Lembranças de um Brasil gentil, por Luis Nassif

Morreu o seu César, por muitas décadas barbeiro no bairro do Paraiso. A porta de ferro amanheceu fechada, com a nota de falecimento. Durante o dia, vasos de flores foram sendo depositados na porta por vizinhos solidários.

Recebo a foto da Fátima, irmã, ao mesmo tempo em que ouço no computador Guacira, de Hekel Tavares, na voz linda de Ana Salvagni. E me lembrei de muito tempo atrás, em que, toda noite, quando aparecia no bar do Massimo, a senhora pianista dedilhava as notas iniciais da música, sabendo de minha predileção.

O Brasil de delicadeza está vivo, mas sufocado, encoberto pela face macilenta do Brasil do ódio, da grosseria, da truculência, um Brasil das profundezas, dos valentões de bar, da retórica primária que supúnhamos ultrapassado.

Essa selvageria nunca acabou. Tempos atrás, nas férias em um condomínio fui tomar café em um quiosque. Nele, uma mocinha me perguntou se era pai e avô das menininhas. Disse que sim. E ela: são as únicas aqui que me tratam como gente.

Os visitantes eram da classe média paulistana. E era um ambiente aparentemente civilizado, com famílias se juntando em torno da piscina, ouvindo músicas, aparentando a tranquilidade dos de bem com a vida.

Muito tempo atrás, na então pequena Poços de Caldas, essas diferenças não existiam, nem mesmo entre os fazendeiros que frequentavam a cidade. E, em uma cidade fundamentalmente gentil, seu Oscar e seu Issa, meu pai e avô, integravam as referências que espalhavam a gentileza, o respeito, a solidariedade, ajudando com muitos outros, como dona Nini Mourão, doutor Martinho, Moleque César, os boêmios lights do tio Léo, a construir uma sociedade pacífica, leve, em que a truculência ficava restrita a um grupo pequeno de boys que só avançavam o sinal com as moças no footing da praça.

O que dói não é um bronco sem nenhum preparo tornando-se presidente, nem de sua família envergonhando o Brasil perante o mundo civilizado. Humilha, mas não dói, estimula a resistência. O que dói é perceber que a selvageria brasileira permaneceu adormecida na alma geral e avançou em todos os cantos do país, particularmente nas cidades do interior. Que aquele amigo próximo sempre conservou oculto, dentro de si, um selvagem individualista, preconceituoso, odiento, apenas contido pelas regras sociais.

Alguns anos atrás fui passar uns dias em Poços, reencontrei velhos amigos do GGN (Grupo Gente Nova), jovens que nos anos 60 tiravam o final de semana para trabalho social no Serrote, a favela de Poços, reuniões semanais para discutir Brasil e para as brincadeiras – como se chamavam os bailinhos em casas.

Em 1964 eles, mais velhos que eu, eram os principais críticos das marchadeiras, as senhoras que marchavam por Deus, pela família e pela propriedade. Pois, agora, em pleno 2010, repetiam os discursos, não deles quando jovens, mas das marchadeiras. Por onde se esconderam os Adnei, Sergio Peru, Zé Baixinho daqueles tempos, em que curva da vida descobriram o ódio e o preconceito como pontos de coesão? Hoje alguns deles, bem-sucedidos, contando que romperam com a visão de subordinação, de classe social mais baixa, frequentando nossas casas, levados pela amizade exuberante da prima Rosa Maria. Longe de sermos ricos da cidade, apenas socialmente incluídos. E nem assim entenderam a importância de se erodir diferenças sociais, de se fortalecer os mais vulneráveis. Intimamente agradeci a eles as demonstrações de respeito, permitindo que a reunião fosse apenas para relembrar episódios e músicas daqueles tempos, não para discutir a política de hoje.

 

 

E voltei para casa pensando na maneira como a parte civilizada do país, os cultivadores da solidariedade daqueles tempos, conseguiram definir regras de convivência que mantiveram por tanto tempo, ao menos no interior,  a gentileza se sobrepondo à grosseria, a solidariedade ao ódio vazio, mesmo sob  a violência e a exclusão histórica institucional.

E me dá um orgulho danado saber que os descendentes do seu Oscar, do vô Issa e do tio Léo atravessamos esses tempos de danação sem embarcar na radicalização e no ódio. Primos, sobrinhos, netos, espalhados por tantos pontos, unidos pelos grupos de rede social, mostraram que as sementes civilizatórias plantadas por eles germinaram em solo fértil. Não cederam ao ódio, à intolerância, ao preconceito.

 

 

Anos atrás passei o Natal com a Eugenia e minhas irmãs. Poucos dias antes havia morrido dona Canô, espécie de matriarca do Brasil, mão dos Velloso. Um vídeo com ela e os dois filhos célebres, Caetano e Bethania, cantando Tristeza do Jeca, marcou nossa noitada, recordando dona Tereza cantando o mesmo repertório, a música ajudando a construir a nacionalidade.

 

Luis Nassif

31 Comentários

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  1. Na impossibilidade de

    Na impossibilidade de depositar flores na porta da barbearia, mando meus sentimentos e um abraço respeitoso à família do Seu César. Que ele tenha ido de um Paraíso a outro. Quem fica por aqui assume o compromisso de não abandonar a gentileza e a solidariedade, por maiores que sejam as adversidades.  

  2. Nassif, sua crônica me remete

    Nassif, sua crônica me remete ao artigo da Eliane Brum, cujo título é perfeito: “A revanche dos ressentidos.”

    Me permita apenas uma pequena discordância, tanto de você como da Eliane: não creio que essas pessoas trouxessem guardado dentro de si esse fascismo, esse ódio, esses rancores, ou mesmo esses preconceiutos e fanatismo exacerbados que hoje presenciamos, atônitos.  Por um motivo penso assim: em 2002, quando Lula venceu, vários desses brasileiros marcharam junto a nós naquela ocasião.  E lembro com muita exatidão de um clima altamente cordial nas ruas, nos debates entre familiares e/ou amigos, eu mesmo brincava com muitos e recebia gozações de volta, os radicais agressivos eram uma minoria, nem dávamos bola para eles.

    Em suma, creio hoje, que O ÓDIO É ALGO QUE PODE SER ENSINADO A UMA SOCIEDADE, que trazemos diversas sementes em nós, desde as mais preconceituosas e odiosas, até às mais gentis, civilizadas, democráticas.  Lideranças civis e políticas, e homens transformados em “mitos”, como Sérgio Moro e Dallagnol, além da grande mídia é claro, que no Brasil, tem a Globo como uma espécie de “Oráculo”, têm um poder quase emagador sobre as pessoas “de mente fraca”, os propensos a pensar / sentir / agir como REBANHO……

    Por isso tenho a esperança que, um dia, uma mídia mais responsável, homens públicos idem, diferentes dessa mistura “azarada” que tivemos nesse tempo, de tanta gente sórdida e perversa junto, modifiquem em alguns anos essa cultura, que possamos VER que a frase dita por Mandela é verdadeira: “Se ensinam gente a odiar, então podemos ensiná-los a amar também” – porque tudo isso, na verdade, é sempre um proceosso de EDUCAÇÃO das pessoas, dos cidadãos.

    Cabe a nós, os que não conseguimos abrir mão dessa cultura antiga que nos humanizava, a da gentileza, da solidariedade, do respeito às diferenças, prosseguir, com nossas reflexões, ações e exemplos.

    1. Verdade, Eduardo
       

      O ódio é inoculado e tem efeito viral.

      Ele se espalha como fogo e tolda completamente  o entendimento de suas vítimas.

      Basta um doente infectado pela frustração de poder e inveja, e o contaminação se instala.

      O amor voltará, porque odiar cansa, e o ódio logo destrói tudo o que toca.

    1. Grupo de Gente Nova

      Foi aprimeira a experiência jornalística do Luís Nassif, que aos treze anos de idade, editou um jornal chamado Grupo Gente Nova em Poços de Caldas.

  3. NASSIF, ÓDIO COM IGNORÂNCIA É O PIOR

    ESTOU ESCREVENDO COM PRESSA, POR ISSO SEREI CURTO E GROSSO.   VOCÊ QUESTIONA MUITO O ÓDIO, MAS ELE É UM SENTIMENTO QUE ALGO FEZ BROTAR EM NÓS.   EU, POR EXEMPLO, TENHO MUITO ÓDIO DOS IDIOTAS QUE ESTÃO ESCULHAMBANDO ESTE PAÍS E TEREI MUITO PRAZER EM VER AS CARAS DELES DAQUI ALGUM TEMPO, SE É QUE UM CÂNCER CADA UM JÁ NÃO OS TIVER LEVADO (ESTE É MEU MAIOR DESEJO, JÁ QUE NÃO POSSO MATÁ-LOS).    MAS O QUE ESTÁ NA ORIGEM DOS ÓDIOS DELES, FACISTAS IMBECIS, CONTRA NÓS DEMOCRATAS. É A IGNORÂNCIA DESSES IMBECÍS O TEMPO TODO LENDO E TECLANDO EM SEUS SMARTPHONES, ACHANDO QUE ESTÃO SE INFORMANDO, QUE ESTÃO APRENDENDO ALGUMA COISA………MAS SÓ ESTÃO SE IMBECILIZANDO CADA VEZ MAIS E TROCANDO IMBECILIDADES, TROCANDO PRECONCEITOS, ENGORDANDO SEUS ÓDIOS CONTRA NÓS……………E DAÍ A GENTE CHEGA A TORCER PARA QUE FOSSE VERDADE A PREVISÃO DE ALGUM LUNÁTICO DE QUE UM ASTERÓIDE GIGANTE DIZIMARÁ A VIDA NA TERRA……ENFIM, NASSIF, NÃO ADIANTA ESCREVER CONTRA NOSSOS ÓDIOS, POIS ENQUANTO OS IMBECÍS NÃO SE EDUCAREM, NÃO APRENDEREM, NADA DETERÁ O ÓDIO DELES E CONSEQUENTE O NOSSO POR ELES………

    1. A cura
       

      Sim,

      a única cura para o ódio é não sentir ódio.

      Difícil, especialmente quando se olha para o coiso e se deseja o seu breve desenlace.

      Mas, é possível evitar que o ódio se alastre pelo nosso organismo quando pensamos em nosso bem estar.

      Ações sem ódio são as únicas capazes de desarmar o odiento.

      Fernando Haddad é um exemplo vivo dessa prática.

      Para o odiento a serenidade é a água sobre a  chama ardente, já que o ódio se alimenta de enfrentamento.

       

       

       

  4. Arf
    Eitaaaa….

    Eu imagino em que bolha vive Luís Nassif?

    Que gentileza e civilidade é essa?

    Ahhhhh… a que sempre manteve pretos e pobres nos seus lugares e as “mucamas” eram tratadas com eufemismos do tipo “é como gente da família”.

    Esse país que sempre tratou seus pobres como lixo, apesar de gestos aparentemente polidos, onde o ódio sempre esteve submerso em jargões cretinos como democracia racial, hospitalidade do carioca, gentileza mineira e tantas outras besteiras, esse país sempre foi um moedor de carne humana…

    Gentileza… putz…

    Talvez a única coisa boa disso tudo que passamos é a chance de desmascarar essa hipocrisia…

  5. Que saudades!

    Quantas saudades, Nassif. Quando você, saudoso, fala da antiga Poços de Caldas, penso em Taquaritinga, onde passei minha infância e adolescência. Desta vez, você mencionou Ana Salvagni. Tive um amiguinho, no então Jardim de Infância, chamado Ramiro Salvagnio Júnior, filho de minha professora. Outro Salvagni frequentou a mesma classe no Colégio. A voz serena e suave de Ana, porém, é muito presente nestes tempos sombrios. Faz com com que não vivamos apenas no passado. Afinal, a História não terminou.

  6. Lindo, maravilhoso

    Lindo, maravilhoso post!

    Repito, temos que impedir que o ódio venha para cá.

    Ainda agora, enviei para amiga Irene umas coisinhas sobre irenismo, termo/conceito que conheci ontem lendo livro “A Crise do Século XVII”, de H. Trevor-Roper.

    Conceito que, parece, foi criado por Erasmo de Roterdam em período de conflitos religiosos e políticos.

    Copio e colo uma fala dessa conversa pelo zap.

     

    Irenismo, entre outras coisas, é tolerância.É afirmação da necessidade da diferença para o progresso humano. Pra quem se interessa, esse Erasmo é dos bons.Na internet, fácil ler algo dele ou sobre ele. E falando em Erasmo … Pato Fu cantando  Roberto e Erasmo: https://www.youtube.com/watch?v=JcVTu-axstk

  7. AGRADECIMENTO AO NASSIF

    Nada melhor do ler e pensar sobre o que o Luis Nasif escreveu sobre suas lembranças de um Brasil gentil do qual eu tamb~em me lembro. Agradeço.

  8. AGRADECIMENTO AO NASSIF

    Nada melhor do que ler o artigo do Luis Nassif sobre suas lembranças de um Brasil gentil do qual eu também tenho boas lembranças. Agradeço.

  9. GGN e o ódio

    Nassif: Apavora-me pensar que nossos amigos, tão racionais, foram dominados pelo ódio e a irracionalidade. Precisamos estudar melhor o fenômeno, pois não foi natural nem instantâneo. Desde a década de 30, com as pesquisas de Donald Pierson e Ruth Landes, nossos vizinhos ricos procuraram entender o Brasil, no caso dos citados entender uma sociedade sem o terrível ódio racial deles, que quem morou lá bastante tempo sabe que é totalmente diferente de nossos preconceitos pré-campanha racialista. Com os dados, a partir da década de 50 começaram as ações, com o apoio a Abdias Nascimento, e depois com as pesquisas e ações coordenadas por FHC. Lula não entendeu o tiro no pé que estava dando apoiando as lutas identitárias, da maneira rancorosa que estavam sendo conduzidas, e que produziram uma reação forte dos mais claros e ricos  Tudo o que havia de mau em nossa natureza foi exacerbado, e finalmente aproveitado para a eleição, com todo o apoio da mídia, das mensagens em massa cuidadosamente dirigidas, e, pelo menos nos casos do Rio, Brasilia e dos senadores de Minas, também da manipulação das urnas. 

  10. A triste verdade é que o

    A triste verdade é que o Brasil é um país fundado no ódio e na hipocrisia. Nunca deixamos de ser assim. Já me indignei muito com nosso povo covarde e ingrato, mas hoje eu compreendo e aceito nossa condição. Hoje eu entendo que não há nada mais brasileiro que odiar o seu próximo. Quem sabe um dia isso mude, mas provavelmente não estarei vivo para ver isso.

    “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.”

  11. BozoNazi como espelho dessa
    BozoNazi como espelho dessa nação já é em si um ato e um convite a violência….esse Brasil saiu do armario em 2013, quando o MPL foi pirateado e virou o fake MBL….Sérgio Malando Moro sempre cinico e debochado para com o drama do outro disse que o Bozo é um lorde…Baby Doc fez escola

  12. “..lembranças dum BRASIL

    “..lembranças dum BRASIL gentil  ..mas que tinha o ódio adormecido..”

    uai  ..BRASIL hipócrita vc quis dizer ?!

    Eu penso que consigo explicar racionalmente MUITO do ódio existente, mas claro que jamais JUSTIFICÁ-lo, evidente

    A propóstio, a favela do SERROTE ainda existe? se sim, quer prova maior do ódio que persiste ?

    Ahh Nassif, cara, quem o lê pensas que é perfeito, você e o leitor identificado com o texto  ..não, NÂO SOMOS

    Muito do que esta ai, SEM DUVIDA, foi criado, inventado, urdido, tramado pro gente ruim, perversa, calculista

    ..mas muito tb encontra no desprezo do sofrimento, dos conceitos, valores, e do medo alheios, a raíz, a semente pra tanta discórdia

    FATO: as ditas correntes progressistas, a 13 anos no Poder (um tempo de desgaste suficiente), TAMBÈM se valeram do “nós estamos certos e eles sempre errados” (os cabeças de planilha, né ??!!), ou  “do que importa os que pensam contrário”, ou ainda, “do nós contra eles” pra alimentar este INFERNO que agora nos habita e domina.

    ..vai ser difícil sair dessa  ..pra quem acredita, só numa outra vida,

     

  13. Tempos atrás escrevi este

    Tempos atrás escrevi este comentário em outro post. Com alguma pretensão, acho que ainda vale.

    São João da Cruz foi um místico, sacerdote e frade carmelita espanhol, considerado o grande reformador da Ordem Carmelita e quem, juntamente com Santa Teresa de Ávila, fundou a Ordem dos Carmelitas Descalços.

    Conhecido por suas obras literárias, o seu tratado A Noite Escura da Alma é considerado o ápice da literatura mística espanhola. O tratado é, na verdade, um comentário ao poema de mesmo nome escrito no século XV, onde São João narra a jornada da alma desde sua morada no corpo físico até o encontro com Deus.

    A ‘Noite Escura’ de que trata se refere à escuridão, cujos vários níveis e estágios sucessivos representam as dificuldades que se apresentam no processo de purificação e avanço em direção à luz.

    São João, assim como outros santos que descrevem suas próprias experiências místicas nessa travessia – como a própria Tereza D’Ávila, Santa Tereza de Lisieux, entre outros – propõe que o único caminho é seguir adiante, apesar da insegurança, do medo, da própria cegueira, pois é fundamental ao processo de amadurecimento lidar com todas essas emoções.

    Ora, há a alma individual, mas também a coletiva, como esclarecem várias obras alquímicas. Não tenho dúvidas que a alma brasileira está em crise profunda: como sociedade passamos por cima de várias questões, deixamos vários esqueletos no armário, há vários fantasmas do passado que agora se apresentam para cobrar a conta. Não vamos avançar civilizadamente sem lidar com eles. É trágico, é doloroso, mas necessário.

    “Nada acontece em vão e nenhuma situação em que nos encontramos mergulhados é completamente refratária ao amor”, disse o Papa Francisco há exato um ano. “Nenhuma noite é longa a ponto de fazer esquecer a alegria da aurora. E quanto mais escura é a noite, mais próxima é a aurora”.

    Força, meus caros!

     

  14. Arf 2!

    Em qualquer outro lugar um texto com esse mereceria o rótulo de “cretino”.

    Mas Luis Nassif construiu um enorme capital de diálogo e paciência com uma série de ranzinzas (inclusive eu, é lógico).

    No entanto, eu me arrisco dizer que é sim, decepcionante, que ele expresse uma visão tão atrasada e conservadora do nossos processos históricos e comportamentais, por assim dizer…

    Começa pela abordagem individualista, aliás, um traço que têm se tornado comum a Nassif nos últimos anos, talvez por desencanto, talvez por desconhecimento, ou ambas, sei lá.

    Não se trata de buscar atos de bondade “individuais”, como “carinho” ou bom mocismo de tribunais ou ministérios públicos.

    Não é um problema pessoa de governança, afetos ou ódios.

    É o processo histórico, suas interações, causas, efeitos, enfim, aquilo que move as sociedades como um todo, e que só assim nos interessam, até porque é impossível pautar ou determinar comportamentos individuais como balizas a fenômenos sociais!

    Sendo assim, aquilo que ele enxergar como o fim do “carinho”, dos “bons modos”, incluindo aí amigos dele de longa data, e conhecidos pela etiqueta e fidalguia, nada mais é que a reação dos bem nascidos a presença dos excluídos nos lugares que antes lhes eram proibidos.

    Não é (só) ódio pessoal, é ódio de classe, fresquinho e renovado, nessa nova etapa de tropeço civilizatório.

    Mas esse sentimento não nos é exclusivo: Europa experimentou (e se lambuza até hoje), EUA então, nunca se livraram dele, e tantos outros recantos do planeta.

    Por isso tão importante quanto afastar ou combater esse ódio político de classes, é desmascarar essas condutas sentimentalistas como a do Nassif, que reduz tudo a questão de modos, de “vizinhança”…

    Porque essa ação reducionista, minimalista, é tão ou mais violenta em seus resultados históricos quando a manifestação de ódio explícita.

    Claro que a negra escrava “preferia” ser tratada como mucama que a ficar no chicote e no eito. Porém, para efeitos de sua condição de classe e dos seus, a relação de dominação estava ali, bastando qualquer dissenso nessa relação para que ela fosse lembrada de sua origem e condição.

     

    Então, Nassif, acorda meu filho, acorda antes que seja tarde!

     

    PS: o fato de suas netas e filhas tratarem bens os “negros e empregados” nunca deveria estar em um texto soando como “vantagem competitiva de etiqueta e bons modos”, pois essa ação é antes de tudo uma orbigação devida a todos, e não um favor!

    Aqui está explícita a armadilha ideológica do “bom mocismo”.

    1. Desculpe amigo

      Mas acho que Nassif sentiu apenas saudade. Afinal somos todos simplesmente humanos,  a quem poesia, a beleza a estética, o conhecimento e o carinho e a afeição o amor  e as lembranças são tão necessárias. E precisamos disto tudo principalmente em tempos bicudos.

      1. Arf.

        Sim, claro…há na História vários exemplos de estética, poesia, carinho, sob os quais foram cometidos as maiores barbáries…

        Aliás, sabia que a música clássica era trilha sonora dos campos da morte?

        E que no maravilhoso acervo das igrejas daqui (Ouro Preto) e de lá (Europa) estão manchados com o sangue, as vaginas, os intestinos e tantos outros pedaços arrancados de negros e índios?

        Pois é…

        Estás certo…afinal, somos todos humanos…e nada mais humano que aplacar consciência e ignorar conflitos com estética…principalmente se você estiver do lado mais forte!

        1. Meu coração ……

          E assim começava  Carinhoso

          a música de Pixinguinha, um clássico  de quem nunca  esteve do lado mais forte.

            Mas a vida é um moinho  e vai torturar teus sonhos tão mesquinhos…  de Cartola,

          Tambem nunca esteve do lado mais forte

          E de clássico em clássico podemos ir mais longe

          Leminski

          lua à vista
          brilhavas assim
          sobre auschwitz?

           

          Leminski

          Em Brasilia eu admirei

            Não a niemeyer lei,

                     a vida das pessoas penetrando no esquema,

                       como  a tinta sangue no mataborrão,

          crescendo o vermelho  gente,

                       entre  pedra em pedra,

          pela pedra adentro

          …………

           

           E mesmo na era da pedra lascada havia sempre aquela pedra no meio do caminho  de um Neander tal qualquer.

          ARF!!!!!!!!

          RuimBomMuito bomÓtimoExcelente 

  15. Chega de pedras lascadas!
    Nassif, a tua Poços e a minha contígua Alta Mogiana tinham àquela época a presença daquela autoridade que o “ditador” Getúlio Vargas havia valorizado em todo país, qual seja o professorado. Essa “subversão” ditatorial, tão grande ou maior que a criação da CLT e contraposição da Petrobras à Esso estadunidense, já havia levado a oligarquia paulista a abrir guerra contra GV em 1932 (dois anos depois do paulista Julio Prestes ter sido derrotado por ele na eleição presidencial…), através de uma “revolução constitucionalista” que pode explicar, mas nunca justificar, essa selvageria que acaba de eleger um “new-cowboy” paulista para a presidência do país, com direito à imagem das mãos simulando revólver elevada à condição de ícone. Fomos arrancados do alto de nossos cavalinhos de pau e dos lenços estilo John Waine em 1964, quando Jango Goulart ameaçava democratizar a Nação e completar o legado getulista. E novamente, como havia ocorrido em 32 (quando a campanha “ouro para o bem de São Paulo” havia raspado todas alianças, anéis e correntinhas doadas pela população para o bem do exército paulista), tivemos o lançamento da campanha “ouro para o bem do Brasil” pela rede Globo de então, os Diários Associados, com sua revista Cruzeiro, rádios e duas tevês, que teria arrecadado 400 quilos do vil metal ou o triplo disso, viabilizando inclusive o fortalecimento da TFP e as sucessivas eleições de Plínio Salgado e seu integralismo. Começa o declínio da educação européia que nosso Magistério privilegiava, substituída por uma educação moral e cívica defendida por Plínio Salgado em uma produção intelectual que Jorge Amado dizia digna de um “führer de opereta”, cheia de cretinice, idiotice e imbecilidade. O empobrecimento de nossa educação, precedido pela perda de prestígio e respeito que o professor desfrutava, é coadjuvado pelo declínio progressivo das bibliotecas públicas, pela extinção da obrigatoriedade de disciplinas como Geografia e História no currículo escolar, mas, acima de tudo, pela programação televisiva neo-liberal, que substituiu mocinhos por bandidos e naturalizou a violência pela violência e a lei do mais forte e bem armado como imperativo diante do esvaziamento da política de segurança pública preventiva que tínhamos. Nem o fracasso do Exército nos morros cariocas teve o condão de desmistificar esse ex-capitão que faz a apologia da tortura e dos torturadores para equacionar problemas gerados pela desigualdade social galopante dos últimos anos. Com isso, o clima de cordialidade e boa vizinhança cede lugar à nostalgia de um Esquadrão da Morte que matava impunemente os mais pobres durante a ditadura de 64. Toda uma cultura de pacifismo, trazida sobretudo por uma imigração que fugia das guerras e ideologias totalitárias, é colapsada quando o Judiciário e MP aderem ao golpismo e, sob o pretexto de combater a corrupção, endossam a retomada da perseguição aos que lutam por uma sociedade mais justa e igualitária — rotulados de comunistas e esquerdistas, seguidores de um ex-metalúrgico que ganhou fama mundial ao converter a luta contra a desigualdade social em fator indutor de crescimento econômico capitalista. Capitalismo na era do neoliberalismo de extrema-direita trumpiano, no entanto, é altamente subversivo, razão pela qual aqui estamos, lendo criticas veementes dos neandertais ao homo sapiens sapiens que ousa recordar os bons tempos em que jamais a Magistratura seria conivente com o banditismo pseudo-moralista que nos assola. Inclusive dos que enxergam nessa lembrança da sociedade melhor educada que tínhamos há meio século um sentimentalismo mais nocivo que o ódio que levou Bolsonaro à presidência na ausência forçada de Lula. Como se Nassif, depois de uma vida dedicada à melhoria da sociedade em que vivemos, estivesse ao alcance de suas saraivadas de pedras lascadas.

  16. Lembranças e saudades e tristezas de um Brasil não tão gentil

    Tenho lembranças e saudades e tristezas, de um Brasil   talvez não tão gentil. Mas era um Brasil onde brutos, arrogantes, preconceituosos, racistas ainda cometiam suas violências  dentro das regras de civilidade.Um Brasil da classe média, paradoxal, aquela que em seu germe tinha tudo que hoje vemos, mas que na busca por civilizar-se abrandava seus preconceitos. A  mesma que, nesta busca por civilizar-se gerou tantos poetas, tantos músicos e compositores, tantos pensadores e tantas almas sensíveis que me aguçam as saudades e as lembranças.

    Lembro de momentos que quase me levam a uma Poço de Caldas, mesmo que vivendo no  interior da Pauliceía desvairada. Afinal aquela São Paulo era apenas um amontoado de vilas , chamados bairros,  onde viviamos quase todo o tempo  e só em ocasiões especiais  íamos à Cidade , fazer compras no Mappin.  Tinhamos terrenos baldios, para jogar uma pelada, e locais onde se fazia o footing. Tinha até uma lanchonete no estilo antigo, onde  Dona Esther e seu Salomão faziam, eles mesmos,  um delicioso  sanduiche de carne moida que viria a ser o   hamburguer. Esta Lanchonete, viria a falir depois da febre do Joaquins Dog, a primeira versão do MacDonald e da tal modernidade.

    Mas já naqueles tempos  havia aqueles que  demonstravam todo o seu preconceito, e tentavam se afastar ou atacar negros, nordestinos e judeus e sobretudo  pobres . Pior ainda se voce fosse um pouquinho disto tudo.  Pretendiam com tudo isso pertencer ao  do bairro ao lado, queriam pertencer aos  jardins. Uma parcela, gostava de artes, de cultura de livros. Gostavam de música e poesia, mas a outra,  via o mundo pragmaticamente, o que quer dizer sem nenhuma poesia, apenas como um conjunto de metas e planilhas. Vinham a meus pais dizer que o importante era afastar os filhos dos livros e mandá-los ganhar dinheiro. E quanto às filhas, deviam buscar amizades que as elevassem, visando um bom casamento. Mas era também um tempo de rebeldia, esta que nos trouxe tanta música e poesia, cultura conhecimento que ia bem além dos limites da ascensão social. Muitos já naquela época ficavam preocupados com as amizades  e com o que iriam aprender  seus filhos naquela Universidade.  Lembro a tristeza de um pai com a filha musical e o filho literato, resmungando em sua mercearia  e perguntando onde tinha errado.

    Sequer se davam conta da crueldade que cometiam, nas escolas ou no cotidiano, e sequer se davam conta  do seu próprio preconceito,quando se deparavam com aquela célebre frase nas páginas de emprego dos jornais:” Exige-se boa aparência”. A versão antiga de cota para brancos.

    Mas ainda assim, tenho lembranças , saudades e tristezas, de um Brasil   talvez não tão gentil. Mas era um Brasil onde brutos, arrogantes, preconceituosos, racistas ainda cometiam suas violências  dentro das regras de civilidade. E de qualquer forma as flores  são um destes momentos de civilidade. Viva às flores e que floresçam  de novo os bons sentimentos!!!!

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