Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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Em “Black Mirror” a tecnologia é espelho sombrio de nós mesmos, por Wilson Ferreira

por Wilson Ferreira

A narrativa corporativa e publicitária sobre as tecnologias da informação sempre foi a da “estrada para o futuro”, uma estrada que supostamente nos conduzirá ao paraíso da comodidade, no qual todo conhecimento  que necessitarmos estará ao alcance de um clique ou de um toque na tela. Mas a série britânica Black Mirror (2011- ) vai na contra mão: sem ser tecnofóbica, mostra futuros próximos, mas estranhamente atuais, onde paradoxalmente a tecnologia evoluiu tanto que atingiu um ponto de inutilidade e disfuncionalidade. Os seis episódios da terceira temporada de 2016 mostram o “vanish point” de gadgets como mídias sociais, realidade aumentada, dispositivos móveis e games: o ponto de viragem tecnológico no qual a racionalidade se converteu em mal estar psíquico, crime, ódio e anomia. A expansão das redes de informação foi muita mais rápida que a produção de conteúdo (conhecimento). E a lacuna foi preenchida por espelhos sombrios de nós mesmos.

A série britânica Black Mirror é certamente a produção mais relevante da atualidade. Relevante porque é estranha: o tom da narrativa de cada episódio é incerto e desconcerta o espectador. A princípio é uma série de ficção científica. Mas não vemos civilizações interestelares, cenários pós-apocalípticos ou astronautas e cientistas em complicadas missões tentando salvar o dia, o planeta, a galáxia.

Lembra de início as atmosferas da clássica série Além da Imaginação, só que mordazmente engraçada, com uma inteligência peculiar que muitas vezes resvala no humor negro.

Diferente do clássico gênero sci-fi sobre mundos distantes no tempo, cada episódio retrata um futuro próximo transformado pelas tecnologias da informação. Cada vez que assistimos à série,  temos sempre essa pergunta mente: já estamos vivendo no mundo de  alguns desses episódios?

Black Mirror parece com o nosso mundo aqui e agora – só que apenas um pouco pior. Por isso a série é erroneamente descrita como “distópica”. Qualificar Black Mirror dessa maneira é dizer que ela fala de futuros negativos. Pelo contrário, a série fala sobre o nosso presente sob uma perspectiva estranha: a perspectiva da hipo-utopia – as tecnologias da informação não criam futuros, mas apenas desdobramentos sobre elas mesmas. Extrapolam de forma hiperbólica condições dadas no presente – sobre esse conceito clique aqui.

Se pensarmos que os computadores atuais são tecnologias com a mesma arquitetura concebida nos anos 1940 (memória, processador, periféricos, interface etc.), apenas que cada um desses componentes se desdobraram sobre si mesmos em performance, velocidade e capacidade de armazenamento, compreenderemos a proposta de Black Mirror.

Tecnologia como espelho

Os seis episódios da terceira temporada confirmaram esse insight hipo-utópico sobre as tecnologias – a evolução tecnológica não produz distopias sobre Estados autoritários ou máquinas sencientes que se revoltam contra seus criadores, mas mal estar psíquico, anomia, crime, chantagem e ódio. A tecnologia como espelho que reflete as mazelas humanas.

Olhar de Black Mirror parece sempre buscar na evolução das tecnologias de informação um vanish point, o ponto de inversão ou entropia de todos os sistemas – aquilo que uma vez o pensador francês Jean Baudrillard chamou de “hipertelia” (de “hiper”, sobre, além, fora das medidas, e “telos”, de resultado final, conclusão): um certo ponto no desenvolvimento que, sendo ultrapassado, torna as tecnologias totalmente disfuncionais. Nesses momento, os efeitos tornam-se “malignos”, perversos e crimenógenos – sobre esse conceito clique aqui.

Esse ponto de viragem parece aquilo que busca entender cada um dos episódios dessa terceira temporada.

Redes sociais e games: totalitarismo e inconsciente

O tema do primeiro episódio “Nosedive” é bem familiar para nós aqui no presente: acompanhamos uma mulher chamada Lacie que neuroticamente monitora como está sua avaliação nas redes sociais. Uma sociedade na qual os ratings de mídia social têm uma influência totalitária. 

Se na atualidade o nosso círculo de amizades em redes sociais se limita a verificar o número de “likes” a cada coisa que postamos, em “Nosedive” a expansão das mídias sociais chegou ao vanish point no qual as amizades se converteram em controle social: cada pessoa luta para aumentar o seu score nas mídias sociais. Não temos mais “likes” mas avaliações que uma pessoa faz do comportamento das outras no dia-a-dia no trabalho e lazer. Um encontro no elevador pode ser uma oportunidade de subir ou cair a nota. Por isso, todos são representam a si mesmas para os demais, na esperança de agradar e a nota subir.

Que a vida social consiste em papéis sociais performados por máscaras públicas, todos nós sabemos. Mas as mídias sociais levam isso ao paroxismo. Da utopia da inteligência coletiva, a Internet acabou criando o mundo solipsista de “likes” e expurgo de tudo que é dissonante para um círculo fechado de amizades.

Porém, Black Mirror extrapola para a sociedade como um todo por meios dos dispositivos móveis: alugar um carro, tomar um avião no aeroporto ou participar de uma simples festa de casamento vai depender do seu score nas mídias sociais – o quanto você agrada ou não as pessoas ao redor. 

Totalitarismo light, soft, em tons pastéis. Qual o ponto de viragem aqui? O solipsismo tecnológico da atualidade (o chamado “efeito-bolha) converte-se em totalitarismo capilarizado pelos smartphones.

O segundo episódio “Playtest” aborda o universo imersivo dos games atuais/futuros. Um turista americano com problemas financeiros para poder voltar à casa da sua mãe nos EUA aceita um trabalho em que testará um novo e revolucionário game. Um jogo que explora a interface neuronal/eletrônica que se mostrará perigosa ao apagar as fronteiras entre o jogo e a realidade.

Mais uma vez temos o vanish point da hipertelia: a atual obsessão pela melhoria da resolução imersiva nos games poderá chegar perigosamente no momento em que o jogo aprenderá com o próprio material inconsciente do jogador. Dessa vez não mais se trata de apagar as fronteiras entre jogo e realidade, mas entre jogo e inconsciente. Os pesadelos e fantasmas do inconsciente absorvem o próprio jogo, transformando-o num contínuo pesadelo sem ter por onde sairmos.

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Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

1 Comentário

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  1. Nós na Matrix

    Bom comentário de uma série espetacular em todos os sentidos, dos roteiros à direção e à criação de “gadgets” tão atraentes como perigosos.

    Só acrescento que o final de San Junipero nada tem de doce, pois revela que o pretenso Paraíso nada mais é do que a Matrix (em que muitos de nós entram e vivem gozosamente, como no filme d@s irm@s Wachowski).

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