Frenético, alucinado, heterônomo: o corpo coagido [diálogos com a dança]

Blog Comportamento Geral

 
 
 Por Daniel Gorte-Dalmoro
 
 
No centro do palco surge o dançarino em uma dança frenética, no ritmo da música eletrônica que toca alta e das luzes que piscam e se movem – não como estrobo, que parcelam o movimento, mas vindas dos lados e de trás, fazendo com que tenhamos dificuldade em nos centrarmos naquele corpo que se apresenta genérico, se movendo sem sair do lugar. A música do tempo infinito. Me vem à mente o livro do psicanalista Tales Ab’Saber sobre a cultura eletrônica despontada sob o sol dos paradigmas neoliberais.

Acontece que O silêncio e o caos, do pernambucano Dielson Pessoa, não se propõe a falar, num primeiro momento, de cultura cluber: a obra foi concebida a partir do episódio de um surto psicótico do autor, em dois mil e dez, e dos quatro anos que se seguiram de tratamento.

Loucura, é disso que O silêncio e o caos trata – a questão é saber sobre qual loucura ele fala, de quais loucos.

Identifiquei nove momentos da coreografia. Do movimento solitário e frenético de um corpo genérico, Dielson desce à platéia, como quem almeja o encontro com o Outro. O sorriso vidrado e os movimentos estereotipados ininterruptos impedem um contato que não seja superficial e fugaz. Ele reclama cansaço, mas não pára – como se fosse obrigado a seguir sempre em movimento, sempre alegre. Dança pela platéia, retorna ao palco.

Como se a droga que usou estivesse perdendo efeito, ele vai diminuindo o ritmo, os gestos novamente vão se transformando, se sexualizando. Emerge um corpo andrógino, que logo se assumirá feminino – o corpo, não a pessoa. A feminilidade é interrompida por um corpo masculino antagônico: a marcha, a continência, o falar grosso. É no seu oposto que o protagonista afirma seu desejo. Dessa contradição parece emergir sua loucura: após isso ele pega um tecido, amarra à cintura – tem uma saia -; a seguir põe-no sobre os ombros – o transforma em manto – e proclama “eu sou o imperador!”. No fim, cobre a cabeça e lhe resta a coberta com a qual se escondem os miseráveis. Arranca-a, faz o sinal da cruz, grita – “essa é a minha natureza!”.

Delira. Afirma sua individualidade, sua desrazão o faz almejar ser sujeito numa sociedade reificada. Gesticula agressivo, fala sozinho, discute com seus espectros, desafia suas alucinações: “então me mata! Então me mata!”. Não se acomoda em lugar algum – não sabe se fica no palco, se fica na platéia. O corpo colapsado não consegue mais seguir o ritmo da música – que segue alta e intensa – e das luzes – cujos focos seguem piscando de diversas direções. A fissão entre o corpo do artista e o espaço que o rodeia causa um incômodo na platéia, que até então mergulhava ela também no ritmo alucinado da música e dos movimentos. Também eu colapso, acompanho o desfazer de Dielson, que não consegue mais acompanhar o ritmo imposto pela música.

Ele pára, se ajoelha, chora, ri. A música e as luzes dão uma pausa. Os gestos se tornam mais leves – segue a necessidade do movimento -, perdem aquela carregada carga sexualizada do início. É como se tentasse se descobrir, para além de rótulos, para além do provar para o Outro. Porém ainda há o Outro nessa busca solitária. Ele pergunta: “é aqui, deus, que você quer que eu fique?” – eu me questiono: quem é deus, que Dileson, como tantos outros, evoca? Com quem se dialoga quando se questiona as alturas? Ele parece achar seu lugar numa réstia de luz, vinda de detrás de grades.

A música eletrônica retorna, num ritmo mais tranqüilo, longe das batidas impositivas do início. Dielson já não traz o sorriso vidrado – sua face pode variar de expressão. Ele vai diminuindo seus movimentos, até calmamente parar. Uma pausa de quem reflete, de quem decidiu ficar parado, não de quem é coagido a ficar assim. Ele ensaia não mais movimentos, mas posições – de como se pôr diante desse mundo alucinado que nos força a nos movermos sem sentido e até a exaustão?

O final é redentor para Dielson – não para nós. Nós saímos da sala Jardel Filho para seguirmos dançando o ritmo alucinado que um mundo louco nos impõe – até nosso colapso, ou até termos coragem de enfrentá-lo para afirmar, sem nos violentar, nosso desejo de nos descobrir e de estar com o Outro.

 

28 de março de 2015.

 

blog: www.casuistica.net/dalmoro

Redação

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