O dia em que o governo americano drogou seu povo, por Marcelo Uchôa

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Por Marcelo Uchôa

Assim como em partida de futebol, todos creem possuir opiniões infalíveis sobre o tema das drogas. Sem titubear, indicam-se vilões e mocinhos num jogo complexo que mata crescentemente, a cada ano, centenas de milhares de pessoas no mundo. Contudo, criminalizar ou descriminalizar o uso de substâncias; liberar e regulamentar produção, comércio e consumo; lidar com o fenômeno como questão de segurança, saúde ou relegando-o à esfera da individualidade, reconhecido o caráter cultural-recreativo, religioso, medicinal, de certas drogas, são conjecturas que somente serão adequadamente realizadas, se bem compreendidas as circunstâncias que levam ao trânsito quase desimpedido dessas substâncias no meio. O documentário “Freeway Crack in The System”, de Marc Levin, disponível na Netflix, ajuda nesta reflexão.

O filme aborda a geopolítica das drogas através dos relatos de Freeway Rick Ross, lendário traficante das décadas de 80 e 90, que, antes de cumprir 20 anos de prisão em regime fechado, dominou o controle da distribuição de cocaína e crack em quase todos os EUA, a partir das comunidades afro-americanas dos arredores de Los Angeles.

O documentário reúne ex-traficantes, antigos integrantes da DEA (sessão antidroga do Departamento de Justiça estadunidense), parlamentares dos EUA que endossaram, mas hoje condenam, o endurecimento das leis de drogas, somando, ainda, contribuições do jornalista investigativo Gary Webb, vencedor do Prêmio Pulitzer de 1990, “suicidado” na esteira das denúncias ora reavivadas, sobre as relações clandestinas do governo Ronald Reagan com xiitas iranianos, milícias anti-sandinistas e traficantes latino-americanos, no escândalo que ficou conhecido como Irã-Contras. Em síntese, a trama consistia em articulação engendrada em finais da guerra fria para impedir o avanço iraquiano no oriente médio e revoluções socialistas na América Central. Via Israel, às escondidas dos órgãos internacionais de segurança e do congresso dos EUA, armas norte-americanas eram levadas ao golfo pérsico e vultosos financiamentos retornavam de lá direcionados a organizações contrarrevolucionárias. Aportes expressivos também eram efetivados por cartéis colombianos de cocaína, que recebiam, em troca, permissão do governo dos EUA para desovar ali a produção.

Paralelamente à crítica às relações promíscuas do governo estadunidense com o narcotráfico, o documentário expõe as incoerências da já comprovadamente fracassada “política de guerra às drogas”. Revela como são estabelecidas as ligações entre consumidores e distribuidores primários e poderosas facções armadas, questionando sobre os efeitos práticos da tática institucional de combater o terror com mais terror. Condena a criminalização e o encarceramento em massa da população negra, chamando a atenção para o gravíssimo problema da estigmatização de um público que, no momento inicial do drama, era compreendido como injustiçado histórico, carente de direitos civis, em pleno processo tendencial de empoderamento político, e que, doravante, passou a ser generalizadamente identificado como de periculosidade social.  No fim, a certeza de que elaborar conceitos sobre drogas a partir de premissas equivocadas, ignorando interesses geopolíticos, cifras bilionárias e disputas de poder, reduzindo a dimensão do problema ao crivo médio cotidiano, é o que o “status quo” mais quer para continuar soberano sobre o comércio e o aproveitamento econômico da adjacente rede de violência.

Marcelo Uchôa é professor doutor de Direito/UNIFOR, pesquisador na área de drogas e ex-Secretário de Políticas sobre Drogas/CE.

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

3 Comentários

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  1. Dia?

    Como assim “O dia que o governo….” Isso é permanente.

    5 bases militares na Colômbia (maior pordutor de cocaína) e a ocupação do Afeganistão (maior produtor de ópio).

  2. The New Jim Crow…collor blindness in the age(…)

    (…) of mass incarceration, de Michelle Alexander,advogada ativista dos direitos civis estadunidenses…

    A moça aparece no igualmente ótimo documentário 13ª Emenda (Netflix), a emenda que aboliu a escravidão, mas deixou uma “pegadinha”…

    O estado estadunindense tem o direito de escravizar (e depois reduzir a cidadão de segunda categoria) os ex-condenados e os apenados em condicional…

    Substitui-se a narrativa da KKK pela “ausência de cor” do sistema criminal judicial dos EUA, dando contornos dramáticos a uma nova forma de racismo, o racismo penal…

    Foi assim, com escravos em pleno anos 30 que o esforço estadunidense saiu da crise com as “frentes de trabalho” (escravo) dos apenados…as cenas clássicas de negros qubrando pedras a beira de estradas em construção passa despercebida ou é desejada pelos nossos justiceiros penais daqui: “tem que botar para trabalhar”…

    Foi com essa estrutura judicial cnostitucional ambígua que retiraram todos os poucos ganhos que os negros libertos 

    Em 1980, pouco mais de 340 mil presos, em 2000, eram 2 milhões e ganha um Donuts quem advinhar a cor da maioria dos presos…

    Quando falamos em narco estados não temos a menor noção do que se trata…

    Com a disseminação das proibições desde o começo do século XX, cujos efeitos foram drasticamente ampliados com a aurora neoliberal da era Reagan e Tatcher, os Estados Nacionais se tornaram partes integrantes do esforço de regulação do mercado dos narcóticos, quando “compram” drogas no mercado, através das chamadas apreensões e prisões, determinando o preço, rotas e a sobrevivência desse cartel em detrimento dos outros…

    Claro que tudo é ideologicamente empacotado como guerra contra produtos de “viciam” (embora as bebidas e outras drogas continuem a todo vapor), dando a lenda urbana os vilões convenientes (pobres, pretos e favelados ao redor do globo)…

     

    Nos países centrais, a guerra tem efeitos menos letais, embora socialmente trágicos…Os negócios pululam no centro e na periferia…Em 1980, as polícias das cidades dos EUA somavam apenas 83 equipes táticas (as famosas SWAT), em 2000, eram 843…

    Xerifes de pequenos condados contam aos pesquisadores que houve uma indundação de dinheiro para comprar até tanques de guerra, caso quisessem, embora os números da violência locais não autorizassem tal esforço orçamentário…

    Então foi preciso caprichar na narrativa, assim quando proibiram a bebida nos anos 20…

    Por aqui, compramos de tudo: caveirões, BOPEs, helicópteros e fuzis que somam número parecido com pequenos exércitos de países em conflitos chamados regulares (guerras de verdade)…

    Por lá, aumentaram as prisões, confiscos e retirada de direitos dos ex-condenados, empurrados para a segunda classe da economia, para sempre destinados a sub-empregos e absurdas exigências motivadas a impedir qualquer mobilidade social…exército permanente de reserva, como ensinam os bons manuais de economia capitalista…

    Por aqui, como a economia sofre os efeitos de sermos periferia, não há tanto espaço para “reintegrar” os soltos pelos sistemas punitivos estatais, e apesar do nosso número de prisões ter nos colocado em 4º lugar no mundo, matamos pretos e pobres na ordem de 40, 50 mil por ano…

    Não temos o que fazer com o “excedente”…

    E em Copabacana vai “nevar” no dia 31, sem caveirão ou mortes, só policiais bancando babás de milhões empapuçados com milhões de litros da principal patrocinadora desse moderno festival de Baco: a Inbev…

  3. O tráfico de drogas é o

    O tráfico de drogas é o melhor negócio do mundo.

    Pouca ou nenhuma despesa administrativa (mão-de-obra baratíssima, tributação zero), pouca despesa operacional, mercado consumidor fidelizado e crescente e permanentemente aquecido, etc.

    O verdadeiro paraíso.

    O sonho de todo magnata: não pagar impostos.

    Como todo negócio dessa ordem, e nessa escala, tende ao monopólio, e a eliminação (física) da concorrência mais resiliente. E à fusão com outros negócios semelhantes e igualmente em larguíssima escala, como o tráfico de armas.

    Ambos pavoneando suas cifras bilionárias. A bem da verdade, irmãos gêmeos. Um lavando a mão do outro.

    A mão?

    O colombiano Abadia dizia, “querem acabar com o tráfico? É só fechar o Denarc.”

    Bandidinho pé-de-chinelo, coitado. Ingênuo. Vai dar essa sugestão lá na Asa Sul, na Vieira Souto, no Morumbi, e afins. É ruim, hein?

    Os Robber barons,coitados, quem diria, são monges, perto dos robber drug barons.

    Todos eles, de qualquer forma, homens honrados. Senadores da República, socialites, empresários.

    Tudo gente boa.

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