Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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Estamos todos à espera de algo que nunca chega em “Esperando Godot”, por Wilson Ferreira

por Wilson Ferreira

Obra-prima do Teatro do Absurdo de Samuel Beckett, “Esperando Godot” sempre esteve à espera de uma adaptação cinematográfica. A qual Beckett resistia por temer que o espírito de dissonância original da peça fosse perdido na linguagem fílmica. Mas o projeto “Beckett in Film” do diretor irlandês Michael Lindsay-Hogg certamente superou esses temores de Beckett. Em “Esperando Godot” (2001), a peça em dois atos em que nada acontece ganha novos tons, principalmente gnósticos: por que dois mendigos à espera do misterioso Godot que nunca aparece, simplesmente não viram as costas e vão embora? O que temem? O absurdo e surrealismo de “Esperando Godot” é apenas a superfície de um horror metafísico de Beckett que parece remeter ao trauma do Holocausto: como foi possível uma barbárie jamais vista na Segunda Guerra Mundial? Que cosmos é esse em que vivemos que cria condições para acontecer horrores que jamais deveriam acontecer?

Desde a estreia da obra-prima do chamado “Teatro do Absurdo” de Samuel Beckett, “Esperando Godot”, em 1953, a peça tem sido objeto de muitos debates e interpretações. Mas, sem dúvida, estava à espera de uma adaptação do palco para a tela do cinema.

Quando vivo, Beckett recusou um projeto do grande diretor sueco Ingmar Bergman de fazer uma adaptação fílmica: Beckett temia que a mão pesada de um diretor de filmes “de arte” prejudicasse a dissonância do absurdo de “Esperando Godot”.

Mas em 2001, o diretor irlandês (pátria de Beckett) Michael Lindsay-Hogg criou para uma TV irlandesa o projeto “Beckett in Film”: filmar todas as peças do dramaturgo). E “Esperando Godot” foi o filme de estreia. Diferente de outras versões anteriores para TV que, muitas vezes, acabavam transformando a peça num musical, com trilha e uso excessivo de close-ups.

Ao contrário, Esperando Godotde Lindsay-Hogg é minimalista: câmera discreta, e cenografia básica: apenas uma árvore seca que decora a curva de uma estrada de terra cercada de pedras e poeira, com pequenas colinas formadas por entulhos para quebrar a monotonia da paisagem. Um filme respeitoso e reverente a Beckett.

Nada acontece

A rigor, “Esperando Godot” é uma peça em dois atos em que nada acontece: dois falantes mendigos em uma paisagem desolada que esperam a chegada de um misterioso Godot que cada vez mais torna-se improvável sua chegada. Outros três personagens surgem em sequências semelhantes para cada ato, criando no espectador uma sensação de circularidade, eterno retorno, marcado por longos diálogos cujo dilema em essência é o seguinte: “Não posso continuar esperando, mas eu tenho que continuar esperando…”.

Muitos atribuem o sentido da peça ao contexto do trauma pós-Segunda Guerra Mundial: como seguir a vida em frente após o trauma do Holocausto, mortes e destruição em escala jamais vista? Dois protagonistas num drama existencial de confinamento à espera de um misterioso Godot que quebre aquele círculo vicioso e faça o tempo (ou a História?) andar para frente.

Mas o surrealismo existencial da peça sugere algo mais além e metafísico sobre as grandes questões da humanidade: o seu propósito nesse cosmos, a possível presença de um poder superior e a sua resistência desafiadora a qualquer explicação ou interpretação simples.

Por exemplo, Theodor Adorno via em Beckett o mesmo princípio da cosmogonia gnóstica: o mundo criado para nós é radicalmente mal. E diante dele não há reconciliação possível.

 

O Filme

Vladimir (Barry McGovern) o tempo inteiro tenta ser racional, procura algum sentido ou propósito da situação. Procura pistas sobre quem é Godot: sua aparência, onde vive, o que faz. Mas o máximo que descobre é que Godot tem barbas brancas.

Ao contrário, Estragon (Johnny Murphy) é mais “pé no chão” e realista – ele sempre está com fome e sente suas botas apertadas e preocupa-se com seus pés machucados. Tudo que quer é apenas dormir para ver se o tempo passa mais rápido.

“O tempo parece que passa mais rápido quando a gente de diverte”, afirma Estragon a certa altura, em seus jogos de palavras e diálogos infindáveis com seu amigo de desgraças.

O Tempo é a questão importante que perpassa os dois atos: os personagens perdem a noção de tempo – suas únicas referências são o por do Sol, o crepúsculo e a Lua cenográfica que sobe no fundo da paisagem desolada. No segundo ato, surgem pequenas folhas verdes na árvore aparentemente morta. Como nos antigos, o Tempo é regido pelas estações do ano, o Sol e a Lua. Em síntese, um tempo cíclico que poderia ser rompido com a chegada de Godot.

Vladimir e Estragon vivem uma situação análoga a prisioneiros em um campo de concentração? Sabemos que uma das técnicas para quebrar o moral de prisioneiros é fazê-los perder a noção cronológica do tempo.

No meio dos atos surge na curva daquela estrada de terra Pozzo (Alan Stanford), um pomposo aristocrata que trata seu criado Lucky (Stephen Brannan) como uma besta de carga, amarrado por uma corda no pescoço, arqueado, carregando uma mala, um banquinho e uma cesta. Pozzo parece rude, cruel e violento. Mas tudo o que quer é ser amado pela dupla de mendigos – busca a aprovação de seus interlocutores após longos discursos.

E sempre no final de cada ato surge o mensageiro de Godot: um menino (Sam McGovern) que sempre traz o aviso da impossibilidade de Godot vir ao encontro, mas que no dia seguinte virá. “O que devo dizer ao Sr. Godot?”, sempre pergunta ao final o menino a Vladimir. Que sempre responde triste e conformado: “diga a ele que me viu…”. 

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Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

1 Comentário

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  1. “A novidade”.

    Como já escrevi em outro comentário em Xadrez do Nassif sobre o Estado Policial, confirmo:

    – Como em Godot, a música A Novidade nos traz a (falsa) dicotomia entre o feliz poeta e o esfomeado, assemelhando-se a oposição entre a razão de Vladimir, e a sobreviência instintiva (ou lúdica) de Estragon, com uma única diferença que na música o esteticismo do poeta é apresentado como exemplo de racionalidade.

    No entanto, essa oposição entre razão (apriorística) e sobreviência intuitiva ou instintiva (empírica) é sempre FALSA!

    É desse sofisma que se alimenta o fascismo: ou seja, subtrair qualquer racionalidade da nossa necessidade de ter acesso a sobrevivência digna (e ela só será digna se for resultado de uma ação política pensada), ao mesmo tempo que coloca como impeditivo a essa sobrevivência (em seus aspectos mais sensíveis, como segurança, comida, casa, etc) o desejo pelo gozo a direitos e valores considerados dispensáveis a tal sobrevivência (como expressão, ir e vir, liberdade de culto, de escolha sexual, etc).

    Daí que colocado nesses termos, a grande massa opta pela renúncia a racionalidade, enquanto espera pelas recompensas concedidas pelo “grande pai”.

    Substituímos direitos por uma ideia distorcida de “merecimento”, e a dúvida científica pela relativização vulgar!

    Godot não vem, mas esperamos porque não nos resta mais nada a fazer.

     

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