Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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O Anti-nostálgico “A Vida em Preto e Branco”

As décadas de 70 e 80 foram marcadas pela nostalgia em filmes como “Star Wars” ou “De Volta Para o Futuro”. Ao contrário, “A Vida em Preto e Branco” (Pleasantville, 1998) desmistifica a nostalgia em uma década onde ela não era mais necessária por motivos ideológicos para Hollywood. Em um intrigante roteiro metalinguístico (repleto de analogias religiosas e bíblicas), um seriado em preto e branco da década de 1950 vai se tornando colorido na medida em que os personagens descobrem a sexualidade e o acaso. 

 

Todo filme é um documento histórico sobre o imaginário, sensibilidade ou ideologia de uma determinada época, uma expressão cultural de tendências e acontecimentos econômicos ou políticos que acabam criando uma agenda de temas considerados como pertinentes para a opinião pública. E sabemos que a indústria hollywoodiana é a principal produtora desses documentos,  verdadeiros sintomas do espírito de cada época.

Dessa maneira, na década de 1980 do governo Ronald Reagan quando as políticas neoliberais estavam sendo implantadas a fórceps, era necessária uma produção cultural que elevasse o orgulho e autoestima nacionalistas feridos pelas derrotas militares no Vietnã e crise do petróleo da década de 1970. 

Vemos nesse momento um conjunto de filmes nostálgicos (“De Volta Para o Futuro” ou “Peg Sue: Seu Passado a Espera” são exemplos) onde os valores e cultura da década de 1950 são resgatados como as verdadeiras raízes que foram dolorosamente perdidas; ou ainda os filmes de retro-fantasia (“Star Wars” ou a trilogia “Indiana Jones”) que resgatavam aventuras esquemáticas dos quadrinhos e seriados das décadas de 1940-50.

Na década de 1990 vimos o triunfo das políticas neoliberais e a Globalização sob o impulso da financeirização e microinformática comandados pelos EUA do presidente democrata Bill Clinton. “A Vida em Preto e Branco” (Pleasantville, 1998), dirigido e escrito por Gary Ross, é talvez o filme representativo dessa década. Embora a narrativa retrate os anos 90 como tempos marcados pela ameaça de catástrofes climáticas, AIDS, fome e crise de valores éticos e morais, o filme é anti-nostálgico. Não havia naquele momento qualquer necessidade por nostalgia já que a Globalização e a revolução digital eram discursos messiânicos que prometiam o melhor dos futuros.

Embora o núcleo da narrativa seja um sitcom da década de 1950 chamado “Pleasantville”, Gary Ross faz uma autêntica desconstrução do imaginário e da nostalgia em torno de uma época considerada “dourada” para a cultura norte-americana.

Nos anos 90 o famoso sitcom “Pleasantville” é representado pelo canal a cabo TV Time para uma audiência cativa de fãs.  Um desses devotados fãs é o adolescente “nerd” David (Tobey Maguire) que tem um obsessivo interesse pela série e vive recluso em casa sem namoradas ou vida social. Vivendo com sua mãe divorciada (Jane Kaczmarek) tem muitas brigas com sua irmã gêmea Jennifer (Reese Whitherspoon). Ela é o contrário de David: popular e com vida sexual intensa.

Numa dessas brigas entre os irmãos, ela quer assistir a MTV com seu namorado, justamente quando está para começar a “Maratona PleasantVille”. Eles brigam pelo controle remoto até quebrá-lo. Um estranho e misterioso técnico de TV (Don Knotts) surge com um novo controle remoto, um poderoso equipamento de alta tecnologia que acidentalmente os teletransporta para dentro da série “Pleasantville”. Lá eles transformam-se em personagens da série, como filhos do vendedor George Parker (William H. Macy) e sua esposa Betty (Joan Allen). 

Como “Bud” e “Mary Sue,” eles passam a viver numa residência em preto-e-branco em um típico subúrbio norte-americano onde não existe sexo e a temperatura está sempre nos 22 graus. Lá a vida é sempre prazerosa, os livros não têm palavras, os banheiros não têm vasos sanitários, marido e mulher dormem em camas separadas, o time de basquete da escola sempre ganha e ninguém jamais questiona nada. Não há acaso ou acidentes. Tudo é clichê e repetição.

Mas como personagens provenientes do mundo dos anos 90, quebram o equilíbrio daquele universo: quando começam a exprimir seus próprios sentimentos e emoções, eles começam a interferir diretamente na vida dos moradores locais modificando-a. Então o seriado, que é em branco e preto, vai ganhando outras cores e os moradores acabam percebendo a “anomalia” que está ocorrendo.

Ao vislumbrarem novas coisas e acontecimentos como a chuva que era desconhecida pelos habitantes e os sentimentos como paixão, desejo e sonhos, a vida dos moradores vai mudando junto com o acréscimo de novas cores.  Desejos reprimidos vêm à superfície e buracos vão aparecendo no estilo de vida dos anos 50. Os habitantes de Plesantville vão mudando suas vidas por meio de estranhas e fascinantes formas, mas, também, conhecerão o lado escuro de tão agradável comunidade (grupos conservadores e intolerantes que vão lançar mão inclusive da violência para manter o status quo em preto e branco).

Bíblia e Cores

Muitos críticos apontam semelhanças entre “A Vida em preto e Branco” e “Show de Truman” lançado naquele mesmo ano. Em ambos os filmes os protagonistas estão imersos em um mundo fabricado (respectivamente, de raios catódicos e cenográfico) e com forte carga de nostalgia (respectivamente, a “inocência” dos valores da década de 1950 e a idealização publicitária da vida da classe média na cidade “fake” de Seahaven). Nos dois filmes, os personagens vão romper com a ilusão da inocência. Só que enquanto em “Show de Truman” o protagonista vai se libertar ao construir uma consciência meta e descobrir que todos os elementos do seu ambiente são cenários controlados à distância, em “A Vida em preto e Branco” Gary Ross vai lançar mão de variadas analogias bíblicas, principalmente a da perda do Paraíso descrito pelo Gênesis.

Por exemplo, a Alameda dos Namorados é o primeiro lugar em Pleasantville a ficar totalmente colorido e é claramente associada ao Paraíso bíblico destruído pelo “pecado”. Lá, os jovens descobrem a sexualidade no banco de trás dos carros, tomam banho no lago totalmente nus. Através da inocência, como serem ficcionais, experimentam fascinados o totalmente novo, com o olhar ingênuo da primeira vez. O mesmo ocorre com David. Nunca havia conseguido um encontro com uma garota na sua vida real. Pela primeira vez tem um encontro amoroso. Embora seja do mundo real, experimenta a mesma situação dos seres ficcionais: a ingenuidade da primeira vez. A composição dos planos sugere uma analogia com um paraíso, algo como o Jardim do Éden. O simbolismo confirma-se com a oferta dos frutos proibidos a David, proibidos por serem coloridos.

A namorada de David, Christin, quer saber como é o mundo fora de Pleasantville. Fascinada, ouve a descrição de David e responde excitada: “uma noite dessas uns jovens vieram nadar aqui sem roupa nenhuma”. Em seguida oferece uma porção de blueberries e come uma com olhar lânguido para David. Fala que há muitas outras frutas naquele jardim. Ela levanta e corre ao encontro de uma árvore, tendo uma enorme lua cheia ao fundo. A mão retira uma maça do galho, revelando, mais uma vez, a enorme lua cheia. Com o olhar extático, oferece a maçã a David.

Mais tarde, o Sr. Técnico de TV (uma espécie de Demiurgo que tenta manter a “inocência” daquele universo televisivo) reaparece para David num monitor para acusar David de ter comido o fruto proibido. Apresente um vídeo-tape como prova e o expulsa daquele lugar: “você não merece estar nesse paraíso”. As imagens têm forte analogia com o simbolismo bíblico do fruto proibido no Paraíso, associado ao simbolismo místico da Lua – símbolo da feminilidade. Como símbolo da fecundidade está associada às águas que provocam o início da criação. Coincidência ou não, a próxima sequência é a da “chuva autêntica” em Pleasantville que marcará o ápice das transformações na cidade.

Ao longo do filme há diversas analogias bíblicas (e heréticas) como quando a mãe de Mary Sue experimenta pela primeira vez um orgasmo começa a ver sua casa colorida e a árvore do jardim da casa começa a pegar fogo (fato extraordinário pois não há combustão em Pleasantville). A imagem é simbolicamente forte, numa clara referência bíblica à forma como Deus se manifestava a Moisés: um arbusto que queimava, mas nunca se consumia.

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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