Em livro, sociólogo denuncia falácias que servem à perpetuação da desigualdade social

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Sugestão de Rennan Moura Martins

Por Geniberto Paiva Campos 

Brasil: Pátria distraída?

“Todos os dias indivíduos normalmente inteligentes e classes sociais inteiras são feitos de tolos para que a reprodução de privilégios injustos seja eternizada entre nós”. (Jessé Souza, “A tolice da Inteligência Brasileira” – Ed. Leya, 2015)

Há alguns anos, em um programa de TV, a atriz Kate Lyra criou um inusitado bordão, rapidamente assimilado e repetido pelos telespectadores: -“brasileiro é tão bonzinho!” No qual ressaltava a bondade e, sobretudo, a ingenuidade inata dos nossos patrícios.

Em livro recentemente publicado, o sociólogo Jessé Souza, atual presidente do IPEA, pesquisando as origens desse “jeitinho brasileiro”, relata, em sequência histórica, a participação de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro, Roberto da Matta, os quais, agregando ideias de Max Weber, teriam contribuído com respaldo teórico-acadêmico para a confirmação da tese: os brasileiros são malemolentes, sensuais, cordiais, decidem com o sentimento (e não com a razão). Portanto, fáceis de serem enganados, levados na conversa. Não gostam do seu país. E nutrem uma admiração profunda, perpétua, em relação Estados Unidos e ao seu povo. Aos quais atribuem qualidades e capacidades sobre-humanas, excepcionais, na esfera moral, pessoal, técnica e acadêmica. Seres muito próximos da perfeição.

Contornando, propositadamente, o núcleo de justificativas “acadêmico/científicas” da tese – muito bem explicitadas no livro do sociólogo Jessé Souza – apresentamos algumas contribuições a esse debate, defendendo a provável ocorrência de um viés “político/operacional” no caso. Produzindo manipulações grosseiras, no intuito de criar na população uma assimilação acrítica. Ingênua e tola, de conceitos políticos e ideológicos do interesse externo, contrários aos interesses do seu país. A nosso ver, um fator muito significativo. Que poderia contribuir para a explicar a permanência de comportamentos sociais e políticos estranhos da elite e da classe média brasileiras (e da América Latina), habilmente manipuladas pela Publicidade & Propaganda, de origem interna e externa. Todas com o mesmo objetivo: fazer os seus habitantes perderem a esperança no futuro do seu país, reduzindo a próximo de zero o seu orgulho patriótico. Talvez possa ser atribuído um papel significativo a essa lavagem cerebral permanente (e competente) dessas agências de Publicidade & Propaganda na manutenção desse estado de inconsciência coletiva das populações, vítimas, infelizmente, dessas ações deletérias.

A partir da segunda metade do século 19, o Capitalismo assumiu características hegemônicas incontestes, enquanto sistema econômico, evoluindo nos anos seguintes para a esfera política, partindo em busca do controle direto e indireto do Estado e apoiando sutilmente governos favoráveis e/ou simpáticos ao sistema. O limiar do novo século mostrou que o Mundo, na defesa dos seus interesses, estaria disposto a se enfrentar em guerras totais. (Como afirmou Clausewitz, um reconhecido estadista da época: “a guerra é a política feita por outros meios”).

Na busca da hegemonia e da sua expansão, países europeus, os Estados  Unidos e o Japão, se enfrentaram em duas Guerras Mundiais que eclodiram no século 20. Segundo argutos historiadores (Hobsbawm, E.J – 1977), a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais constituem a mesma guerra. E o que se seguiu, a cinzenta “Guerra Fria” seria apenas um corolário – ou consequência – das duas grandes guerras. Tais conflitos marcaram todo o século passado, e como esperado, mostram seus desdobramentos nos dias atuais.

Desses sérios enfrentamentos, um país, os Estados Unidos da América, saiu praticamente incólume em sua base territorial e em sua economia. O incremento das atividades da indústria bélica americana nos dois conflitos, colocou o país em uma situação de supremacia mundial no pós-guerra, nos planos econômico e político. E tornou-se a única e incontrastável potência nuclear mundial. Diferentemente da Europa, dilacerada, dividida e com a economia em frangalhos.

Após garantir a sua expansão territorial e conquistar áreas preciosas de terras (e do petróleo) do México, os norte-americanos confirmaram a tese do “destino manifesto”, um engenhoso e permanente mecanismo auto atribuído e auto aplicado ao país, o qual passou a justificar a apropriação de territórios e riquezas do interesse geopolítico ou econômico do governo americano.

Durante a Guerra Fria – para muitos estudiosos, ainda em plena vigência, (Moniz Bandeira. L.A, 2013) –  Washington assumiu o papel, também auto atribuído, de “gendarme da democracia mundial”, com o envolvimento direto e indireto em invasões territoriais, golpes de estado e levantes internos em diversos países. Sempre em nome da defesa da democracia, encobrindo interesses econômicos e geopolíticos ilegítimos e injustificáveis.

(Retomando um oportuno argumento do autor do livro, enfatizamos que não nos move nenhum tipo de sentimento antiamericano ao fazer tais constatações. Estas devem ser tomadas pelo que são: evidências históricas da formação e da evolução de um país, com inegável vocação hegemônica, implantando a ferro e fogo o seu peculiar conceito de “democracia”).

Simultaneamente ao desenrolar da II Guerra Mundial, ficou evidente para o governo americano, o imenso potencial da Indústria de Publicidade & Propaganda, uma arma “bélica” às vezes mais poderosa do que os canhões. Com essa arma era possível induzir comportamentos consumistas: Coca-Cola, ao invés de sucos naturais; fazer as mulheres adotarem o cigarro como expressão da sua liberdade. E, por que não? Colocar “ideologias” disponíveis nas prateleiras dos supermercados.

A partir desse ponto, foi montada uma máquina de conquista de corações e mentes, de alcance mundial, dispondo de recursos financeiros inesgotáveis, utilizando todos os meios de comunicação possíveis: rádios, tvs, jornais, revistas (incluindo os “comics” ou revistas em quadrinhos). E ainda a superpoderosa indústria do cinema, com o envolvimento dos magnatas da meca cinematográfica de Los Angeles com interesses geopolíticos de Washington, sendo criada o que ficou conhecida como a “Universidade de Hollywood”. Perfeitamente apta a interpretar fatos e criar versões convincentes. Se necessário, reinterpretar a própria História. Ações com a incrível propriedade de iludir mentes ingênuas e suscetíveis, de todos os quadrantes e origens.

Diante de tão formidável e bem articulado poderio no campo de Comunicação, tornou-se difícil, quase impossível, qualquer tipo de discurso contraditório. E foi a partir de tal conteúdo político/ ideológico do pós-guerra, norteador da Guerra Fria, que o Mundo foi submetido a um ataque insidioso da indústria de Publicidade & Propaganda, defendendo e divulgando valores, transcendentes em sua roupagem externa, mas cujo objetivo essencial era o domínio de territórios e países de interesse do novo Império. E claro, defendendo, por todo sempre, o Mercado e a Livre Iniciativa.

São múltiplos, incontáveis, os exemplos da aplicação dessa política neoimperial no Mundo. Nos mais longínquos rincões do Planeta.

Em meados do século 20, o império americano dispunha-se a lutar contra o Comunismo e pela implantação universal do seu conceito de Democracia. E, no limiar do novo século, após o ataque às Torres Gêmeas, essa pauta foi ampliada para o combate ao “terrorismo islâmico”, ou “Eixo do Mal”, no qual os limites da guerra convencional foram deixados de lado, passando a valer ações “antiterroristas” que desrespeitariam os Direitos Humanos e regras elementares de combate definidos na Convenção de Genebra. Talvez fazendo valer, mais uma vez, os fundamentos do “Destino Manifesto”. O centro de torturas implantado na base de Guantánamo, até hoje em funcionamento, seria o mais perfeito corolário dessa constatação.

“Palimpsesto” é um termo pouco usual. De acordo com o dicionário Houaiss significa “o papiro ou o pergaminho cujo texto primitivo foi raspado para dar lugar a um outro”.

A lembrança do termo surge naturalmente, quando decorrido pouco mais de cem anos do início do período das grandes guerras do século 20, a humanidade continua a reescrever essa história. Cujo texto primitivo não esmaece. Por mais que se tente apagá-lo, raspando-o até à medula, seu conteúdo teima em voltar, se fazendo presente nos dias atuais. Os conflitos bélicos registrados no século passado, dividiram (talvez de maneira inconciliável) a Humanidade entre correntes políticas e ideológicas antagônicas.

Para os que imaginavam que a morte sem glória de Adolf Hitler, numa Alemanha que agonizava frente aos invasores russos, significou o fim do Nazismo, a História mostrou que este apenas hibernava. E gradualmente, reassumia o seu lugar no comportamento humano.

Manifestações de abusos, intolerância, desrespeito aos direitos humanos, quebra da ordem jurídica, tortura, atos de violência extrema contra populações indefesas, submissão do setor judiciário ao totalitarismo, ao “clamor das ruas” ou às pressões da mídia, extinção do estado democrático de direito. Enfim, o abandono consentido de práticas civilizatórias, veio a evidenciar que o Nazismo, redivivo, está sim presente nos mais diversos países. E que para assegurar o lucro, mesmo indevido e garantir os interesses ilegítimos de Estados e Nações, estaria permitida a prática de métodos persuasórios ilícitos ou da força militar explícita para a consecução de tais objetivos.

Caberia, portanto, à consciência crítica da Sociedade fazer a denúncia bem fundamentada de tais métodos e manipulações. Como o fez – de maneira serena e corajosa – o sociólogo Jessé Souza em “A Tolice da Inteligência Brasileira”. Demonstrando seu elevado grau de ousadia acadêmica, desde a escolha do título, o autor revisa conceitos estabelecidos por acadêmicos consagrados, ícones inquestionáveis da Sociologia brasileira. Submetendo-os ao escrutínio científico atual. Bem distante de uma iconoclastia oportunista e superficial, procura demonstrar possíveis vieses e equívocos de mestres do conhecimento sociológico. Num país em que estes reinam soberanos. Tranquilos, intocáveis, absolutos no pensamento acadêmico. Que nunca ousou criticá-los.

E o mais importante, denunciando, de maneira firme e inteligente, nos limites da ortodoxia acadêmica, a forma insidiosa de dominação exercida pelos impérios financeiros. Fazendo cidadãos adultos – crédulos e atilados – de países aparentemente livres e soberanos, assimilarem conceitos equivocados e manipuladores, que servem, tão somente, aos interesses escusos desses Impérios.

Este, talvez, o mérito maior do corajoso livro do sociólogo Jessé Souza: mostrar que o Brasil não é uma pátria assim tão distraída.

Ainda há vida inteligente na nação tupiniquim.

Originalmente publicado em:

http://www.desenvolvimentistas.com.br/blog/blog/2015/12/21/brasil-patria-distraida/

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

10 Comentários

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  1. Precisamos de inciativa como

    Precisamos de inciativa como estas. Precisamos entender que o jeitinho brasileiro nada mais é do que o instinto de sobrevivência funcionando em um dos países mais desiguais do mundo. Aonde a população é privada de seus direitos para que o estado possa servir ao uma minoria egoista que está cada vez mais cercada por muros em bairros “nobres” pela cidade.

    1. O verdadeiro caráter do jeitinho brasileiro

      É um velho equívoco conceber o jeitinho brasileiro como peculiar somente ao povão, e justificado como autodefesa contra condições terrivelmente adversas. Essa convicção leva a uma antiga postura de tolerância e até louvor para com o jeitinho, celebrado como idiossincrasia nossa. Mas bem examinado, eu acho que a elite é bem mais perita no uso do jeitinho do que o povão. Isso eu tenho presenciado inclusive aqui mesmo nesse blog, onde os comentaristas petistas, neo-elite brasileira, estão a toda hora gastando o seu latim para justificar mensalões e petrolões como um “jeitinho” indispensável para levar o país ao progresso…

      No mais, é um equívoco pensar elite e povo como se fossem duas humanidades totalmente distintas, tipo uma vindo de Marte e a outra de Vênus. No Brasil, a única diferença entre povo e elite é a renda, de resto ambos são assemelhados cultural e psicologicamente.

    2. Jeitinho a meu ver´e

      Jeitinho a meu ver´e criatividade, capacidade de negociação e até alguma confiança para burlar alguma burocracia desnecessária.

      Não sei de onde tirarram que jeitinho seriam crimes…

       

  2. Pequena ressalva

    Texto perfeito na análise, porém o exemplo de Kate Lyra não serve para esta análise.

    Ela interpretava em a Praça é Nossa nos anos 80 uma personagem de uma americana bonita e escultural, que relatava que andava por diversos lugares e recebia todo tipo de gentileza. Pelo teor do texto, via-se que as gentilezas eram com segundas intenções. Era engraçado, mas apenas uma brincadeira que não serve para uma análise do “caráter brasileiro”, principalmente para a proposta do texto em questão.

  3. Nação tupiniquim ou tapuia?

    “Ainda há vida inteligente na nação tupiniquim.”

    Mas ainda insuficente para perceber que a nação sempe foi e continua sendo tupiniquim.

    Sem o apoio dos tupis a invasão e o domínio não teriam acontecido tão rápida e facilmente.

    Eles ajudaram a escravizar as demais tribos de tão encantados que ficaram com a aliança com os conquistadores.

    Os tupis nunca consideraram os jagunços bandeirantes como tapuias (estrangeiros). Tapuias eram os outros índios, não os brancos, nem seus descendentes.

    A historiografia paulista contrasta com as outras exatamente por contrapor uma origem tupi aos bravos bandeirantes, em contraposição aos tapuias do norte do Brasil. Essa divisão permanece até hoje nos preconceitos paulistas contra nordestinos e cariocas. Coincidência?

    Os bandeirantes mamelucos e os americanos apenas penetraram pelo mesmo rio Tietê – o rio que corre pra dentro da terra – e pelos mesmos peabirus abertos por nós, tupis.

    Quem serão os próximos tapuias? Os chineses?

  4. tem dedo de Mangabeira Unger aí

    o ousado M. Unger, original, temperamental, impulsivo ( como seu interlocutor Ciro Gomes ), com tanta vontade de fazer alguma coisa pelo seu país. Márcio Porchmann e Jessé foram sugestões de Unger (se não me engano).

    Unger também acusou em 2005 ” Pôr fim ao governo Lula ” http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1511200506.htm

    Unger também fez campanha na tgelevisão norte-americana contra a reeleição de Obama, pela sua derrota. Alguém já disse que os Grandes Homens cometem Grandes Erros.

    1. – Quais seriam os erros e os acertos de M. Unger ? !

      Quais seriam os erros e os acertos de M. Unger? !

      (falo dos visíveis que chegam à gente – é péssima e histórica a equipe de propaganda dos feitos dos governos Lula e Dilma ).

      A do PT Direção Nacional é uma tragédia.

  5. Confesso que achei as

    Confesso que achei as explicações dele um tanto confusas e, por vezes, generalistas demais.

    Mas uma coisa que gostei é a crítica ao que algumas pessoas chamam do tal “jeitinho brasileiro”.

    Ora, o que se chama ou se deveria chamar jeitinho brasileiro é a capacidade de negociação e “jogo de cintura” das pessoas, a criatividade para resolver problemas complexos com poucos recursos,  e isso é um ponto positivo e nunca negativo. E não é, obviamente, exclusivo do Brasil.

    Tem gente que diz que dar propina é “jeitinho brasileiro”. De onde tiraram isso ? Isso é crime na maioria dos paises do mundo e evidentemnte que também não ocorre só no Brasil.

  6. Teria que ler o livro para

    Teria que ler o livro para fazer uma análise mais correta, mas a primeira vista minha tendência é concordar plenamente com o autor. 

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