Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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Filme “Nosso Lar” Teologiza o Espiritismo

Se aspectos da divisão do trabalho na produção e o meio de distribuição e produção influenciam a estética e conteúdo do filme, então “Nosso Lar” é um bom exemplo. Para adequar o livro original às exigências internacionalizadas de produção e distribuição, “Nosso Lar” teologiza o Espiritismo e o enquadra dentro de um “ecumenismo pós-moderno” da ideologia da nova ordem mundial globalizada.

 Muito se discute nos estudos acadêmicos sobre cinema do ponto de vista do meio produtor dos filmes (grupo de autores, técnicos, colaboradores da criação) ou os aspectos socioeconômicos (filme de produção independente ou não, aspectos de distribuição etc.) influenciam ou condicionam os conteúdos das produções.

O que mais vem chamando a atenção na área das pesquisas cinematográficas nas últimas décadas são as consequências da crescente internacionalização e globalização da divisão do trabalho da produção cinematográfica.

Por exemplo, autores como Prokop (MARCONDES FILHO, Ciro. Dieter Prokop, Coleção Grandes Cientistas Sociais, São Paulo: Ática) tem um particular interesse no que ele chamava de “análise da estrutura do produto cultural de monopólio”, isto é, como uma determinada forma de produção e distribuição monopolista do cinema norte-americano generalizava uma linguagem clichê ou estereotipada que, no final, refletia as condições econômicas de produção com as mesmas características.

Na atualidade, autores como Renato Ortiz ou Armand Mattelart (ORTIZ, Renato, Mundialização e Cultura e MATTELART, Armand, A Globalização da Comunicação) apontam para o fenômeno da “mundialização da cultura”. A época dos monopólios dos conteúdos norte-americanos foi substituída pelo movimento do “multiculturalismo”. Hoje todas as culturas nacionais podem, aparentemente de forma democrática, ter acesso ao mercado mundial, desde que sejam formatadas pelas rígidas categorias mais abstratas da produção cultural mercadologicamente bem sucedida: adaptação do produto cultural às exigências de uma linguagem globalizada (fotogenia, estilização, signalização, estereotipagem, estandartização etc).

As empresas cinematográficas distribuidoras funcionariam como verdadeiros gatekeepers, dando a chancela para produtos e conteúdos nacionais que sejam formatados pelo padrão de linguagem globalizada. O resultado é uma produção cinematográfica cuja divisão do trabalho é internacionalizada: cada etapa da produção cinematográfica (locações, composição e produção da trilha musica, pós-produção etc.) realizada em países e empresas diferentes.

O resultado são conteúdos nacionais filtrados por um padrão internacionalizado de linguagem: generalização e estereotipação mercadológica. A questão passa a ser a seguinte: até que ponto a integridade dos conteúdos (fidelidade ao conteúdo original, caráter nacional etc.) não estaria comprometida com essa filtragem?

Nosso Lar, O Filme

“Nosso Lar” é um filme brasileiro de sucesso estrondoso de público que parece ser um exemplo flagrante dessa “mundialização” do cinema brasileiro. Desde sua concepção, o filme foi “aerodinamizado” para isso, desde a coprodução com a Globo Filmes e a direção de Wagner de Assis (roteirista bem sucedido de filmes de grande sucesso de público como “Xuxa e os Duendes”, “Xuxa Requebra” e “Popstar”).

Confrontar o filme com o livro original de Chico Xavier/André Luiz para cobrarmos fidelidade é perda de tempo de qualquer crítica cinematográfica. Afinal, livro e cinema são mídias diferentes, cada qual com suas exigências próprias. Porém, no caso de “Nosso Lar” chama a atenção de como as exigências de mercado globalizadas (distribuição do filme feita pela 20th Century Fox) afetam o seu conteúdo de forma particular.

Como o próprio site oficial do filme apresenta nas notas de produção, o processo inicial de elaboração do roteiro começou com grupos de debates na sede da Federação Espírita no Rio de Janeiro. Porém, o resultado final foi a tradução do conteúdo espírita através da teologia católica e do ecumenismo pós-moderno para uma maior compreensão/aceitação da narrativa pelo grande público.

Sabemos que a doutrina Espírita não tem uma teologia: ela pretende ser uma ciência dos espíritos e, portanto, um estudo empírico e prático da realidade espiritual como campos vibratórios e fenômenos derivados do magnetismo. Todas as suas implicações éticas e morais podem ser sintetizadas na Lei da Ação e Reação, lei científica (influência do Positivismo reinante no século XIX, época do surgimento do Espiritismo pelos estudos de Allan Kardec) que procura explicar o destino do espírito não pelo julgamento religioso (pecado/salvação), mas pelas leis da evolução. Cada intencionalidade por trás de cada ação implica, no plano astral, em campos vibratórios mais ou menos “densos”, podendo criar entraves para a evolução do espírito.

 

Porém, “Nosso Lar” traduz essa leisutil de forma religiosa: Ação/Reação é substituída por Pecado/Punição. Um sintoma disso é como a personagem feminina Eloisa é apresentada no filme. No livro de Chico Xavier Eloisa aparece apenas no capítulo 19 (“A Jovem Desencarnada”) como uma jovem perturbada pela revolta por ter morrido tão cedo vitima da tuberculose, deixando o seu noivo na Terra. Dos 50 capítulos do livro, em apenas um a personagem é abordada apenas como exemplo de doenças espirituais decorrentes de perturbações vibratórias.

Mas no filme ela ganha um surpreendente espaço como aquela que, revoltada, tenta quebrar a hierarquia do Nosso Lar, fugir da cidade para, por conta própria, descer na Terra e reencontrar o noivo. Isso sem antes tentar André Luis, sabendo que também ele estava ansioso para rever sua família. André resiste à tentação e permanece nos limites dos portais do Nosso Lar, vendo Eloísa partir. Algumas cenas depois, Eloísa é resgatada num estado espiritual e mental pior ainda. Não resistiu às vibrações do Umbral. Pecado (quebra da hierarquia) e Punição (vítimas das entidades umbralinas). No livro Eloísa é um mero exemplo factual. No filme ganha dimensão moral, como exemplo do castigo em reação ao pecado.

Aliás, a representação do Umbral no filme tangencia com o purgatório ou inferno católicos. No livro a região é descrita como resultante das formas-pensamento humanas (noção Teosófica influenciando o Espiritismo) em densos campos vibratórios. No filme aparece como resultante da Providência Divina para punir as más ações na Terra.

As descrições dos aspectos do mundo espiritual são, no filme, substituídas pela personalização da narrativa em André Luís. Seguindo o paradigma Vogler de roteiro (a Jornada do Herói): Queda, resistência à missão, aceitação, tentação, “duelo final” (voltar à Terra e encontrar sua esposa com outro marido) e redenção.

Um sintoma disso é o episódio final da visita de André Luis a sua família na Terra. Se no livro ele é acompanhado por um grupo, cercado de todo um protocolo de segurança devido aos perigos vibratórios e magnéticos de tal empreitada, no filme ele vai sozinho, para ficar mais evidente na narrativa a natureza de “duelo final” da sequência.

 
Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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