Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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I Ching, Cinema e mundos quânticos na série “The Man in The High Castle”, por Wilson Ferreira

por Wilson Ferreira

Qual a relação entre o milenar livro-oráculo “I Ching”, o Cinema no século XX e a hipótese dos Múltiplos Mundos da Física Quântica? A busca dessas conexões é o desafio para o espectador que assiste à série da Amazon Studios “The Man In The High Castle” (2015 – ) livremente inspirado no livro do escritor sci-fi gnóstico Philip K. Dick de 1962. Um mundo invertido no qual os países do Eixo (Alemanha, Japão e Itália)  ganharam a Segunda Guerra Mundial e os EUA, destruídos pela Grande Depressão, foram conquistados pelo Reich e o Império do rei Hirohito. Porém, a posse de estranhos rolos de filmes de procedência misteriosa passa a ser politicamente importante tanto para Resistência como para Hitler: neles, outros mundos são revelados. Tal como no I Ching, devemos encontrar o imutável em mundos fugazes e em constante mutação. Mas pode tornar-se uma arma política: o controle do Tempo, passado e futuro de toda a humanidade.

Todos historiadores sabem que Hitler era obcecado pelo cinema. Muitos até especulam que a sua performance cênica em comícios tinha um quê de Chaplin e dos galãs canastrões dos filmes da época. Portanto, sua obsessão pelos filmes seria muito mais do que ver neles uma ferramenta de propaganda ou diletantismo estético.

Mas, e se Hitler tivesse um interesse pela arte cinematográfica muito mais específico e secreto? Não apenas como mera estratégia de propaganda,  mas o interesse por certos tipos de filmes que apresentassem futuros alternativos os quais deveria evitar, ajudando a formar o sonhado Reich de mil anos sobre a Terra. 

Livremente inspirado no livro do escritor gnóstico sci fi Philip K. Dick, a série da Amazon Studio The Man in The High Castle (2015-) mescla o aspecto fundamental da obra de K. Dick (o que entendemos por “realidade” como um contínuo de muitos mundos que se interpenetram) com muitos aspectos da chamada “parapolítica” – o Poder pensado muito além do campo tradicional da economia e política, mas também por motivações esotéricas e ocultistas.  

No livro homônimo de 1962, K. Dick mostrava uma História alternativa do pós-guerra pela lente da distopia, do romance e da ficção-científica. A estória se desenrolava nos Estados Unidos de 1962: quinze anos depois das potencias do eixo (Alemanha, Itália e Japão)  terem derrotados os Aliados na Segunda Guerra Mundial, os EUA foram divididos – da Costa Oeste até as Montanhas Rochosas ficou sob domínio japonês; e a Costa Leste sob o domínio do Império Nazista. E no Meio Oeste e Sudoeste, a chamada Zona Neutra sob forte tensão entre forças nazistas e do império japonês.

Um estranho mundo invertido

A realidade descrita por K. Dick parece um estranho mundo invertido. Os EUA não conseguiram superar a Grande Depressão dos anos 1920, tornando-se isolacionista e evitando envolver-se com a Segunda Guerra Mundial. O começo do fim foi a derrota naval para o Japão em Pearl Harbor e a explosão nuclear sobre Washington.

No livro, Hitler fica incapacitado pela sífilis e o novo chanceler nazista prossegue com o Império Colonial Nazi, massacrando as raças consideradas inferiores – massacram judeus em todo o mundo e comete genocídio maciço na África.

Nesse cenário conturbado surge um livro considerado proibido, cujo autor é o “Homem do Castelo Alto”, mostrando um futuro alternativo sobre como seria a História conforme a conhecemos – o Dia D, a derrota do Eixo e a vitória dos Aliados. O I Ching, o milenar oráculo chinês, tem papel fundamental na vida das pessoas e até mesmo na narrativa desse livro proibido. Uma verdadeira “ficção” dentro de outra obra de ficção.

Se no romance original o pivô é um livro que conta como seria a História se Hitler tivesse perdido, na série criada por Frank Spotnitz o Homem do Castelo Alto coleta estranhos rolos de filmes que são entregues por membros da Resistência. Ocasionalmente, agentes e espiões da SS conseguem roubar esses filmes para entrega-los diretamente a Hitler, em Berlim.

A natureza desses filmes e o motivo pelo qual Hitler e o Homem do Castelo Alto têm não só interesse por eles, mas também  o porquê de mantê-los em segredo do público é o mistério por trás das, até aqui, duas temporadas. Membros da Resistência são aconselhados a não assistirem o conteúdo dos rolos de filmes, mas apenas passarem para frente, escondendo-os dos nazistas até chegarem ao Homem do Castelo Alto.

A série altera o conteúdo do livro de K. Dick de três formas cruciais: o livro é substituído por rolos de filmes de natureza misteriosa coletados tanto por Hitler como pelo Homem do Castelo Alto; na série Hitler ainda continua vivo, porém com a saúde abalada pela idade; e, principalmente, a aproximação entre I Ching, Cinema e a existência de mundos alternativos capazes de interagirem mutuamente.

A Série

Juliana Crain (Alexa Davalos) mora em São Francisco e acaba se envolvendo com a Resistência ao tentar descobrir o destino de sua meia-irmã Trudy, desaparecida logo depois de dar a Juliana um  carretel de um filme intitulado “O Gafanhoto Torna-se Pesado” que retrata a história alternativa em estilo documental mostrando um mundo no qual os Aliados ganharam a guerra.

Esse rolo pertence a uma série de filmes coletados por alguém conhecido como “O Homem do Castelo Alto”. Juliana acredita que essas fitas retratam uma realidade alternativa que esconde uma verdade maior sobre como o nosso mundo deveria ser. 

Juliana deverá levar o filme para um contato da Resistência na Zona Neutra. Lá conhecerá Joe Blake, um agente duplo sob o comando do Obergruppenführer da SS John Smith – Rufus Sewell. Sua missão é roubar esse filme para a SS entregar a Hitler, além de delatar nomes-chave da Resistência.

Paralelo a isso, desenrola uma conspiração envolvendo traição e espionagem entre o Império Japonês e Nazista: Nobusuke Tagomi (Joel De La Fuente), Ministro do Comércio japonês em São Francisco, se encontra em segredo com Rudolph Wegener (Carsten Norgaard), oficial nazista sob o disfarce de um empresário em um encontro supostamente comercial. Ambos estão preocupados com o vácuo de poder depois da morte de Hitler e o ataque nazista contra o império japonês que viria imediatamente – os nazistas tecnologicamente estão muito à frente dos japoneses. Enquanto a aviação comercial alemã é feita por imponentes aviões à jato parecidos com Concordes e a conquista espacial já tenha alcançado a Lua e Marte, os japoneses ainda se deslocam em navios e aviões convencionais. 

Wegener que passar secretamente o know how da bomba nuclear para os japonês. O plano é equilibrar militarmente as duas potencias, criando uma espécie de Guerra Fria que impeça a deflagração de um conflito bélico.

A partir daí a série enreda-se em uma sequência de conspirações na disputa de poder no interior do comando do Reich, os planos japoneses em secretamente criar uma bomba nuclear ainda mais potente e destruir Nova York, o atentado ao príncipe herdeiro em São Francisco e a suspeita da SS estar por trás, a triste constatação de a Resistência ser ainda mais cruel do que os próprios nazistas, a tentativa de transformar a morte natural de Hitler em um atentado japonês como pretexto para deflagrar o ataque nuclear final contra o império japonês etc.

Muitos Mundos quânticos – aviso de spoilers à frente

“O Gafanhoto Torna-se Pesado”, título do misterioso rolo de filme, é uma alusão ao capítulo 12 do livro bíblico do Eclesiastes sobre a fugacidade da vida e a chegada à velhice quando as coisas pequenas podem se transformar em grandes fardos. A própria existência desses filmes representa a fugacidade do que compreendemos como realidade – a possível existência de muitos mundos alternativos que se abrem como bifurcações a cada momento-chave histórico ou pessoal.

A marca registrada da obra de K. Dick é certamente influência da chamada Interpretação dos Muitos Mundos (MWI em inglês), interpretação da mecânica quântica feita em 1957 por Hugh Everett – múltiplos mundos estariam nascendo a cada momento em múltiplas ramificações a cada escolha, incorrendo na chamada “decoerência quântica”. A questão é: a MWI permitiria a hipótese que esses mundos possam interagir ou que sinais possam ser trocados entre os mundos? No âmbito da Física Quântica há uma discussão em torno da hipótese dos Mundos em Choque (MC) – clique aqui.

Em The Man In The High Castle essa possibilidade é o ponto chave do controle político em jogo. Cinema é propaganda (a principal ferramenta usada pelos nazis na História). Mas é apenas uma narrativa construída para as massas aderirem ao Estado. Porém, de onde vem o Poder real?

 

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

2 Comentários

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  1. Sempre a mesma dúvida: e se

    Sempre a mesma dúvida: e se os hitleristas tivessem acordado com a comunidade judaica, inclusive, com a promessa da criação do estado de Israel, e perseguido (apenas) os outros? Teriam ganhado a guerra com apoio maciço e estariam empoderados até o presente? Ou, mesmo perdendo, de certa forma, os seus ideiais ganharam e estão entre nós, mesmo que “disfarçados” com outra nomenclatura?

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