Esqueletos no armário

Terminei a primeira parte do artigo sobre biografias com uma pergunta (será que a associação Procure Saber está mesmo falando de biografias?) e uma promessa, a de levantar algumas hipóteses sobre os problemas da transformação da vida privada em história. Mas, antes disso, instigada pelo ensaio de Paulo Roberto Pires na revista Serrote, “Porque é preciso dizer ‘sim’ ou ‘não’”, retomo declarando-me CONTRA a lei que mantém a autorização prévia para as biografias.
 
Suponho que, a partir da primeira parte, tenha sido fácil de deduzir isso, mas achei necessário deixar ainda mais claro, sobretudo depois da entrevista de Roberto Carlos ao “Fantástico” e, sim, do vídeo divulgado pela Procure Saber na terça-feira, 29 de outubro. Diante de de tantos sujeitos ocultos e tantas circunvoluções do pensamento e do verbo em apenas 4 minutos, melhor falar com todas as letras. Como o fez Jânio de Freitas:
 
“A pretensão de crivo prévio das biografias está impressa ou, quando não, está gravada em suas tantas manifestações, com diferentes autorias. Mesmo em sua nova posição, lá está ainda a intenção inspiradora, explícita e clara na recusa a dispor apenas dos direitos dados pela lei ao difamado ou insultado: ‘O resultado [do recurso legal] é um pouco tardio. Depois de publicado, todo mundo já leu, já viu pela internet. Isso não vale muito, não’. A solução? A liberdade do biógrafo, mas ‘com um ajuste’. Ajuste, é óbvio, que só pode ser do texto original ao pretendido pelo biografado. Logo, o ‘ajuste’ é efetivar alterações por censura ou, se recusadas, a censura total à publicação”.

 
Mas, afinal, o que pode estar tirando o sono desses artistas, a ponto de eles entrarem nesse feio papel de censores? Pedro Alexandre Sanches vem levantando a hipótese de que não são exatamente as biografias impressas que assombram a Procure Saber, mas sim as possibilidades audiovisuais – e, aí sim, o dinheiro grande que há por trás disso (aliás, e a ideia da remuneração, defendida tão veementemente por Paula Lavigne no início e ecoada por Marília Pêra, sumiu no cromaqui?).
 
Um dado de realidade, lembrado por Paulo Cesar de Araújo no Roda Viva, reforça essa suspeita: quem, dos sete, foi, é ou está sendo objeto de biografias não-autorizadas, com exceção de Roberto Carlos?
 
A defesa tão enfática do direito à privacidade, enfática a ponto de produzir tanto o apelo emocional chinfrim no vídeo como os malabarismos sobre direitos coletivos sobre direitos individuais, no entanto, nos obriga a pensar, com mais profundidade, o que, exatamente, da vida privada desses artistas, precisaria estar assim tão preservado.
 
Como princípio geral, há zonas da vida pessoal e da intimidade de todo indivíduo que não podem nem devem ser, de fato, invadidos. Mas, a não ser que sejam elaboradas por monstros do sensacionalismo (e, ainda que eles existam por aí, não costumam se debruçar sobre coisas tão trabalhosas como biografias e preferem meios mais rápidos), biografias não se dedicam aos lugares escuros da vida íntima de ninguém, mas sim à história de vida de indivíduos de relevância pública.
 
Acontece que a vida privada, minha, sua ou do Chico Buarque, não se constitui apenas das zonas mais delicadas, para usar uma palavra cara a esses personagens, mas também de um conjunto de acontecimentos, de relações, de comportamentos, de discursos que formam, informam (e, às vezes, deformam) a trajetória pública. E aí temos um grande nó: quem diz o que está onde? No caso de uma biografia livre, cabe ao critério e ao plano narrativo e interpretativo escolhido pelo biógrafo. Tarefa complexa, repleta de dilemas éticos, mas essencial numa biografia.
 
É evidente que o biografado também estabelece limites de diversas maneiras, falando mais ou menos, facilitando ou dificultando o acesso a determinados assuntos e, mesmo, negociando o grau de exposição de certos temas diretamente com o biógrafo. Mas, no resultado, é o biógrafo quem tem a palavra final.
 
Pois bem, essa autonomia do biógrafo pode intimidar e desagradar o biografado, o que é humano e legítimo. E, sim, há que se reconhecer que essa autonomia é, por si, problemática, pois está sujeita a erro e a se tornar terreno possível de traição (como lembra Paulo Roberto Pires). OK que essas questões não devam ser completamente ignoradas, ainda que subordinar a liberdade de expressão a elas seja excessivo. Mas por que será que estão causando tantos arrepios, dado que não há, repito, um histórico de livros caluniosos e difamatórios das vidas desses artistas em questão?
 
A ponta do fio solto parece estar na fala da entrevista de Roberto Carlos ao Fantástico: “A história passa a ser do biógrafo”. O susto está aí, no fato que a história possa mudar de mãos, de que ela deixe de ser o playground de seus protagonistas. Não é por acaso que justamente essa geração de artistas esteja tentando criar um cordão de silêncio ou de vozes autorizadas em torno de si.
 
Ao contrário de muitos comentadores dessa polêmica, não me soa nada estranho que Roberto Carlos esteja ao lado (ou à frente) de Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil, Milton Nascimento. Em que pesem as diferenças pessoais, estéticas e ideológicas, entre os sete (ou entre os seis; Djavan me parece uma espécie de papagaio de pirata nesse contexto), suas trajetórias coincidem num ponto: são todos artistas que moldaram e foram moldados por uma indústria cultural moderna e fortalecida.
 
Eles, inclusive, surgem como geração no contexto de uma corrida da televisão por seus talentos, vozes e canções – e, nela, a televisão, se lançaram numa disputa estética e cultural encarniçada. Com crise ou sem crise, mais ou menos convicção, maior ou menor adequação aos seus projetos pessoais de ordem estética (e mesmo política), estão entre os nossos primeiros e, sem dúvida, têm lugar de honra entre os mais bem-sucedidos artistas pop. Em outras palavras, eles são da mesma, mesmíssima, turma.
 
Por serem artistas pop, trabalharam duro na construção de suas imagens, mesmo aqueles que pareciam não o fazer e mesmo aqueles que o faziam a contragosto. As diferenças substantivas que havia – e ainda há – entre cada um deles se esfuma diante do fato de que todos erigiram suas trajetórias artísticas também contando histórias a respeito delas e de si mesmos. Não há nenhum juízo de valor nisso; foi assim que a banda começou a tocar aqui no Brasil nos anos 1960, à época dos festivais, e é assim que continua tocando.
 
O diabo é que a construção da imagem é isso mesmo, uma construção, uma narrativa partilhada mais ou menos sob consenso e, que, de ordinário, não combina necessariamente com todos os fatos.
 
Quando se tem controle sobre o acesso aos fatos, a ilusão dura mais e o consenso fica mais forte. Quando o acesso aos fatos não é controlado, outras narrativas surgem e, mesmo que não tenham a intenção de negar ou destruir a primeira, a confrontam. É disso, sobretudo, que a Procure Saber está falando: do temor do confronto, do dissenso, da discordância.
 
Essa parte da música brasileira que se chama MPB construiu, com intensa participação de um jornalismo cultural cada vez mais reverente, algumas linhas narrativas que se pretendem únicas, verdadeiras, definitivas, mantendo alguns esqueletos bem trancadinhos dentro do armário. Se se permite que eles pulem para fora, as histórias que eles podem contar poderão ser outras. E diversas.
 
Na terceira e última parte, arriscarei alguns palpites de como e por que a MPB se transformou nesse grande armário cheio de esqueletos.
Redação

4 Comentários

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  1. Sorte mesmo terá o artista
    Sorte mesmo terá o artista compositor Djavan se a jornalista cultural Bia Abramo não cismar em fazer sua biografia, ou, que ele continue tendo o direito de inviabilizar um tormento que ele certamente não merece.

  2. Procurar Saber ou Encontrar o Não-Saber?

    Sinceramente, acho esta uma discussão um tanto quanto complicada.

    Não deveria se ater simplesmente à dinheiro. Mas no final, todos os argumentos acabam nisso, direta ou indiretamente.

    Quem se colocar no papel de um biografável pode imaginar a temor de ter histórias falsas ou verdadeiras (mas debaixo do tapete) publicadas para qualquer um ver. Isso pode trazer grandes problemas em seu círculo familiar, de amigos, ou de admiradores. Mesmo que seja alguma história falsa (não precisa haver dolo do biógrafo para isso), desde que tenha algum impacto, o biografado terá que provar sua “inocência”, provar que isso não é verdade. E provar a inocência por muitas vezes é mais difícil que provar a culpa. Ainda mais dependendo do tempo passado. E quanto aos esqueletos no armário, histórias da vida que até você deseja esquecer, creio que muitos têm, famosos ou anônimos. E, por alguém ser famoso, este não é obrigado a se comportar como um anjo enviado do céu, um exemplo de bondade, caridade, moral e ética. Todos somos humanos, todos erram ao menos uma vez na vida. Essa lenga-lenga de quem aparece na mídia tem que dar bom exemplo é furada. Quem tem que dar bons exemplos e ensinar é quem educa, não a indústria da mídia. Esta indústria está aí pra gerar renda, o que é importante também. Cada um escolhe os artistas que vai ouvir ou admirar.

    Já a respeito da censura prévia, ela também é reprovável. Portanto está criado um grande impasse. Quem teria o poder de dizer ou não o que pode ou não ser publicado? O biógrafo? O biografado? Um juiz do STF? A sociedade? Voto facultativo? Lista aberta ou fechada? Financiamento público ou privado?

    Reconheço a importância e o trabalho de grandes biógrafos (todos os biógrafos). Eles trabalham e têm que ser remunerados para isso. Têm o direito de escrever, assim como todos têm o direito de ler suas obras. Deve ser encontrado um meio termo nessa “guerra”. Cabe a todos os lados envolvidos encontrar um consenso. Eu não conseguiria pensar em uma proposta. Mantenho a dúvida a cada artigo publicado de um lado ou de outro. No final, todos tem algum ponto de razão, alguns um pouco mais, outros um pouco menos.

    No final das contas tudo se resolverá em torno do capital. Será feita uma partilha entre biógrafo, biografado, editora, advogado, redator, diretor, flanelinha e todos ficarão felizes (com muito ou pouco dinheiro no bolso).

  3. Nada Disse

    Falou e acabou não dizendo nada.

    Os artistas estão com toda a razão e estão sendo sistematicamente linchados pela imprensa. Estão defendendo o direito inalienável à privacidade, a deles e a nossa também. Nossa intimidade nos pertence, é propriedade particular. É incrível a desonestidade de chamar a defesa de nossa própria intimidade de censura prévia.

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