Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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Filme “Trabalhar Cansa” disseca as superstições da classe média

O filme brasileiro “Trabalhar Cansa” (2011) a princípio confunde o espectador: É terror? Drama social? Realismo fantástico? A sensação de estranhamento a que são submetidos tanto espectadores quanto os protagonistas Otávio e Helena ajuda formar um tragicômico quadro dos pesadelos das classes médias. Ele, um homem de meia idade desempregado enquanto ela se apega ao ideário do empreendedorismo abrindo um pequeno mercado de bairro. De um lado Otávio se submete ao irracionalismo da religião autoajuda para suportar a realidade da precarização do trabalho; e do outro, Helena tenta compreender fenômenos supostamente sobrenaturais no seu mercadinho onde ao mesmo tempo crescem tensões trabalhistas. Dois instantâneos de uma classe social ao mesmo tempo agarrada no racionalismo da meritocracia e na irracionalidade da autoajuda, magia e astrologia. Na verdade, os dois lados de uma mesma moeda.

Na sua pesquisa sobre a coluna de astrologia do jornal Los Angeles Times em 1952, o pensador Theodor Adorno (principal membro da chamada Escola de Frankfurt) chegou à conclusão de que as previsões que as estrelas faziam para cada signo do zodíaco nada tinham a ver com o Oculto. Para Adorno, a astrologia de massas se tratava de uma “superstição secundária”: o oculto deixa de ser “o estranho” para se tornar institucionalizado, objetivado e amplamente socializado – Leia ADORNO, Theodor. As Estrelas Descem à Terra, São Paulo: Editora Unesp, 2007.

Mais ainda: a busca da felicidade por meio da “supertição secundária” não seria uma irracionalidade que operaria numa esfera exterior à Razão – ilusão, viciosidade, dependência emocional etc. Pelo contrário, ela resultaria dos próprios processos racionais do cotidiano das pessoas: o trabalho, competição, ascensão social, busca pelo mérito, sobrevivência material e sucesso financeiro.

O filme brasileiro Trabalhar Cansa (2011), que marcou a estreia na direção de longas dos criadores de curtas Juliana Rojas e Marco Dutra, explora esse imaginário da busca da felicidade (o torturante drama do imaginário das classes médias) que no dia-a-dia acaba transitando entre o real e o “sobrenatural” – ou “superstição secundária”, como dizia Adorno. Trabalhar Cansa traça uma surpreendente conexão entre o fantasma da precarização do trabalho que assalta as classes médias e o apego ao “sobrenatural” como um instrumento mágico da busca da felicidade e sobrevivência material.

A princípio o espectador poderá ficar perdido quanto ao tom da narrativa (É terror? Um drama social? Realismo fantástico?), mas deverá ficar atento ao paralelo entre os estranhos fenômenos que começam a irromper no pequeno negócio da família e a precarização do trabalho de um pai de meia idade desempregado.

O Filme

O filme acompanha a trajetória de Otávio (Marat Descartes) que perde o emprego na mesma época em que sua esposa Helena (Helena Albergaria) concretiza um sonho: ter o seu próprio negócio, um pequeno mercado de bairro. Por isso, chega a casa Paula (Naloana Lima) que será um misto de babá e empregada doméstica, contratada de forma precária, sem registro, pois a família já começa a enfrentar dificuldades financeiras.

Aos poucos, os papéis de Otávio e Helena se invertem. Ela se torna a chefe do lar, traz o dinheiro e sustenta a casa, trabalhando fora o dia todo, enquanto ele procura emprego e tenta pequenos bicos em casa, como telemarketing. As relações trabalhistas também ficam tensas, tanto entre Helena e os funcionários de seu mercado, quanto entre o casal e a empregada.

De repente o sobrenatural começa a entrar na vida de Helena. Todas as noites um cachorro late ferozmente para ela na frente do seu mercado; uma enigmática mancha de umidade começa a surgir em uma parede combinado com um cheiro fétido; um estranho líquido negro começa a brotar por entre as lajotas do piso; o proprietário do imóvel é estranhamente reticente quando fala do destino do inquilino anterior; estranhas movimentações noturnas entre as gôndolas do mercado, o que faz Helena instalar câmeras etc.

Aos poucos a narrativa começa a ser tomada por uma pesada simbologia: de um lado as tensões do desemprego e precarização do trabalho tanto de Otávio como da empregada Paula, e do outro o fantasma do sobrenatural que toma conta de Helena. O que poderíamos chamar de estranhamento e alienação começa a dominar a atmosfera do filme, que avança aparentemente sem ter uma solução, um ponto de virada que elucide todo esse estranhamento.

Mas a grande virtude do filme é estabelecer uma secreta conexão entre o precário destino profissional de Otávio e os fantasmas que dominam Helena no exato momento em que ela começa a se entusiasmar com a ideia de transformar-se em uma mulher de negócios e empreendedora. Qual é a secreta conexão entre esses dois plots narrativos de Trabalhar Cansa? Resposta: a “superstição secundária” de Adorno.

Trabalho precarizado e autoajuda

Depois de muito tempo trabalhando em uma grande empresa, Otávio é surpreendido com a demissão. Ele foi substituído por alguém mais jovem. Na meia idade, ele passa a ser atormentado pelo medo da inutilidade, de já ser considerado velho demais para o mercado, e de ver as cobranças da escola da sua filha e dos atrasos na conta de luz chegarem.

São marcantes duas cenas simbólicas da submissão de Otávio à precarização do trabalho: na primeira a gameficação do processo seletivo de uma empresa onde uma funcionária do RH submete os candidatos a uma dinâmica absolutamente idiota, enquanto enche uma bexiga vermelha para a próxima dinâmica ainda mais surreal. Na segunda, um jovem especialista em técnicas motivacionais corporativas dá uma palestra sobre a competição no mercado de trabalho, e submete o auditório a uma dinâmica de grupo idiotizante: sugere para cada um liberar o animal que viveria adormecido dentro de si, fazendo todos gritarem cada vez mais alto para acordar “a fera interior”.

Muitos pesquisadores como Lasch e Sennett veem o surgimento dessa subcultura das organizações baseadas em técnicas de autoconhecimento, autoajuda e técnicas de desenvolvimento pessoal como resultantes diretos de uma crise de propósito do trabalho e a descartabilidade generalizada do indivíduo. Para Sennett, por exemplo, quanto mais as organizações tornam-se flexíveis e as funções e cargos são reduzidos a equipes envolvidas em projetos temporários e terceirizadas, cresce a atmosfera de paranoia e medo em relação ao futuro – leia SENNETT, Richard. A Cultura do Novo Capitalismo. R. de Janeiro: Record, 2006.

O medo do fracasso e a introjeção da culpa criariam as condições do surgimento de uma verdadeira religião secularizada: a crença do pensamento positivismo (forma deteriorada da noção de fé nos antigas doutrinas religiosas) como forma de contato com o divino que estaria em cada um de nós. Isso se aproxima do conceito de “superstição secundária” de Adorno, da seguinte maneira: o misticismo e fé se transformam em instrumentos irracionais de busca da felicidade, assim como o horóscopo dos jornais, resquícios de antigos sistemas mitológicos.

De forma tragicômica acompanhamos como Otávio, outrora um profissional seguro de seu ofício, vai se submetendo ao irracionalismo da superstição da religião da autoajuda motivacional. Somente para conseguir empregos precários, comissionados e terceirizados. E assim como nas religiões onde introjetamos a culpa pelo pecado do mundo, da mesma forma a própria precarização do trabalho é introjetado como castigo por supostamente não termos pensado positivo o suficiente.

O pensamento mágico das classes médias

Ao longo do filme Trabalhar Cansa veremos que na verdade os fenômenos sobrenaturais que supostamente estariam ocorrendo no mercadinho de Helena e uma metáfora de outro aspecto do irracionalismo das classes médias: a crença de que feitiçarias, despachos, mal olhados ou inveja seriam os responsáveis pelo fracasso individual.

 

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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  1. trabalhar cansa, o trabalho original de cesare pavese

    TRABALHAR CANSA DE CESARE PAVESE

    Título do Livro

     

    SINOPSE

    Autor: Cesare Pavese

    Tradução: Maurício Santana Dias

    Introdução: Maurício Santana Dias

    Coedição: 7Letras

    Idioma: Bilingue (português/inglês)

    Coleção: Ás de colete

     

    Trabalhar cansa é o livro de estreia de Cesare Pavese, considerado um dos grandes escritores italianos e intelectual pertencente ao grupo formado na época da Segunda Guerra por Norberto Bobbio, Leone Ginzburg, Ellio Vittorini e Italo Calvino, entre outros. Com um verso mais narrativo, aberto à prosa da vida cotidiana, Pavese retratou as noites insones das cidades, as figuras de proletários, camponeses, prostitutas, bandidos, bêbados e mendigos vivendo seu drama diário. No contexto da Itália fascista, o poeta marca um momento de virada, renovação e revitalização da poesia italiana, dominada então por tendências mais herméticas e de “poesia pura”. Depois dessa primeira experiência, Pavese passou a dedicar-se quase exclusivamente à prosa, como em Diálogos com Leucó.

    O cansativo trabalho que é a existência

    O poeta piemontês Cesare Pavese

    Livro de estreia do destacado intelectual italiano expressa a solidão e a incompletude em poemas narrativos sobre o dia-a-dia piemontês

    No começo do século XX, quando a poesia mundial se inflamava de modernidade e as enumerações encadeavam-se, verso livre após verso livre, Cesare Pavese (1908-1950) recusou as linhas-mestras desta lírica moderna e, com projeto definido, pôs-se a escrever com a métrica clássica de anapestos e a falar de camponeses, adolescentes e bêbados que vagavam pelas colinas de seu Piemonte natal. Em 1935, Pavese estreou na poesia com Trabalhar cansa, que a Cosac Naify e a 7Letras lançam em edição bilíngüe pela coleção Ás de Colete.

    Este é o segundo livro do autor pela Cosac Naify, que em 2001 publicou Diálogos com Leucó (Coleção Prosa do Mundo), 27 breves conversas entre seres mitológicos em torno de questões fundamentais para Pavese, como o amor, a morte e a dor. Importante tradutor, editor e escritor, o poeta combina em sua obra uma formação clássica sólida, imersa no caldo cultural moderno da época convulsionada que viveu a Itália. Considerado um dos grandes escritores italianos, circulou entre os mais destacados intelectuais do período fascista: Norberto Bobbio, Tullio Pinelli, Massimo Mila, Giulio Einaudi, Leone Ginzburg, Natalia Ginzburg, Elio Vittorini, Italo Calvino e Vasco Pratolini.

    Reunindo 70 poemas escritos entre 1930 e 1940, Trabalhar cansa se compõe de três diferentes fases. No início, versos narrativos tradicionais de 1930 a 1933 combinam sua experiência das paisagens e figuras do Piemonte rural e urbano com a influência da cultura americana que lhe chegava pelos livros. Está nestes primeiros textos a declaração de seu projeto poético: uma poesia radicalmente objetiva e narrativa, antilírica, que, nas palavras do tradutor Maurício Santana Dias, tinha por objetivo “tentar fazer a poesia aderir à experiência e buscar romper o cerco de alienação que teria apartado a arte da vida”.

    Mais adiante, Pavese incorpora imagens, como havia de início evitado. Ao compor o primeiro poema da série “Paisagem”, postou entre colinas altas e baixas um eremita “alto e baixo, superiormente burlesco, a despeito das minhas convicções anti-imagéticas, da ‘cor de um freixo crestado’”, e descobriu, assim, a imagem. “Esta imagem, era, obscuramente, a própria narrativa”, diz Pavese em “O ofício de poeta”, escrito em 1934 e incluso em apêndice na presente edição. Os poemas finais deTrabalhar cansa, de “Paternidade” (1935) a “Noturno” (1940), apresentam uma poética mais subjetiva, que traz para o primeiro plano temas como a solidão e a inutilidade das ações.

    O ritmo adotado em 1930, no começo da composição dos poemas, pouco modificou-se ao longo dos dez anos. Para Santana Dias, que assina a introdução da edição, “é óbvio que essa regularidade extrema, longe de mimetizar o real, funciona mais como uma negação da realidade em que o escritor está imerso; ou seja, quanto mais o mundo à sua volta se tornava turbulento, excessivo, veloz, caótico, mais Pavese lhe impunha uma ordem clara e precisa.”

    A última fase dos poemas de Trabalhar cansa foi elaborada a partir do confinamento de Pavese na Calábria, entre 1935 e 1936, sob a acusação de trocar cartas de conteúdo político anti-fascista, e depois de uma grande decepção amorosa – a notícia, recebida na volta do exílio, de que a mulher que amava estava prestes a se casar. Tais fatos teriam acentuado o recolhimento e o silêncio naturais do poeta.

    Natalia Ginzburg, em seu livro Léxico Familiar (Cosac Naify, no prelo) deixa entrever, em seu relato, a personalidade de Pavese: “Vinha à casa de Leone [Ginzburg] todas as noites; pendurava seu cachecol lilás e seu casaco de martingale no cabide e sentava-se à mesa. Leone ficava no sofá, apoiando-se com o cotovelo na parede. Pavese explicava que não vinha lá por coragem, porque coragem ele não tinha nenhuma; e nem mesmo por espírito de sacrifício. Vinha porque, do contrário, não saberia como passar as noites; e não dava conta de passá-las sozinho. E explicava que não vinha para ouvir falar de política, porque ele ‘estava se lixando’ para a política. Às vezes fumava cachimbo, a noite inteira, em silêncio. Às vezes, enrolando os cabelos nos dedos, contava casos de sua vida. (…) À meia-noite, Pavese apanhava o cachecol do cabide, ajeitava-o depressa em volta do pescoço; e apanhava o casaco. Ia descendo o Corso Francia, alto, pálido, com a gola levantada, o cachimbo apagado entre os dentes brancos e fortes, o passo largo e rápido, o ombro encolhido”.

    Em texto exclusivo (veja a seguir), o professor de Literatura Portuguesa e Brasileira da Universidade de Roma “La Sapienza”, Ettore Finazzi-Agrò, ressalta a relação entre vida e obra de Pavese. “A obra poética de Cesare Pavese pode ser olhada pelo avesso, na contramão da sua formação artística e da sua existência humana, a partir justamente do fim, daquele suicídio gritante no silêncio de um quarto de hotel. Porque aqui a morte é o remate final – o ápice, talvez – de uma vida vivida na paralisia do não-lugar, no espaço oco e angustiante da insuficiência”.

    Trabalhar cansa foi inicialmente publicado em 1936, pela revista Solaria, com poemas compostos até 1935; em 1942, o próprio Pavese fez, pela editora Einaudi, uma edição excluindo sete poemas da publicação anterior e incluindo, além dos poemas que
    compôs até 1940, dois textos acerca de seu metier: “O ofício de poeta (a propósito de Trabalhar cansa)”, de 1934, e “A propósito de alguns poemas ainda não escritos”, de 1940. Neste último, ele define Trabalhar cansa como “a aventura do adolescente que, orgulhoso do seu campo, imagina que a cidade é semelhante, mas nela encontra a solidão e tenta remediá-la com o sexo e a paixão que servem apenas para desenraizá-lo e lançar para longe do campo e da cidade, numa mais trágica solidão que é o fim da adolescência”.

    Na apresentação deste apêndice, declara: “Qualquer que venha a ser o meu futuro de escritor, considero concluída com este texto a pesquisa de Lavorare stanca.”

    Leia dois poemas suprimidos pelo autor da edição definitiva do livro, pela Einaudi [Turim, 1943]: “Traição” e “Más companhias”.

    Natalia Ginzburg escreve sobre Pavese em “Retrato de um amigo” 

    SAIBA MAIS SOBRE CESARE PAVESE

    LITERATURA ITALIANA NA COSAC NAIFY
    Diálogos com Leucó, Cesare Pavese
    Um, nenhum, cem mil, Luigi Pirandello
    Conversa na Sicília, Elio Vittorini
    Homens e não, Elio Vittorini
    Léxico familiar, Natalia Ginzburg [no prelo]

    COLEÇÃO ÁS DE COLETE                                                               
    Poesia reunida [1969-1996], Orides Fontela
    Poemas [1968-2000], Francisco Alvim
    A rosa das línguas, Michel Deguy
    Sete pragas depois, Antonio Cisneros

    DADOS TÉCNICOS

    Autor: Cesare Pavese

    Tradução: Maurício Santana Dias

    Introdução: Maurício Santana Dias

    > Compre agora por R$ 74,00 pela loja virtual

    Páginas: 400; Ilustrações: 9;

    Dimensões: 216 x 141 x 28 mm;
    Peso: 0.580 kg; 
    ISBN: 9788575037591.

    Cesare Pavese: um antídoto ao cansaço de existir

    Figura d’uomo giacente (1853-1895), de Filippini Francesco. Oleo sobre tela | 100 x 231 cm | Coleção Musei Civici di Arte e Storia di Brescia [Itália]

    Por Ettore Finazzi-Agrò*
     

    É legítimo, para quem desconfia de qualquer interpretação baseada em dados biográficos, resumir uma literatura, uma ideologia, uma estética, uma inteira existência poética, enfim, na sua conclusão? Talvez seja possível (e, por isso, justo) apenas quando percebemos que aquela obra – em que se reflete a vida e vice-versa –, foi desde o início jogada no limite extremo entre o puro sobreviver e a vertigem do Absoluto. E quando percebemos, aliás, que esse cansativo trabalho que é a existência, esse demorar incerto e penoso num limiar precário, levou desde sempre um escritor a cultivar o “vício absurdo” da morte. De fato, a obra poética de Cesare Pavese (1908-1950) pode ser olhada pelo avesso, na contramão da sua formação artística e da sua existência humana, a partir justamente do fim, daquele suicídio gritante no silêncio de um quarto de hotel. Porque aqui a morte é o remate fatal – o ápice, talvez – de uma vida vivida na paralisia do não-lugar, no espaço oco e angustiante da insuficiência.

     Se existe, com efeito, um escritor que habitou fundo e de forma integral uma ambigüidade sem saída, este foi com certeza Cesare Pavese: entre a sua pequena aldeia natal (Santo Stefano Belbo) e a grande cidade industrial (Turim), entre tempos díspares e ambos marcados pela incerteza (o antes e o depois em relação à Segunda Guerra, período, este, que ficou, apesar de tudo, um tempo de certezas ferozes e de incontroversas experiências), entre o empenho político e o anarquismo ideológico, entre o amor pela literatura norte-americana e a devoção à cultura nacional, entre, enfim, a opção pelo realismo e a atração inconfessada pelo decadentismo. Instâncias, todas essas, que entram na definição, aberta e reversível, da sua poética: balançando entre verso e prosa, entre romance e poema, o escritor conseguiu, nesse sentido, dar voz ao seu dilacerante sentimento de inadequação, à angústia de uma condição dolorosamente imperfeita, desembocando no tédio de viver de forma sempre parcial e partida. Ler Pavese hoje, no nosso tempo ainda intempestivo e anacrônico, pode então representar um antídoto ao cansaço de existir, à consciência dolorosa de uma vida incompleta, ao sentimento de ser-pela-morte. Morte que é, desde o princípio, o nosso fim e que, quando chegará, terá talvez “os teus olhos”: o olhar de uma velha, silenciosa companheira em que, finalmente, nos espelharemos na nossa definitiva e (des)humana identidade, reconhecendo-nos na nossa patética – e todavia gloriosa – nudez.

    *Ettore Finazzi-Agrò é Professor Titular de Literaturas Portuguesa e Brasileira na Faculdade de Ciências Humanas da Universidade de Roma “La Sapienza”; diretor das revistas Letterature d’America e Studi Portoghesi e Brasiliani 
     

    Traição

    Cesare Pavese

    [Poema suprimido pelo autor da edição definitiva do livro, pela Einaudi (Turim, 1943)]

    De manhã não estou mais sozinho. A recente mulher,
    estendida na proa, faz peso no fundo
    da canoa, que a custo desliza nas águas tranqüilas
    e geladas, opacas do sono noturno.
    Superei o rio Pó turbulento e brilhante de sol,
    de ondas rápidas e de areeiros, e, vencendo uma curva
    após muitos vacilos, cheguei ao Sangone
    e o segui. “Que delícia”, ela disse em voz alta,
    sem mover o seu corpo supino, com olhos no céu.
    Não há alma ao redor e as margens são altas,
    mais estreitas em cima. cerradas de choupos.

    Como é tosco este barco nas águas tranqüilas.
    Sobre a popa, abaixando e erguendo o meu remo,
    vejo o lenho que avança empachado: é a proa que afunda,
    é a mulher com seu corpo que pesa. vestida de branco.
    A parceira me diz que é indolente e mantém-se parada.
    Solitária ela mira, deitada, as cimalhas das árvores;
    está como na cama e me atulha a canoa.
    Pôs agora uma mão sobre a água e a deixa espumar
    e me atulha até o rio. Eu não posso mirá-la
    _sobra a proa onde estende seu corpo_ e ela vira a cabeça
    e me fixa, indiscreta, de baixo, movendo a coluna.
    Quando peço que fique no centro e que saia da proa,
    me responde num riso matreiro: “Me quer bem pertinho?”.

    Noutras vezes, pingando de um salto entre os troncos e as pedras,
    prosseguia voltado pro sol e sentia-me tonto
    e atracando em um canto pulava de costas.
    ofuscado pela água e os raios, o remo de lado,
    acalmando o suor e o cansaço no alento
    da ramada e no abraço da relva. Ora a sombra se abrasa

    ao suor que se arrasta no sangue e nos membros exaustos,
    e a arcada das árvores filtra a clareza
    de uma alcova. Sentado na relva, não sei o que dizer
    e me aperto os joelhos. A parceira sumiu
    pelo bosque de choupos, sorrindo, e eu devo segui-la.
    Minha pele está exposta e dourada de sol.
    A parceira, que é loura, apoiando suas mãos
    sobre a minha e saltando na areia, deixou-me sentir,
    com a fragilidade dos dedos, o aroma
    do seu corpo encoberto. O perfume outras vezes
    era de água secada no lenho e suor sob o sol.
    A parceira me chama inquieta. Vestida de branco
    ela gira entre os troncos e eu devo segui-la.

    [25-30 de Junho de 1932] 
     

    Más companhias

    Cesare Pavese

    [Poema suprimido pelo autor da edição definitiva do livro, pela Einaudi (Turim, 1943)]

    Este é um homem que fuma cachimbo. Lá embaixo, no espelho,
    há um segundo que fuma cachimbo: se miram na cara.
    O real está calmo pois vê que aquele outro sorri.

    Antes vira outras coisas. Num fundo de fumo
    uma cara de dona inclinada a sorrir,
    e um idiota a lambê-la com os olhos, falando.
    E, falando, o idiota depois agarrá-la
    e arrancar-lhe um gemido. Um gemido idiota.
    E a mulher se dobrar, contraindo seus lábios,
    como se algo de nu golpeasse-lhe a vista.

    A mulher entretanto vê corpos de homens pelados
    de manhã até a noite, e se despe também
    e trabalha com ele, sorrindo. Ela escuta os gemidos
    e os emite, ao trabalho: e é meio trabalho
    um gemido bem-feito. Mas se ela está ali pra brincar
    com palavras, é duro também ver o outro.
    que em silêncio escutava o idiota falar.
    lampejar uma idêntica idéia brutal.

    Dona e idiota voltaram a soprar-se no rosto
    _assemelham-se um pouco mulheres e idiotas_
    e o cachimbo bafeja uma cara crispada.
    Na fumaça é possível fazer um esgar
    e cerrar as pestanas. A dona, sorrindo,
    se desvia daquele que fala e a oprime.

    [Outubro de 1933]

     

    http://editora.cosacnaify.com.br/SubHomeSecao/15/Poesia.aspx

     

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