no Vortex: esse paraíso hermeticamente fechado é tão estagnado e estéril que o tédio está se estendendo entre seus habitantes como uma doença. É um mundo anêmico onde todos passam o tempo fazendo pães e em discussões acadêmicas. Sem vontade de viver, os “dissidentes entediados” são confinados como loucos em uma espécie de hospital psiquiátrico. A única coisa que desejam é alguém que lhes devolva a bênção da morte para se libertarem.

O Sci-fi sem futuro

A Ciência e o Racionalismo da Modernidade criou o gênero Ficção Científica com seus mundos utópicos no futuro, com design arrojado, clean, asséptico, com máquinas e tecnologias cujas funções são aprimoramentos das tecnologias atuais (carros que voam, medicina que cura todas as doenças, prédios que alcançam as nuvens etc.). Dentro da modernidade a utopia criou o seu oposto, a distopia ou antiutopia. Obras como “1984” de George Orwell ou “Admirável Mundo Novo” de Aldous Huxley vão apresentar mundos futuros onde os aprimoramentos tecnológicos foram tão perfeitos que mostram a face da desumanização, controle e autoritarismo. Tal avanço tecnológico somente pode ser comandado por Estados totalitários e elites insensíveis. 

Ao contrário, a partir do filme “Planeta dos Macacos” (1968) temos uma ficção científica paradoxal: embora seja um gênero baseado na ideia de futuro, a partir desse filme temos um enfraquecimento da percepção futurista modernista. Chegamos ao futuro, mas ele não existe, é pós-apocalíptico. A questão não é mais a desumanização provocada pela hipertrofia tecnológica. Ou a tecnologia destruiu a própria realidade (“Matrix”, 1999) ou a humanidade (no caso de “Zardoz” ou “Mad Max” – 1979) ou, então, a tecnologia tornou-se inoperante e falha com naves infectas de umidade e formas de vida assassinas (“Alien”, 1979) e cidades em constantes trevas e chuva ácida (“Blade Runner”, 1982).

É a ficção científica pós-moderna caracterizada pelo que podemos chamar de “Hipo-utopia”. “Hipo” no sentido de “insuficiência”, “posição inferior” + “topia” do grego “topus”, “lugar”. Na Hipo-utopia o futuro tal qual previsto nas utopias científicas e tecnológicas modernistas não se realizou, nem nos seus aspectos positivos (utópicos) ou negativos (distópicos). Mais do que isso, a distopia agora é ontológica: o protagonista sempre experimentará uma reviravolta ao descobrir que a realidade em que vive é ilusória. Em outras palavras, a noção de lugar ou realidade enfraquece-se para no lugar se impor a simulação, o artifício ou simplesmente a alucinação.

Em “Zardoz” temos o primeiro modelo mais acabado da hipo-utopia iniciada com “Planeta dos Macacos”: assim como o astronauta Taylor descobre ao final que ele não estava em outro planeta, mas na próprio planeta Terra em um futuro pós-apocalipse, Zed vai descobrir que Deus era um artifício (na verdade a contração do título do livro “WiZARD of OZ”= Zardoz) e que a própria realidade é uma simulação proporcionada pelo esquecimento auto-imposto pelos próprios Imortais no Vortex.

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador