“Esquisito”, “pretensioso”, incompreensível”, “kitsch”. Mesmo após 38 anos muitos que assistem ao clássico de ficção científica “Zardoz” (1974) ainda têm algumas dessas opiniões. Mais ainda, muitos não conseguem compreender o tom da narrativa: será uma sátira, um drama, uma tragicomédia? Um filme estranho por apontar para um novo modelo de ficção científica para a época, não mais utópico ou distópico, mas “hipo-utópico”: chegamos ao futuro e ele não mais existe. Uma elite encontra a imortalidade e descobre que Deus é um artifício: uma cabeça de pedra voadora que comanda o extermínio de humanos para extirpar o mal da face da Terra.
O filme dirigido por John Boorman (“O Exorcista II-O Herege” e “Excalibur”) é marcado por duas imagens bizarras: uma gigantesca cabeça de pedra voadora que diz ser o deus Zardoz e Sean Connery (à época com 43 anos) fazendo um personagem brutal, trajando uma espécie de tanga vermelha, um par de botas até os joelhos, com uma arma na mão e uma longa cabeleira com trança, ou seja, o oposto da imagem sofisticada e sexy que o imortalizou como James Bond nos anos 60.
Após ver o fracasso do projeto de uma adaptação cinematográfica do livro de J.R.R. Tolkien “O Senhor dos Anéis”, John Boorman escreveu o roteiro de “Zardoz” carregado de simbologia mística e esotérica e com uma ácida crítica ao papel da religião como forma de dominação. Com um orçamento baixíssimo e roteiro repleto de sequências e ideias surreais, o resultado foi uma direção de arte que chega ao mal-gosto e até roupas de extras tingidas para reaproveitar os figurinos.
Para compreendermos o porquê da estranheza que “Zardoz” provoca até hoje, temos que inserir o filme dentro de um especial tipo de subgênero sci fi pós-moderno: o que poderíamos chamar de “hipo-utopia”, para distinguir de termos como distopia e da própria utopia.
Mas em primeiro lugar vamos à sinopse: “Zardoz” é ambientado em um futuro pós-apocalíptico onde a humanidade está dividida em três grupos: abaixo estão os “Brutais”, grupos de sobreviventes desesperados e famintos. São perseguidos pelo outro grupo, os Exterminadores, cuja função é “limpar” o planeta dos seres humanos impedindo que se reproduzam. Os Exterminadores são comandados pelas vozes provenientes de uma cabeça voadora, o deus Zardoz, que fornece armas para os Exterminadores executarem seu serviço. “Arma é boa, o pênis é mal, assim disse Zardoz”, diz a cabeça de pedra para os extasiados exterminadores liderados por Zed (Sean Connery).
Na verdade a cabeça de pedra é um artifício criado por uma elite de Imortais que vive numa terra idílica, o Vortex: uma terra com paz, abundância, conhecimento e imortalidade. Como seres imortais, o sexo foi abolido como desnecessário. Controlam o “deus” Zardoz para incutir o temor religioso nos Exterminadores para que, dessa forma, eliminem os “brutais” da face da Terra e evitem que a “ameaça humana” prolifere-se.
Zed secretamente viaja no interior da cabeça de pedra de Zardoz para descobrir quem controla os deuses e encontrar a verdade no Vortex: esse paraíso hermeticamente fechado é tão estagnado e estéril que o tédio está se estendendo entre seus habitantes como uma doença. É um mundo anêmico onde todos passam o tempo fazendo pães e em discussões acadêmicas. Sem vontade de viver, os “dissidentes entediados” são confinados como loucos em uma espécie de hospital psiquiátrico. A única coisa que desejam é alguém que lhes devolva a bênção da morte para se libertarem.
O Sci-fi sem futuro
A Ciência e o Racionalismo da Modernidade criou o gênero Ficção Científica com seus mundos utópicos no futuro, com design arrojado, clean, asséptico, com máquinas e tecnologias cujas funções são aprimoramentos das tecnologias atuais (carros que voam, medicina que cura todas as doenças, prédios que alcançam as nuvens etc.). Dentro da modernidade a utopia criou o seu oposto, a distopia ou antiutopia. Obras como “1984” de George Orwell ou “Admirável Mundo Novo” de Aldous Huxley vão apresentar mundos futuros onde os aprimoramentos tecnológicos foram tão perfeitos que mostram a face da desumanização, controle e autoritarismo. Tal avanço tecnológico somente pode ser comandado por Estados totalitários e elites insensíveis.
Ao contrário, a partir do filme “Planeta dos Macacos” (1968) temos uma ficção científica paradoxal: embora seja um gênero baseado na ideia de futuro, a partir desse filme temos um enfraquecimento da percepção futurista modernista. Chegamos ao futuro, mas ele não existe, é pós-apocalíptico. A questão não é mais a desumanização provocada pela hipertrofia tecnológica. Ou a tecnologia destruiu a própria realidade (“Matrix”, 1999) ou a humanidade (no caso de “Zardoz” ou “Mad Max” – 1979) ou, então, a tecnologia tornou-se inoperante e falha com naves infectas de umidade e formas de vida assassinas (“Alien”, 1979) e cidades em constantes trevas e chuva ácida (“Blade Runner”, 1982).
É a ficção científica pós-moderna caracterizada pelo que podemos chamar de “Hipo-utopia”. “Hipo” no sentido de “insuficiência”, “posição inferior” + “topia” do grego “topus”, “lugar”. Na Hipo-utopia o futuro tal qual previsto nas utopias científicas e tecnológicas modernistas não se realizou, nem nos seus aspectos positivos (utópicos) ou negativos (distópicos). Mais do que isso, a distopia agora é ontológica: o protagonista sempre experimentará uma reviravolta ao descobrir que a realidade em que vive é ilusória. Em outras palavras, a noção de lugar ou realidade enfraquece-se para no lugar se impor a simulação, o artifício ou simplesmente a alucinação.
Em “Zardoz” temos o primeiro modelo mais acabado da hipo-utopia iniciada com “Planeta dos Macacos”: assim como o astronauta Taylor descobre ao final que ele não estava em outro planeta, mas na próprio planeta Terra em um futuro pós-apocalipse, Zed vai descobrir que Deus era um artifício (na verdade a contração do título do livro “WiZARD of OZ”= Zardoz) e que a própria realidade é uma simulação proporcionada pelo esquecimento auto-imposto pelos próprios Imortais no Vortex.
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