Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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“Killer Cuisine” faz paródia surreal dos chefes de cozinha midiáticos

A série de curtas “Killer Cuisine” (2010) do norte-americano Ross Goodman é uma surreal e hilária paródia dos clichês da gastronomia midiática: um cozinheiro, cujo avô foi um açougueiro na Alemanha à época do nazismo, fuma compulsivamente na cozinha enquanto manipula alimentos e facas de forma agressiva, sob uma trilha sonora que varia de um melancólico blues às músicas de terror B nos anos 1950. Enquanto isso uma mulher é amarrada e embebedada com vinho branco à espera de ser o próximo ingrediente culinário. Os curtas são uma verdadeira aula sobre aquilo que em linguagem cinematográfica se chama “efeito Kuleshov” e também suscitam um debate sobre os alimentos regidos pela lógica do “look” e do “light” dos chefes de cozinha midiáticos. Veja os curtas.

O entorno do Shopping Eldorado em São Paulo parou em longas filas nesse último domingo para ver uma apresentação de Buddy Valastro, o chefe estrela do reality show televisivo Cake Boss. Ônibus de excursões, gente aguardando 24 horas na fila, pessoas dormindo em carros, tudo para ver o confeiteiro mestre dos bolos fazendo uma breve demonstração e posando para fotos com alguns sortudos.

Acabou a era dos programas culinários na TV com ex-donas de casa como a Palmirinha ou a “maravilhosa cozinha de Ofélia”. Hoje culinária virou Gastronomia e as tradicionais donas de casa foram substituídas por chefes de cozinha onde seus programas oferecem mais do que receitas e preparos de pratos para a família: transformaram-se em reality shows com histórias de empreendedorismo, vitórias e derrotas.

Se o leitor quiser um antídoto a essa midiatização generalizada dos alimentos com surrealismo combinado com pitadas de sátira e horror em torno da Gastronomia, então terá na série de curtas de Ross Goodman chamada Killer Cuisine um (desculpe o trocadilho) prato cheio. Nos curtas, o protagonista é um ensimesmado chefe que fuma compulsivamente enquanto cozinha, com um estranho sotaque que mistura inglês, francês e italiano às voltas com sua coleção de facas dispostas como numa sala de cirurgias. E para completar, seu avô foi um açougueiro alemão à época do regime nazista…

O irônico é que seus curtas são verdadeiras aulas culinárias: o primeiro curta ensina a fazer húmus com salada mediterrânea e o segundo, um prato de filé de frango recheado com queijo e ervas acompanhado de quinoa. Tudo com uma locução em of de uma delicada voz feminina, mas com toques de agressividade e violência: sim! Tirar a casca de um pepino ou abrir um peito de frango pode ser encarado como um ato cruel.

Cozinha retro e assassina

A série Killer Cuisine tem uma estética retro: em preto e branco (para que fluídos e texturas dos alimentos assumam estranhos aspectos) e com trilha musical entre melancólicos blues ou sons que saíram de filmes de terror B dos anos 1950.

Além disso, os curtas são uma autêntica aula de edição e montagem, principalmente sobre aquilo que em linguagem cinematográfica se chama “efeito Kuleshov”: a montagem (justaposição de planos, transições, trilha sonora etc.) pode levar a um conjunto de evocações do real, muito além do que aquilo que os enquadramentos estão objetivamente mostrando. No primeiro curta, os passos de uma receita de húmus e os manuseios dos ingredientes de uma salada podem se transformar em uma atmosfera de tensão e horror.

A sátira dos curtas de Ross Goodman parece não se voltar às origens antropológicas do alimento – aquilo que fez o homem transcender a Natureza e entrar no reino da Cultura ao superar a crueza dos alimentos através do fogo – o frito, o cozido e o assado. Seu alvo é a afetação da Gastronomia midiática que busca a popularização mantendo fragmentos de signos da alta Gastronomia – o uniforme do chefe, o sotaque francês, a taça de vinho branco para o chefe degustar a cada pausa como se buscasse inspiração artística. O toque politicamente incorreto são as baforadas de cigarro enquanto prepara os pratos. E uma vítima que é torturada e embebedada enquanto espera ser o próximo ingrediente da Killer Cuisine.

A cozinha ornamental, look e light

A midiatização dos alimentos produz aquilo que uma vez o semiólogo francês Roland Barthes chamou de “cozinha ornamental”: um tipo de cozinha que persegue o chic, a distinção, o exclusivo escondendo os alimentos nos molhos, cremes, coberturas, fondants e geleias. Uma cozinha que se esforça em atenuar, ou mesmo mascarar, a origem primária dos alimentos: a brutalidade da carne, o abrupto dos crustáceos, gosmas, fluídos, cascas e sementes.

Como não poderia deixar de ser, a culinária televisiva é uma experiência eminentemente cromática e visual e, por isso, deve ser regido pelos princípios do look e do light. Assim como o corpo tem que ser “descorporificado” (deve ser excluído tudo que lembre sua animalidade como a rugosidade, a textura, a resistência, a umidade, dobras, estrias etc.), da mesma forma do alimento e o próprio ato de comer devem ser neutralizados de tudo aquilo que lembre que ainda somos animais que descendem da natureza.

Um alimento não é simplesmente cru: ele foi lavado, cortado, descascado ou temperado. A fuga da natureza é reforçada por uma espécie de “barroco delirante”, como dizia Barthes: cogumelos recortados, arabescos de frutas cristalizadas, pontilhados de cerejas, raspas de cascas de limão, ingredientes montados em elaborados pratos com estampas coloniais. Envolto em uma complexa ornamentação o alimento acaba se tornando uma jazida incerta.

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Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

4 Comentários

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  1. Ate agora so vi o primeiro e

    Ate agora so vi o primeiro e eh uma obra prima!

    (Nunca vi hummus sem mostarda ou alho cru, e jamais colocaria cumin!

    (Tentando lembrar qual, mas eu fiz um prato tao raro outro dia que ate eu assustei, se lembrar eu digo.  Tudo coisa muito simples mas que soa como filme de… terror.  Como eu raramente consigo lembrar da ultima receita que usei pra fazer um prato…  nao vai acontecer cedo!)

    1. (Lembrei da historia de

      (Lembrei da historia de terror!!!

      Fiz uma janta de arroz, feijao, vinagrete, e cozido de pescoco de peru defumado (uma das carnes mais baratas e vulgares do mundo, so a uso pra defumar feijao mesmo;  como minha esposa nao gosta nem do peru nem das carnes de porco no feijao, tive que servir separado pois feijao pra ela tem que ser aioi e nada mais.  Uma saladinha qualquer acompanhava.

      Nesse exato dia e hora, chega nos um amigo americano.  Tinha o bastante e eu o convidei pra janta, evidentemente.

      So que…  tava uma delicia pra nos, e nao sei ate hoje o que ele achou -a ultima vez que comemos juntos eu servi salmao na casa dele.  Tou ate com medo de perguntar!)

  2. Bela Gil

    Vocês já viram a Bela Gil na TV?

    Essa mulher me fez renegar minhas origens, exceto na cerveja.

    Agora estou encarando grãos integrais, oleo de coco e muitas dicas que ela está apresentando num programa culinário na GNT.

    Juro que jamais pensei que ia absorver essa cozinha brasileira tão rapidamente e com tanto entusiasmo.

    *****

    O Ivan Moraes tem razão: Hummus tem que ter mostarda e alho cru. Nada de cumin!

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