Em “Mais Estranho Que a Ficção” Deus é um Mal Escritor

Mais Estranho que a Ficção (Stranger Than Fiction, 2006) propõe uma interessante ironia: e se nossas vidas não passarem de plots de uma narrativa literária? Tramas da obra de um mal escritor, uma divindade, um “Deus Ex-Machina” (termo para designar soluções arbitrárias, sem nexo ou plausibilidade na narrativa, para solucionar becos sem saída encontrados em roteiros mal conduzidos). É o velho tema da batalha do ser humano contra um Demiurgo que quer impor uma narrativa fatalista  e luta pelo despertar do livre-arbítrio dentro do reino da fatalidade. Um irônico paralelo entre Teologia e Literatura: Deus é uma má escritora que tenta matar o  protagonista da sua trama.


Harold Crick (Will Ferrell) é um auditor da Receita Federal que leva uma vida solitária e rígida, governada por números (ele sempre conta o número de vezes que escova os dentes verticalmente e horizontalmente), pelo seu relógio de pulso e pela rotina. Seu apartamento é impessoal como um quarto de hotel, sem objetos pessoais, fotografias, memórias ou desordem.

Mas, em uma manhã, Harold começa a ouvir uma voz narrando suas ações: “um modesto elemento da sua vida considerada normal poderá ser o catalisador para uma nova vida”, diz a estranha voz vinda aparentemente do céu. Imerso num cotidiano de números e cálculos, pela primeira vez cria uma nível meta (ou consciência de transcendência espiritual?) na sua vida: quem é esse narrador onisciente? De que plano provém? Harold passa a ser perseguido por essa voz em off, até descobrir seu propósito: narrar a iminente morte de Harold.

Após desistir de procurar apoio terapêutico, Harold busca uma solução menos ortodoxa: busca o auxílio de um eminente professor de Teoria Literária, o professor Jules Hebert (Dustin Hoffman). A partir daí o filme estabelece uma interessante ironia narrativa: mais do que a preocupação com seu estado mental, Harold percebe que a sua vida parece estar dentro de um propósito maior, como a narrativa de uma obra literária. Portanto, com o auxílio de Julius, deve descobrir em qual plot e gênero literário está envolvido, para, dessa maneira, descobrir como seria o desfecho mortal para evitá-lo.

A voz off é da escritora Karen Eiffel (performada por Emma Thompson – famosa por matar todos os seus protagonistas em seus livros). Suas imagens iniciais no filme são simbolicamente sugestivas (observa o protagonista do alto dos edifícios, como o Demiurgo gnóstico criando uma trama cósmica para confinar o protagonista anthropos).

De início, dois elementos dos filmes gnósticos estão presentes em “Mais Estranho que a Ficção”: a solidez e regularidade da realidade que se esfacela ao descobrir que tudo consiste numa narrativa literária e arbitrária de um Demiurgo e a desconstrução irônica da própria narrativa fílmica – na estória constantemente criam-se níveis meta como, por exemplo, a discussão dos próprios elementos do roteiro do filme (Ironia Dramática, Deus “ex-machina” etc.) e a busca de Harold e Julius em determinar em qual gênero o filme que o espectador assiste se insere (comédia? Drama? Tragicômico?).

A Escritora é um Demiurgo

Karen Eiffel é o Demiurgo que, de tão inebriado pelo poder de matar seus protagonistas, entra em crise e sofre um bloqueio criativo: não sabe agora como matar Harold de forma criativa. Tal como na mitologia gnóstica, todo o poder do Demiurgo não é capaz de solucionar a falha principal do seu universo material: o devir, o tempo. A editora envia uma assistente para ajudá-la a superar o bloqueio e pressioná-la quanto aos prazos para entrega dos originais.

Para a mitologia gnóstica, o Demiurgo aprisiona o homem em seu cosmos físico com um objetivo principal: roubar-lhe as partículas de luz, reminiscência do verdadeiro plano superior da Pleroma contido no ser humano, plano este que está além dos poderes do Demiurgo. Isso é representado na timidez e ingenuidade de Harold, que fará cada vez mais a escritora Karen fascinar-se pelo seu próprio protagonista ao ponto de relutar em matá-lo. Aos poucos vai libertando-se da rigidez do mundo burocrático e certinho (na medida em que descobre a artificialidade do mundo em que vivia).

Essa pureza da sensação do “olhar da primeira vez” é emblematicamente trabalhada com vários simbolismos bíblicos do Gênesis. A maçã na boca de Harold ao sair apressado para o ponto de ônibus toda manhã; o encontro com Anna Pascal (Maggie Gyllenhaal – confeiteira auditada pela Receita) que lhe oferece cookies cujo sabor fará ainda mais Harold abrir-se para um mundo de novas sensações (o pecado original do Paraíso bíblico); a atração por uma velha guitarra Fender da mesma cor da maçã que toda manhã está na boca de Harold etc.

Aliás, a personagem Anna Pascal ocupa importante papel para a gnose de Harold. Assim como na mitologia gnóstica o personagem feminino de Sophia ocupa importante papel ao trazer sabedoria para o cosmos físico, o personagem de Ana Pascal ao oferecer a “Maçã do pecado original” (os cookies) que abrirá a mente de Harold.

Luis Nassif

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