Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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O que você vê quando fecha os olhos no filme “Eva”?

A chamada “senha sagrada”, a pergunta “o que você vê quando fecha os olhos?”, é uma bomba lógica e fatal para os robôs no filme espanhol “Eva” (2011), usada em situações extremas quando o robô deve ser imediatamente “desligado”. Com temática próxima a “I.A.” (2001) de Spielberg, o diretor Kike Maíllo evitou os clichês dos mundos sombrios, pós-apocalípticos e distópicos para colocar a questão em um futuro próximo ao focar os robôs dentro do problema central da inteligência artificial: a lógica linear e binária dos robôs não consegue entender os paradoxos lógicos como o que está contido nessa pergunta fatal. Sem vida interior os robôs somente enxergam a escuridão. Isso até tentarem fazer um robô especial que seja capaz de ver a Luz da consciência, mas com perversas consequências. 

“EVA” é um desses filmes difíceis de serem resenhados porque qualquer coisa que se escreva sobre ele corre o risco de transformar-se em um grande spoiler, matando a graça da narrativa. Isso porque o filme consegue realizar uma coisa que é o sonho de todo roteirista: uma narrativa bem amarrada a partir de um gancho perfeito. No caso de “Eva” o gancho é uma pergunta denominada por um dos personagens como “a senha sagrada”: “O que você vê quando fecha os olhos?” Uma pergunta que somente pode ser formulada a um robô em casos extremos, quando não resta outra alternativa. Em quais casos extremos? Quando robôs irremediavelmente se danificam, algumas vezes a ponto de ameaçarem seres humanos. Ao ouvir a pergunta, o robô imediatamente entra em colapso e desliga.

Em um futuro bem próximo, Alex Garel (Daniel Brühl – “Adeus Lênin” e “Bastardos Inglórios”) é um famoso programador de robôs que retorna à sua cidade natal dez anos depois para reencontrar sua antiga Universidade de Robótica e seu amor Lana (Marta Etura), pesquisadora e professora da Universidade, mãe de uma menina chamada Eva. Agora casada com o irmão de Alex (David Garel – Alberto Ammann), cria-se um triângulo amoroso que irá se tornar no tenso pano de fundo do projeto que envolverá todos: a criação de uma nova linha de robôs livres e autônomos.

Em busca de uma personalidade infantil ideal para servir de modelo para desenhar um inédito programa de personalidade para esse novo robô, Alex encontra na menina Eva a criança perfeita: inteligente, perspicaz e criativa.

“Criar robôs divertidos para pessoas entediadas”. É como David Garel define ironicamente toda a pesquisa e ensino da Universidade de Robótica. Por isso, pretendem revolucionar essa área tecnológica com o projeto do robô S.I-9. Vemos nas primeiras sequências como os diversos tipos de robôs participam da rotina dos humanos: como recepcionistas, dublês de animais domésticos ou garçons. São programações lineares, alguns dotados de certa independência (como o gato robótico de estimação de Alex), mas nenhum deles conseguiu alcançar o grau de inteligência autônoma.

O ponto chave do filme é a senha fatal para os robôs: “o que você vê quando fecha os olhos?” Por que os robôs entram em uma pane mortal ao ouvirem essa pergunta? Para uma inteligência artificial (I.A.) atual incapaz de lidar com paradoxos e níveis lógicos simultâneos, essa pergunta é totalmente irracional: como é possível enxergar algo estando com os olhos fechados? Sem estabelecer um nível meta, é impossível uma resposta que fuja à literalidade da pergunta. Dentro da lógica formal e binária robótica (olho aberto/fechado, ver/não ver), a dualidade não se supera e transforma-se em uma contradição insolúvel.

Desde a formulação dos tipos lógicos pelo filósofo Bertrand Russell (1872-1970) como solução para bloquear círculos viciosos em raciocínios lógicos (o estabelecimento do nível meta em um raciocínio onde se evitaria confundir classe com conjunto), esse passou a ser o desafio dos pesquisadores em I.A. Se um dia uma máquina solucionasse o famoso “paradoxo do cretense” (um cretense afirma: todo cretense é um mentiroso – se todo cretense é mentiroso, essa afirmação só pode ser mentirosa, porém essa mentira confirmaria que todo cretense fala a verdade: a de que todo cretense mente…) teríamos uma I.A. que finalmente estaria pensando , isto é, estabelecendo um nível “meta” ao seu próprio ser. A consciência na inteligência artificial.

Um robô nada enxerga com olhos fechados porque não é dotado de vida interior, não tem alma ou sonhos. A vida interior (o psiquismo) criaria esse nível meta impossível até agora para a I.A. Esse é o desafio que Alex Garel procura superar com o retorno à sua cidade natal: o design de um software de personalidade robótica tão rico e complexo que consiga, a partir da criação de sentimentos e emoções cada vez mais refinados, criar a vida interior psíquica em uma máquina. Ao invés de ver escuridão, ver Luz (Opa! Quase criei um spoiler!).

Cartografias e topografias da mente

 

Um dos momentos de maior beleza plástica do filme é quando Alex está no laboratório no porão de sua casa manipulando o software de design de modelos virtuais tridimensionais da personalidade robótica. A mente é representada como um enorme lustre onde cada pingente corresponde a “peças” do caráter: agressividade, orgulho, curiosidade etc. Depois de desenhado virtualmente é colocado em um protótipo que se movimenta e, simultaneamente, o software vai traçando um diagrama tridimensional das memórias criadas à base das experiências cinestésicas da máquina.

Em postagens anteriores discutíamos como o cinema atual vem refletindo a agenda tecnocientífica atual marcado por aquilo que denomino como projeto tecnognóstico: o esforço multidisciplinar envolvendo aas neurociências, ciências cognitivas, I.A. e teoria da informação para desvendar um dos últimos grandes mistérios da ciência: o funcionamento da mente humana e a natureza da consciência. A procura de uma simulação, um modelo computacional, uma interface gráfica que permita não só compreender a dinâmica dos processos mentais e da consciência, mas, principalmente, manipulá-la e controlá-la.

“Eva” é mais um exemplo, talvez o filme recente que melhor visualmente represente esse esforço em fazer uma verdadeira geografia interior, as cartografias e topografias da mente. Essa é a grande diferença entre “Eva” e “I.A.” de Spielberg: embora ambos tratem de narrativas sobre robôs infantis, em “I.A.” temos o ponto de vista dos robôs (abandono, desamor e solidão), enquanto que “Eva” são os robôs pelo olhar humano (poder, manipulação e controle).

As cenas em que Alex lida com uma interface gráfica tridimensional onde manipula livremente as peças/pingentes de um verdadeiro mapa da personalidade em forma de um imenso lustre é a melhor metáfora que se aproxima do imaginário tecnognóstico.

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Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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