Letícia Sallorenzo
Letícia Sallorenzo é Mestra (2018) e doutoranda (2024) em Linguística pela Universidade de Brasília. Estuda e analisa processos cognitivos e discursivos de manipulação, o que inclui processos de disseminação de fake news.
[email protected]

Dicionários malvados?, por Letícia Sallorenzo

Toda e qualquer palavra utilizada metaforicamente para explicar uma mulher vai fazer referência ou à prostituição ou à objetificação dela.

Dicionários malvados?

por Letícia Sallorenzo – a Madrasta do Texto Ruim

“Ain, o tissionário tis qui professora é sinonimo ti prostituta, naum costei tisso”

Gente, o que está acontecendo com vocês?!?!?!?!

Toda e qualquer palavra utilizada metaforicamente para explicar uma mulher vai fazer referência ou à prostituição ou à objetificação dela.

Uma das funções de uma prostituta é iniciar sexualmente rapazes. (Não estou discutindo a prática, não defendo nem acho certo nem o escambau – mas minha opinião não vai apagar a prática da sociedade. Ela existe – ponto.) AO executarem tal função, diz-se que as prostitutas estão ensinando a rapaz a fazer sexo. E existe um léxico bem específico para a mulher que ensina: é a PRO FES SO RA.

Então, por extensão metafórica e prototípica do significado da palavra, um dos sinônimos de prostituta é professora, quer a gente goste disso ou não.

“Ain, isso é pouco usado!” Isso é pouco usado na SUA comunidade de fala. Portanto, deve ser abolido do dicionário?

A minha comunidade de fala usa pouco expressões referentes a agricultura e pecuária. Então, vou exigir que palavras que EU uso pouco sejam abolidas?? CEJURA??? Mas CEJURA MESMO?!!?!?

“Ain, não são todos os dicionários que contêm essa definição!” Parabéns, vocês acabaram de descobrir o porquê de se consultar várias fontes para se formar uma opinião!

E não é só a palavra professora que remete à prática da prostituição. Observem:

– Aquele homem é um touro (viril)
– Aquela mulher é uma vaca (prostituta)
– Aquele homem é um galo (viril)
– Aquela mulher é uma galinha (prostituta)
– Aquele homem é o cão (diabo)
– Aquela mulher é uma cadela (prostituta).

Mas o problema é SÓ com a palavra professora, ou o problema é O PAPEL QUE AS MULHERES OCUPAM NO IMAGINÁRIO SOCIAL?

Se vocês estão incomodados com o uso pejorativo de uma palavra que designa uma função feminina, pensem no que significa “Aquele homem é uma mulher”.

Tem mais:
No início do século XX, a acepção primeira da palavra BOCETA era: bolsa pequena. À mesma época, a palavra BABACA tinha como primeiro significado “vulva”.

A partir da década de 1950 marromeno, a palavra boceta, POR EXTENSÃO METAFÓRICA DE SIGNIFICADO, tornou-se sinônimo de vagina (é o lugar onde se guarda uma coisa).

Nesse mesmo período, babaca adquiriu outro significado. E, vejam vocês, com semântica negativa e pejorativa.

Mas o problema é SÓ com a palavra professora? Jura?

E enquanto a gente se distrai com o uso “errado” da palavra professora, a gente vai apanhando por todos os lados de um governo que quer mais é que a gente se ferre.

Pela atenção, gracta.

Letícia Sallorenzo

Letícia Sallorenzo é Mestra (2018) e doutoranda (2024) em Linguística pela Universidade de Brasília. Estuda e analisa processos cognitivos e discursivos de manipulação, o que inclui processos de disseminação de fake news.

7 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Adoro a Letícia e sua forma de interpretar o universo além dela, o que fazem poucos!!! Ela não é moderna, mas evoluída, exatamente o que precisamos numa intérprete de mundo: ir além do já estabelecido, ir além do existente… Tempos difíceis esse, que a criação limita-se aos fakenews e a política nefasta.

  2. Texto preciso, vai direto ao ponto. Os dicionários registram a história da língua. Retirar termos dessa história por que não gostamos dela (e não gostamos, não temos como gostar da história de uma cultura de opressão) significa falsificá-la. Não menos.

  3. Sei que não vou acrescentar nada e que a única contextualização poderia ser sobre o significado das palavras mas esse texto maravilhoso me fez lembrar de uma passagem de um livro do escritor ítalo-argentino Pitigrilli : Uma senhora acionou a Justiça alegando ter sido ofendida por um senhor que a chamou de camelo. Exercendo auto-defesa o réu questionou o juiz se chamar uma senhora de camelo poderia ser uma ofensa. Sim, respondeu o magistrado. Perguntou então se também ofensa seria caso ele chamasse um camelo de senhora. Não vejo porque o camelo se ofenderia, foi a resposta. Dirigiu-se então à ofendida e fazendo reverência desculpo-se dizendo: Mil perdões minha senhora.

  4. ERRASTE!!! (sempre sonhei em falar isso pra alguem!)

    Eu e minha esposa sempre nos referimos ao filho do vizinho como “o menino” enquanto ele tem mais de 30 anos. Nada a ver com o que a gente poderia o estar considerando, pois alem de ser public defender dos craques ele ainda eh muito legal. So que a gente considera o pai e mae dele mais “chegados a nos” e nossa posicao social E PSICOLOGICA.

    E voce nao gastou tempo com a palavra chave que descreve ambos Bolsonaro e Joice. “Psicopata”.

    (Talvez seja coisa regional de Minas, ou global mesmo, realmente nao sei!)

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador