Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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Nossas vidas são estradas e escadarias infinitas no filme “El Incidente”, por Wilson Ferreira

por Wilson Ferreira

Será que na realidade somos como pobres hamsters prisioneiros de uma roda que gira eternamente sem nos darmos conta da nossa terrível situação?  Será que repetimos sempre os mesmos gestos, em um mesmo cenário, sempre com os mesmos efeitos e as mesmas consequências? Poderia ser essa a definição de loucura: tentar resultados diferentes repetindo a mesma rotina? Duas estórias paralelas com personagens presos em loops espaço-tempo eternos – um grupo em uma escadaria e uma família prisioneira em uma estrada infinita na qual o sol nunca se põe. Esse é o filme mexicano “El Incidente” (2014) do jovem diretor Isaac Ezban. Uma ambiciosa ficção científica metafísica que aproxima as geometrias impossíveis de M.C. Escher com o universo conspiratório de Philip K. Dick, procurando aproximar a hipótese da existência dos mundos paralelos da cosmogonia dos diversos “céus” dos antigos gnósticos.

O surpreendente filme mexicano El Incidente, do jovem diretor Isaac Ezban, tenta responder essas questões através de uma ficção científica metafísica que mistura o pesadelo conspiratório de Philip K. Dick com o tempo/espaço impossível das gravuras do artista holandês M.C. Escher.

A estrutura temporal e espacial que nos cerca seria composta por realidades alternadas que são habitadas por personagens aprisionadas em um loop eterno, condenadas a transitar o mesmo espaço ad infinitum sem a possibilidade de encontrar uma saída. 

Filmes sobre protagonistas prisioneiros em loops espaço-temporais são comuns no cinema, desde O Destino se Repete (1947): 12:01 PM (1990), Feitiço do Tempo (1993), Inferno na Estrada (1997), Primer (2004), Crimes Temporais (2007) ou Triângulo do Medo (2009). A diferença é que El Incidente faz uma abordagem através de uma cosmogonia gnóstica: uma certa concepção de que as energias que alimentam e põem em funcionamento esse mundo provêm de diversas realidades alternativas com protagonistas prisioneiros que sofrem ou têm prazeres. Mas de toda forma resistem. Infernos sem saída que geram energia que alimentam o nosso cotidiano.

Dessa maneira, El Incidente está muito mais próximo do universo conspiratório de Matrix do que dos habituais filmes sobre eterno retornos temporais.

Ao mesmo tempo El Incidente é uma alegoria sobre as dinâmicas sociais que aprendemos desde que somos criança e continuamos a repetir como adultos. O aspecto fatalista da existência como repetição. E o que é pior: e sempre esperamos pelo novo, apesar de repetirmos pensamentos e atitudes, muitas vezes da pior maneira possível. 

 

É um filme ambicioso, que muitas vezes faz lembrar o teatro do absurdo de Esperando Godot de Samuel Beckett ou a peça de Sartre Entre Quatro Paredes – três personagens morrem e chegam a um Inferno sem demônios ou fornalhas: apenas quatro paredes que os condenam a conviverem por toda a eternidade confinados naquela sala.

Algumas vezes o roteiro se perde com ideias muito gerais, enxurradas de alusões como gravuras de Escher, o livro de K. Dick Time Out of Join (1959) e explicações abruptas. Parece que o roteiro não consegue conter o fluxo incontrolável de ideias do diretor Isaac Ezban. 

Talvez seja o preço a pagar pelo atual cinema mexicano praticamente ter ignorado o gênero sci-fi. Por isso, Ezban parece querer fazer bastante barulho com sua “ficção científica metafísica”, como define. Mas os acertos parecem muito maiores do que as falhas e os exageros.

O Filme

El Incidente divide-se em duas narrativas paralelas que, a princípio, parecem não estar relacionadas. Na primeira estória acompanhamos os dois irmãos Carlos (Humberto Busto) e Oliver (Fernando Alvarez) com sérios problemas financeiros que veem seu apartamento ser invadido por um detetive da polícia corrupto (Marco – Raul Mendez) que tenta extorquí-los.

A segunda segue os passos de uma família que empreende uma viagem de férias: Sandra (Nailea Norvind), acompanhada de seu marido Roberto (Hernán Mendoza) um casal de filhos, pretendem fazer uma viagem de carro até o litoral.

 

Nas duas estórias ocorre um “incidente”: todos ouvem a certa altura um estrondo de uma grande explosão misteriosa e indeterminada, uma espécie de fratura tempo-espaço que, a partir daquele momento, altera totalmente o destino dos personagens.

Na primeira estória os irmãos reagem, um deles é baleado e fogem através da escadaria do prédio, perseguidos pelo policial. Após o misterioso “incidente”, as escadarias tornam-se infinitas, assim como a escadaria da gravura de Escher de 1951 – ao se chegar no andar térreo, transforma-se no nono andar. Todas as portas dos andares estão fechadas dentro desse loop espacial. E por uma estranha razão os produtos de uma máquina de refrigerantes e comidas são sempre repostos, assim como muitos objetos voltam a aparecer num estranho eterno retorno.

O mesmo ocorre na segunda estória: após o misterioso estrondo, a paisagem da estrada começa a se repetir: a mesma placa, o mesmo posto de gasolina, a mesma loja de conveniências etc. Uma estrada infinita onde sempre é dia e o Sol nunca se põe.

Os anos, décadas se passam com os personagens tendo sustento para viver, comida, água, espaço e companhia. Mas não conseguem sair dessas verdadeiras prisões espaço-temporais.

Passam-se os anos e a única coisa que se modifica são as relações pessoais: alguns personagens caem na decadência absoluta, outros começam a estabelecer estranhos rituais cotidianos e religiosos. Os mais jovens tendem a ser mais estoicos e resistentes, enquanto os mais velhos caem na melancolia, desespero ou puro hedonismo.

Em ambas narrativas os personagens parecem se transformar em espécies de novos Sísifos – aquele personagem mitológico condenado pelos deuses a empurrar perpetuamente montanha acima uma enorme rocha, para a pedra cair e repetir a mesma ação indefinidamente.

 

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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