Urariano Mota
Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".
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Homenagem ao gênio do compositor Nelson Ferreira, por Urariano Mota

No Recife, neste domingo é lembrado o grande compositor Nelson Ferreira.

O gênio e maestro do frevo partiu em um dia como hoje, em 21 de dezembro de 1976. Mas em vez de anotar “no Recife, neste domingo e é lembrado”, teria sido melhor dizer “no Brasil inteiro hoje deve ser lembrado o autor de Evocação número 1, que tocou todos os carnavais brasileiros”.

Do Dicionário Amoroso do Recife divulgo esta página. 

Nelson Ferreira *

Urariano Mota

Se a nossa vida se compusesse de carnaval a carnaval com ligação de massas de serpentinas e água entre os anos, haveria sempre um carnaval em que ouvimos pela primeira vez os frevos de Nelson Ferreira. É como se antes dele não houvesse carnaval. É como se nesses dias de álcool, de sexo, de sonho de sexo, de música de estrondar nas ruas, de fantasias, de mulheres seminuas, de homens vestidos de mulheres, do ridículo enfim que todos perdoam, é como se esses dias loucos não existissem antes de Nelson Ferreira.  Não sei se consigo dizer o que penso. Porque sonho dizer, e me acompanhem, por favor, nesta marcha.

Há uma impossibilidade de se falar de carnaval sem falar da sua gente. Há uma impossibilidade de se falar dessa gente sem o mais íntimo da gente. Há todas as possibilidades de falar da gente a partir de quando não possuíamos sequer um nome próprio. Como aqui neste passo de Nelson, no Carnaval da Vitória:

 

“O nosso bloco é ideal

nasceu neste carnaval….

                                      O nosso bloco é ideal

                                      nasceu neste carnaval..

                                      Por isso nós estamos a cantar

                                      cheios de glória

                                      Vitória! Vitória! Vitória!

                                      Vamos correr

                                      as ruas da cidade

                                      com o ardor

                                      da nossa mocidade.

                                      São só três dias

                                      tão cheios de loucura

                                      em que a gente esquece

                                      da vida a amargura…

                                      Cantemos, cantemos

                                      assim cheios de glória

                                      o Carnaval da Vitória!.”

 

Queremos dizer, Nelson Ferreira remonta a um tempo em que não era nosso sequer um nome próprio:

 

“O nosso bloco é ideal

nasceu neste carnaval…”

 

Queremos dizer: Água Fria era o maior bairro do mundo quando ali nascemos. Queremos dizer, se não entendem tão vã grandiloquência: em frente ao Cinema Império nascemos para o mundo e para o desejo. Queremos dizer, e melhor falo com olhos da memória puramente descritivos:

 

Em frente ao Cinema Império havia mulheres, meninos, homens, piratas, colombinas, vedetes, palhaços, toureiros, zorros, ursos, lança-perfumes, bisnagas, perfumes, promessas de corpos nus que não podíamos pegar. Havia um suor bom onde se colavam os confetes, umas peles abrasadas, uns sovacos mal raspados que eram em si mesmos fetiches de bocas nuas, todos comprimidos, esbarrando-se num fogo que desejava a tudo queimar, arder até a alma pobre da gente. Toquem mais alto. Uma explosão de braços e pernas no frevo, uma multidão revolta, uma humanidade negra, mulata, branca, revoltada, que se anunciava, e não sabíamos: atenção, menino, atenção, infância: “nós passaremos”. Toquem mais alto! O cemitério se anunciava? Acaso se anunciavam multidões de tumbas? Acaso sabíamos que todos iríamos morrer? Acaso sabíamos que nem uma sombra de sêmen e amor restaria no corpo bom, imperioso, flamante daquela mulher endemoninhada? Que suas coxas não seriam eternas, sabíamos? Ah, mas pressentíamos, e sem ciência aprendida, somente com o saber da urgência do nosso sangue, com a percepção transmitida de gente a gente, que corre a multidão, que vem de gerações desde que o homem se fez na terra, gritávamos:

“Cadê Mário Melo?

Partiu para a eternidade,

deixando em sua cidade

um mundo de saudade sem igual.

Foliões, a nossa reverência

à sua grande ausência do nosso carnaval…

De braços para o alto,

cabelos desgrenhados,

frevando sem parar

lá vem Mário!

Defendendo Vassourinha,

Pão Duro, Dona Santa,

Batutas, Canindés,

lá vem Mário!

Com ele já se abraçaram

Felinto, Pedro Salgado,

Guilherme e Fenelon…

E do palanque

sem fim lá do espaço

lá está Mário a bater palmas

para o frevo e para o passo.”

 

Esses compositores de frevo de Pernambuco tinham o dom de falar do sentimento da gente com uma voz que atravessava a parede de uma sala vizinha. Queremos dizer, não somos nós que falamos, mas se referem ao que sentimos com tamanha intimidade que são essa maravilha ainda não descoberta: um parente amigo da infância com quem não brigamos, que tem crescido em nosso afeto, nutrido no tempo incessante. Vejam: estamos no Savoy, na Guararapes, e entre confetes de repente nos lembramos que iremos morrer. Que não mais seremos aqueles meninos de calças curtas, de calção, suburbanos. Que somos matéria vulgar, carne sem categoria da alma. Que estamos a um passo do merecido e absoluto esquecimento. Que amamos pouco e mal. Vejam, então sentimos que este mundo, o nosso mundo, acabou. É mal sem remédio, acabou, mas nem por isso nos conformamos. E porque não nos conformamos queremos o seu renascimento. Nem que seja pelo artifício da memória, a nossa última humanidade. Vejam, porque então sem aviso nos damos as mãos e erguemos a voz:

“De braços para o alto, cabelos desgrenhados,

frevando sem parar

lá vem Mário…”

 

Vejam, somos nós que estamos voltando. A gente diz Mário para não dizer nossos próprios nomes. Vamos ao passado e de lá nos projetamos. Sinto que deve haver, há de ter uma razão para que os frevos de bloco sejam nostálgicos. Nostálgicos? Disse nostálgicos e emendo. Não é uma saudade mórbida do que se foi. Não é o desejo de voltar ao passado para ali se aninhar e de lá nunca mais sair. Não é; enfim, é uma reencarnação no corpo do que um dia fomos, como se fôssemos um médio espírita em crises recidivas de encarnação debiloide. Não. Nós voltamos, mas com a compreensão do presente. Se houvesse liberdade num escrito que se dirige ao grande público, eu diria com outras palavras que desejamos ter o falo grande com a irresponsabilidade e descompromisso da infância. Para fornicar incestuosamente, em primeiro lugar. Para fornicar aquelas mulheres que não pudemos ter, porque diziam que não passávamos de crianças. Mas tudo com a sensibilidade e inteligência amadurecidas. Porque no fundamental é isso: a busca de uma felicidade impossível. Ah se pudéssemos realizar no presente os desejos do que não pudemos ter! Os beijos que não demos, os carinhos a que um dia aspiramos, a fruta madura que se abriu deiscente para nós, e que, malditos estúpidos, não abraçamos! É por isso que no bar Savoy, o poeta Carlos Pena dizia que o refrão tem sido assim:

 

“São trinta copos de chope,

são trinta homens sentados,

trezentos desejos presos,

trinta mil sonhos frustrados.”                  

 

 

Por isso o frevo de bloco é irmão do frevo-regresso. Como neste eterno, de Raul Moraes:

 

“Adeus, ó minha gente, o bloco vai embora

sentindo que a alma chora,

e o coração fremente

diz, findou-se o carnaval.

Até para o ano adeus…”

 

Já dissemos em outra oportunidade que são de entendimento precário as palavras que falam de música popular a partir das letras das canções.  O recurso para o escrito é assemelhar-se à música pela imitação do mundo que a melodia evoca. Recurso precário já se vê. Primeiro porque de realização bem difícil. Significa, em palavras simples, tocar e trocar uma melodia por letras. Que me dizem? Seria possível tocar Vivaldi em palavras? Segundo porque a apreensão do que a canção me diz está longe de ser uma realidade objetiva, sua, de todos, sem diferença. Diante de tais obstáculos, de que serviria então o nosso atrevimento?  — Serviria, servirá, se fizermos do que nos atinge uma outra composição, que guarde com a música narrada a semelhança e a empatia do tema. E da verdade do que dissermos surgirá uma chama, esperamos.

 

Com o coral de Batutas de São José, imaginem então, se não puderem ouvir. Porque desejo dizer que houve uma vez, no carnaval de 1957, um menino perdido em meio à multidão do largo de Água Fria. Ele nem sequer se identificava no seu nome. Depois houve outra vez, outro menino, no carnaval de 1958. E outro em 1959, em 1960, até este 2014, quando volta a ser aquele magriço com um sentimento sem palavras, de olhos graúdos, somente ossos e olhos. Atingido por este feitiço da Evocação n˚. 1:

 

“Felinto, Pedro Salgado,

Guilherme, Fenelon,

Cadê teus blocos famosos?

Bloco das Flores, Andaluzas,

Pirilampos, Apôis-Fum,

Dos carnavais saudosos?

Na alta madrugada

O coro entoava

Do bloco a marcha-regresso

Que era o sucesso

Dos tempos ideais

Do velho Raul Morais:

‘Adeus, adeus, ó minha gente,

que já cantamos bastante..’

E Recife adormecia

Ficava a sonhar

Ao som da triste melodia…” 

 

Então vêm os acordes, letais. Que em letras de fogo deveriam estar gravados: https://www.youtube.com/watch?v=r4pR3H5QV0k

 

*No “Dicionário Amoroso do Recife”, Editora Casarão do Verbo, 2014 

Urariano Mota

Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".

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