“Florestan Fernandes é o protótipo do intelectual público”

Para José Nun, ex-ministro da Cultura da Argentina, sociólogo unia rigor acadêmico e luta por liberdade e igualdade

Por: Roberto C. G. Castro

O sociólogo Florestan Fernandes (1920-1995) era capaz de combinar, “firme e serenamente”, o rigor acadêmico com o compromisso político pela liberdade e pela igualdade. Nesse sentido, ele é o protótipo do “intelectual público”.

É o que afirma o intelectual argentino José Nun, em entrevista ao Jornal da USP, concedida por e-mail. Ministro da Cultura da Argentina entre 2004 e 2009 – durante o governo de Néstor Kirchner -, Nun conheceu Florestan em 1970 na Universidade de Toronto, no Canadá, onde atuaram como professores. Desde então, formou-se entre ambos uma “entranhável amizade”, como ele mesmo diz. Nesta quarta-feira, dia 22, completa-se o centenário de Florestan Fernandes – data que o Jornal da USP está comemorando com uma série de reportagens.

Autor de livros como La Marginación Social y CulturalEl Reinado de la Crisis: el Debate sobre la Historia Crisis Económica y Despidos en Masa, Nun, hoje com 85 anos, é um pensador conhecido por seus estudos sobre desenvolvimento econômico latino-americano. Segundo ele, os resultados de suas pesquisas nessa área coincidiram com as posições assumidas por Florestan Fernandes no Brasil. “As burguesias dos países mais avançados da América Latina não vacilaram em aliar-se ou fundir-se com os setores oligárquicos para defender seus privilégios”, resume.

Como ministro, Nun promoveu programas voltados para a democratização da cultura, entre eles o Livros y Casas, que busca popularizar a leitura através da formação de mediadores e da distribuição de livros. Ainda em funcionamento, o programa inspirou iniciativas semelhantes no México, em Cuba e na Espanha. Outro projeto de Nun como ministro da Cultura foi o ciclo Cafés Cultura Nación, uma série de debates literários e culturais realizados em diferentes instituições espalhadas pela Argentina, incluindo penitenciárias e quartéis.

O professor José Nun, ex-ministro da Cultura da Argentina –  Foto: FundacionTyPA via Youtube

Leia a seguir a íntegra da entrevista com o ex-ministro da Cultura da Argentina José Nun.

Jornal da USP – Como o senhor conheceu Florestan Fernandes?

José Nun – Pessoalmente, eu o conheci em 1970, na Universidade de Toronto, no Canadá. Naquele ano, fui convidado como Latin-American-in-Residence (professor residente) pelo Departamento de Economia e Política e Florestan atuava como professor titular no Departamento de Sociologia desde 1969, quando a ditadura militar o expulsou de sua cátedra na Universidade de São Paulo. Quatro anos antes, tínhamos nos conhecido por carta, quando Florestan era membro do Conselho Assessor do Projeto Marginalidade, que eu dirigia no Ilpes/Cepal (Instituto Latino-Americano e do Caribe de Planificação Econômica e Social/Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), em Santiago do Chile.

JUSP – Vocês participaram juntos de algum trabalho ou pesquisa acadêmica?

Não. O projeto anterior não passou de sua etapa preparatória e depois o transferimos para o Instituto Di Tella, de Buenos Aires, onde esse Conselho Assessor foi dissolvido.

JUSP – Qual a maior contribuição de Florestan na área da sociologia, na sua opinião?

Suas contribuições têm sido muitas, e também no campo da antropologia. Antes de tudo, ele é reconhecido por figuras muito diversas, que vão de Octavio Ianni a Fernando Henrique Cardoso, como o verdadeiro fundador da sociologia científica no Brasil. Nesse sentido e com posições teóricas diferentes, cumpriu uma tarefa similar à de Gino Germani na Argentina. Depois, desde uma perspectiva marxista crítica e não dogmática, que conseguiu valer-se dos aportes de Max Weber, por exemplo, lançou luz sobre as características da revolução burguesa no Brasil, refutando as interpretações baseadas nas teorias da modernização que se difundiram na América Latina desde os Estados Unidos nos anos pós-guerra. Por isso, sua vasta obra transcendeu amplamente as fronteiras do seu país.

Florestan é o fundador da sociologia científica no Brasil

JUSP – Florestan foi um grande batalhador pela educação pública universal. Como o senhor vê a atuação dele nessa área?

Como você bem disse, ele foi um grande lutador pela educação pública universal, laica e gratuita. Criado na pobreza e obrigado a ganhar a vida antes de poder terminar seus estudos primários, sabia por experiência própria o papel decisivo que joga a educação. Daí, por exemplo, seu compromisso com a Campanha em Defesa da Escola Pública. Como escreveu em 1991, “um povo educado não aceitaria as condições de miséria e desemprego como as que temos”.

JUSP – O que o senhor destaca do trabalho de Florestan como político, como deputado federal que participou da elaboração da Constituição brasileira de 1988?

Precisamente como deputado constituinte eleito pelo Partido dos Trabalhadores (PT), ele interveio muito ativamente nos debates acerca da educação pública, que considerava central para o desenvolvimento do povo brasileiro.

Ele refutou teorias da modernização que se difundiram na América Latina desde os Estados Unidos

JUSP – Quais livros de Florestan o senhor considera mais relevantes?

Não é uma pergunta fácil de responder, dada a vasta obra de Florestan, composta por uns 50 livros e numerosos artigos. Aprendi muito com Mudanças Sociais no Brasil, que me permitiu entender melhor a história social de seu país. E, desde logo, seu clássico A Revolução Burguesa no Brasil é a culminação de suas explorações antropológicas e sociológicas, que se distancia criativamente das visões estereotipadas acerca de seu país e tem exercido uma merecida influência sobre as gerações mais jovens.

JUSP – Em A Revolução Burguesa no Brasil, Florestan afirma que no Brasil não se formou propriamente uma burguesia, mas sim uma “autocracia burguesa” ainda muito ligada à oligarquia, que está na origem da exclusão social verificada hoje na sociedade brasileira. Essa análise serve para explicar também a realidade de outros países da América latina?

Desde os meus trabalhos dos anos 60 sobre as crises hegemônicas na América Latina, primeiro, e da massa marginal, mais tarde, minhas posições coincidiram em grande medida com as de Florestan. Acontece que as burguesias dos países mais avançados da América Latina sempre temeram mais os abusos da liberdade que os abusos do poder e não vacilaram em aliar-se ou fundir-se com os setores oligárquicos para defender seus privilégios. Assim, é revelador que aos modernos industriais paulistas resultasse funcional o atraso do Nordeste para reter nas mãos dos coronéis os excedentes de mão de obra de que não necessitavam. E que uma das causas da queda de Goulart tenha sido a campanha de alfabetização de Paulo Freire, que teria permitido a muitos desses camponeses votar pela primeira vez.

Como Florestan mostrou, burguesias da América Latina se aliaram a setores oligárquicos para defender seus privilégios

JUSP – O senhor disse que “as burguesias dos países mais avançados da América Latina sempre temeram mais os abusos da liberdade que os abusos do poder”. Pode explicar melhor?

Significa que tanto na Argentina e no México como no Brasil e no Chile é um fato histórico que, com todas as suas diferenças, as classes altas optaram por concentrar o poder (abuso de poder) e restringir a participação popular (medo do abuso de liberdade). É um fenômeno de larga data, que explica o hiperpresidencialismo inspirado na Constituição norte-americana. Nesse sentido, basta ler Madison ou Hamilton e sua preocupação na época pelo que Jefferson chamaria os “despotismos eletivos”.

JUSP – Como Florestan no Brasil, o senhor trabalhou muito em favor da cultura e da educação na Argentina. Como o senhor vê a situação da cultura e da educação nesses países hoje? Essas áreas avançaram depois da atuação dos senhores?

Em termos gerais, creio que efetivamente avançaram, apesar de muitos altos e baixos e com grandes desigualdades entre as regiões. Na área das inovações tecnológicas, por exemplo, a Universidade de São Paulo está entre as melhores do mundo. Em troca, em ambos os países e com traços diferenciados tem prevalecido até hoje uma concepção autocrática da política, que não diferencia entre Estado e governo e se manifesta em um ultrapresidencialismo que degrada a separação de poderes e corrompe tanto as instituições como as lideranças.

No Brasil e na Argentina, prevalece uma concepção autocrática da política, que se manifesta num ultrapresidencialismo que degrada a separação de poderes e corrompe as instituições

JUSP – Qual o maior legado de Florestan?

Ter sido (e continuar sendo) um protótipo do intelectual público, capaz de combinar firme e serenamente o rigor acadêmico com o compromisso político pela liberdade e igualdade.

JUSP – Poderia contar alguma lembrança pessoal que o senhor tem de Florestan?

São muitas, porque, a partir do nosso encontro canadense, desenvolvemos uma entranhável amizade. Mas há uma que soa insignificante mas que sempre recordo e me serviu de lição de vida. Numa manhã de domingo, em Toronto, passei para buscá-lo no seu pequeno departamento, porque iríamos assistir a uma reunião. Como nevava, eu temia que nos ficasse tarde, mas ele me pediu que o aguardasse um momento. Para quê? Para estender cuidadosamente a sua cama. Eu perguntei, rindo, se por acaso esperava alguém. Ele me respondeu: “Não. Faço isso por respeito a mim mesmo”.

A entrevista acima faz parte da série de reportagens Florestan 100 Anos, produzida pelo Jornal da USP em comemoração ao centenário de nascimento do sociólogo e professor da USP Florestan Fernandes (1920-1995), a ser completado no próximo dia 22.

Redação

1 Comentário

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  1. Eu tive um pouco de “dificuldade” para ler a entrevista por causa de “dúvidas acessórias”. Textos de veículos institucionais não correspondem diretamente à instituição em sua totalidade. Como os jornalistas bem sabem, até o mais liberal dos artigos e dos temas podem ter alguma finalidade além da “mera informação”. A pauta escolhida constrói, produz e reproduz uma linha, a “cara” do veículo. É possível, por exemplo, que a USP “da reitoria” e a USP “dos estudantes, funcionários e docentes” não sejam “homogêneos”.
    Não considero que a USP “da reitoria” (que deu um “golpe por cima”, ocultando relações com empresa de consultoria e impôs um “teto de gastos” na mesma estrutura imposta pelo Congresso Nacional) seja digna de orgulho ao intelectual Florestan que ora celebra.
    É preciso dizer e repetir. O aluno simples foi visto com ressalvas pela Faculdade que ingressou, por seus supostos pares. Como se dizia, “preconceito de classe”.
    Então, ao “celebrar” os 100 anos de nascimento de Florestan Fernandes, o que realmente está ocorrendo? Nestes momentos, são comuns as tentativas de se apagarem as diferenças em respeito ao celebrado. Mas, infelizmente, também é um momento de desrespeito, já que será lembrada a instituição. Então, no fim e ao cabo, o exercício final é o de autocelebração.
    O AI-5 que o levou ao exílio é uma obra de um de seus pares, é bom que não se esqueça.
    Gostaria que fosse uma mera especulação equivocada. Mas, depois de ver celebrações similares e compartilhar questões parecidas com amigos que frequentaram e frequentam locais semelhantes e presenciaram situações semelhantes, de orgulho autocrático por meio de uma sombra de empréstimo, cultiva-se a dúvida.

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