Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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Em “O Novíssimo Testamento” Deus não morreu – apenas se tornou inútil, por Wilson Ferreira

Por Wilson Ferreira

Deus existe, e ele está em algum lugar em Bruxelas. Arrogante e grosseiro, passa os dias digitando em um computador ultrapassado regras para tornar a vida de todos um inferno. Mas o que ninguém sabe é que Ele tem uma filha que está decidida a ser mais bem sucedida do que seu irmão, Jesus – libertar a humanidade do jugo de um Demiurgo através do Novíssimo Testamento. Esse é o filme “O Novíssimo Testamento” (Le Tout Nouveau Testament, 2015) do belga Jaco van Dormael, uma comédia de humor negro blasfema, herética mas, principalmente, gnóstica: se soubéssemos o momento exato da nossa morte, paradoxalmente viveríamos melhor a vida que nos resta, sem o medo do caos e do aleatório que impedem o nosso livre-arbítrio. Para Van Domael, Deus não morreria, mas se tornaria inútil.

O que faria o leitor se soubesse o dia, a hora e o minuto exato da sua morte? Continuaria levando a vida normalmente cumprindo seus deveres e reponsabilidades à espera do fim? Ou mandaria tudo às favas e realizaria tudo aquilo que seus deveres e responsabilidades não deixavam?

Mas quem enviou essa informação tão precisa e perturbadora? Uma pessoa que teve acesso ao computador de Deus, roubou as informações e, por vingança, as enviou para todos os celulares do planeta via mensagem SMS.

E essa pessoa é nada mais do que a desconhecida filha pré-adolescente de Deus (sempre lembramos apenas  de Jesus) que tem um plano para se libertar do jugo do seu Pai: voltar à Terra e escrever O Novíssimo Testamento. Mas desta vez, e diferente de Jesus, sem morrer antes e ter controle total sobre a sua obra.

Esse é o novo filme do diretor belga Jaco Van Dormael (Sr. Ninguém, 2009) que a crítica especializada vem definindo como uma “comédia blasfema”. O que para o Cinegnose significa uma comédia gnóstica. Se no filme Sr. Ninguém as referencias gnósticas eram altamente simbólicas onde o protagonista lutava contra o aleatório que interferia no livre arbítrio, em O Novíssimo Testamento a visão gnóstica sobre Deus e a Criação é bem mais explícita.

Deus existe é Ele mora recluso em algum lugar em Bruxelas. Rabugento, abusivo, desbocado e vingativo vive diante a tela de um computador ultrapassado controlando a vida da humanidade e sempre preocupado em evitar que os humanos tenham ideias de “fugir de toda a merda”. 

Os temas como Livre-arbítrio, Determinação e o Tempo desenvolvidos de forma simbólica e filosófica em Sr. Ninguém, em O Novo Testamento são expostos de forma direta e ironicamente divertida – se nascimento e morte são maquiavelicamente determinados por Deus em um computador, quando o homem tiver em suas mãos essas informações então poderá se libertar de toda dor e sofrimento impostos pela sociedade e ter a vida em suas próprias mãos. 

Então, Deus não morrerá: apenas se tornará uma ideia inútil.

O Filme

Sobre Jesus, filho de Deus, todos nós sabemos a história: veio para esse planeta para falar de um novo Deus, capaz de compaixão, perdão e amor, diferente do Deus de Moisés – onipotente, vingativo e castigador. Foi assassinado pelos romanos no meio da sua missão e ficou para os apóstolos o trabalho de interpretar a mensagem de Jesus.

Mas ninguém conhece a história da filha de Deus (chamada Ea – Pili Groyne) que vive com seu Pai em um sombrio apartamento em Bruxelas com a sua mãe (simplesmente chamada de “Deusa”) e as memórias do falecido irmão, transformado em pequeno adereço decorativo sobre um móvel que, vez ou outra, ganha vida e estimula sua irmã em seus planos de se libertar do Pai.

Ea é uma clara alusão ao mito gnóstico de Sophia (“Sabedoria”): aquela que caiu sob o jugo do Demiurgo, mas que secretamente procura ajudar o homem ao lembrá-lo que dentro dele está a Luz que o conecta à Plenitude.

“Não tenha ideias loucas como o seu irmão”, ameaça Deus grunhindo para Ea enquanto arrasta seus chinelos e um sujo roupão. 

Deus (Benoit Poelvoorde) passa o dia intencionalmente criando regras em seu computador para tornar a vida dos humanos mais miserável – a fatia de pão sempre cairá com o lado da geleia para baixo, sempre a outra fila andará mais rápida do que a sua ou um aborrecimento nunca vem sozinho. Deus brinca com maquetes de trens e cidades provocando acidentes e se divertindo com tudo.

E Deus maquiavelicamente se delicia vendo as pessoas tropeçando em suas regras e tornando tudo um inferno ainda maior.

Machista, Deus também torna um inferno a vida da sua esposa (Yolande Moreau – uma doce e simples dona de casa que faz bordados e coleciona cartões de beisebol) e da sua filha. Mas Ea tem um plano para se vingar do Pai e de ser mais bem sucedida do que seu irmão, Jesus. Ea invade a sala de controle, acessa os arquivos no velho computador e envia para cada um no planeta sua data exata da morte.

A princípio todos acham que é alguma brincadeira de algum hacker, mas quando todos começam a ver as pessoas morrerem (e sempre de uma maneira engraçada) logo percebem que é tudo verdade. 

As pessoas então começam a mudar radicalmente suas vidas, decidindo realizar seus projetos mais secretos nunca permitidos pelo deveres da vida: um sabe que tem ainda 20 anos para viver e decide deixar de ser medroso e começa a pular de prédios, aviões e precipícios. Sempre é salvo das maneiras mais engraçadas e inusitadas, porque sabe que não morrerá.

Outro decide passar o resto dos dias fazendo um Titanic com palitos de fósforos. Em todos há um efeito inesperado: deixaram de ter medo e deixaram de ter interesse em Deus.

O Novíssimo Evangelho

Ea decide escolher aleatoriamente seis pessoas para ouvir seus evangelhos, enquanto um sem-teto redige o Novíssimo Testamento: Catherine Deneuve decide mandar o marido embora e colocar um gorila do zoológico na sua cama, um menino de dez anos que decide viver o resto de seus dias como menina etc. De cada um deles Ea vai extraindo frases que a princípio parecem banalidades retiradas de algum guru de autoajuda.

Mas aos pucos Ea e seus novos discípulos acabam criando uma nova ordem social, bem mais agradável e sem o medo dos castigos divinos.

Mas Deus está irritado e vem atrás de Ea nas ruas de Bruxelas para descobrir que é incapaz de cuidar de si mesmo e ser vítima das próprias regras arbitrárias que criou para infernizar a Criação.

O filme é uma pequena fábula otimista e gnóstica cuja narrativa anárquica lembra um mix dos filmes de Terry Gilliam e Michel Gondry e com muito humor negro ao estilo Monty Python.

A grande “blasfêmia”

A grande “blasfêmia” de O Novíssimo Testamento é a moral gnóstica implícita: se o homem tiver o conhecimento, então Deus se tornará uma ideia inútil – a Criação será vivida agora em termos humanos e não mais pelo arbítrio de um Demiurgo.

Jaco van Dormael não deixa pedra sobre pedra – até o destino trágico do filho Jesus poderia ter sido uma conspiração do próprio Pai para que suas “ideias malucas” não inspirassem a humanidade a se livrar das milhares de regras que diariamente Ele digita em seu computador.

 

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

6 Comentários

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  1. Novíssimo ou Velhíssimo?

    Nassif: essa linha de pensamento não e nova. No século passado, por volta da década de 60, encontramos vestígios no chamado “Movimento da Morte de Deus”, com pensadores de peso, inteligência e sinceridade, numa linha de pura filosofia. Esse Jaco van Dormael parece não ir além de um simples rabiscador, tentando o caminho do lucro e da fama. Lembra mais aquela piada grotesca e, de certa forma, pitoresca, sobre o Padinho Cícero e a mulher em serviço de parto —“dando prá seguir eu e a minha mula pouco me importa se a mulher se desentupa ou não”.

  2. Será que aqueles 62 (?)

    Será que aqueles 62 (?) controladores do Mundo pelo dinheiro em algum momento preocupam-se  com a existência de Deus? Ou será que por força de seu poder tornarem-se eles próprios os criadores e os manipuladores da humanidade? Dizem que controlam até as intempéries. Pois é!!!

  3. Será que aqueles 62 (?)

    Será que aqueles 62 (?) controladores do Mundo pelo dinheiro em algum momento preocupam-se  com a existência de Deus? Ou será que por força de seu poder tornarem-se eles próprios os criadores e os manipuladores da humanidade? Dizem que controlam até as intempéries. Pois é!!!

  4. Erro básico. Descreveu o demo e “batizou” de Deus.
    Deus, que liberta os seres humanos, é descrito a seguir:

    Uma vez que os filhos têm todos em comum a carne e o sangue, Jesus também assumiu uma carne como a deles. Assim pôde, por sua própria morte, tirar o poder do diabo, que reina por meio da morte.Desse modo, Jesus libertou os homens que ficavam paralisados a vida inteira por medo da morte. Ele não veio para ajudar os anjos, e sim para ajudar a descendência de Abraão. Por isso, teve que ser semelhante em tudo a seus irmãos, para se tornar sumo sacerdote misericordioso e fiel em relação às coisas de Deus, a fim de expiar os pecados do povo. De fato, justamente porque foi colocado à prova e porque sofreu pessoalmente, ele é capaz de vir em auxílio daqueles que estão sendo provados. ( Carta de São Paulo aos Hebreus 2,15-18)

    * 5-18: A Lei transmitida pelos anjos não é capaz de abrir o mundo novo da salvação. A alienação produzida pelo mal, pelo pecado e pelo medo da morte exigem transformação radical da condição humana. Encarnando-se, Jesus se torna irmão solidário dos homens e assume totalmente os problemas deles, chegando a entregar-se à morte para introduzir os homens no reino da vida. A cruz é o seu sinal de glória e honra: o Filho de Deus feito homem e crucificado foi glorificado e agora domina o universo (cf. Fl 2,6-11). A humanidade encontra em Jesus um seu semelhante, capaz de ser sua garantia junto de Deus, como verdadeiro sumo sacerdote (v. 17). Os vv. 17-18 apresentam o tema central do sermão, que vai ser desenvolvido nos capítulos seguintes, a saber: Jesus é o sumo sacerdote, fiel a Deus e solidário com os homens.

  5. Mais sobre Deus:
    Judas, não o Iscariotes, perguntou: «Senhor, por que vais manifestar-te a nós e não ao mundo?» Jesus respondeu: «Se alguém me ama, guarda a minha palavra, e meu Pai o amará. Eu e meu Pai viremos e faremos nele a nossa morada. Quem não me ama, não guarda as minhas palavras. E a palavra que vocês ouvem não é minha, mas é a palavra do Pai que me enviou. Essas são as coisas que eu tinha para dizer estando com vocês. Mas o Advogado, o Espírito Santo, que o Pai vai enviar em meu nome, ele ensinará a vocês todas as coisas e fará vocês lembrarem tudo o que eu lhes disse.» ( João 14,22-26)

    ________________________________________
    * 14,1-14: Jesus é o verdadeiro caminho para a vida. Através da encarnação, Deus, doador da vida, se manifesta inteiramente na pessoa e ação de Jesus. A comunidade que segue Jesus não caminha para o fracasso, pois a meta é a vida. Jesus não apresenta apenas uma utopia, mas convida a percorrer um caminho historicamente concreto. Inspirada nos sinais que Jesus realizou, a comunidade criará novos sinais dentro do mundo, abrindo espaços de esperança e vida fraterna.

    * 15-26: Advogado é alguém que defende uma causa. Jesus envia o Espírito Santo como advogado da comunidade cristã. O Espírito é a memória de Jesus que continua sempre viva e presente na comunidade. Ele ajuda a comunidade a manter e a interpretar a ação de Jesus em qualquer tempo e lugar. O Espírito também leva a comunidade a discernir os acontecimentos para continuar o processo de libertação, distinguindo o que é vida e o que é morte, e realizando novos atos de Jesus na história.

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