Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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“O Doador de Memórias” e a terceira onda do Gnosticismo Pop no cinema, por Wilson Ferreira

Com o filme “O Doador de Memórias” (The Giver, 2014) Hollywood acrescenta mais uma produção a uma série de filmes sobre mundos distópicos dominados por estados policiais totalitários. Essas produções vem retomando símbolos e narrativas gnósticas, mas dessa vez em uma nova fórmula:  um mix de Gnosticismo com “1984” de Orwell e “Admirável Mundo Novo” de Huxley. Essa terceira onda de Gnosticismo pop no cinema, assim como nas ondas anteriores, está relacionada com alterações nos paradigmas tecnológicos. Na atualidade, o projeto da Internet das Coisas e a nanotecnologia, criando possibilidades de geolocalização e controle total da privacidade. A obsessão atual de Hollywood por essas distopias faz surgir teorias conspiratórias como a chamada “hipótese Fox Mulder”, extraída de um episódio da série “Arquivo X”.

O Doador de Memórias, adaptação do livro de 1993 The Giver de Lois Lowry (premiado best seller de ficção científica para o público jovem) é o último filme de uma série de produções recentes que exploram distopias futuristas totalitárias: Snowpiercer (2013), No Limite do Amanhã (Edge of Tomorrow, 2014), Elysium (2013), Jogos Vorazes (The Hunger Games, 2013), A Viagem (Cloud Atlas, 2012), Oblivion (2013), Capitão América 2: O Soldado Invernal (2014) etc.

Por que o público está sendo inundado com essas narrativas futuristas sobre novas ordens mundiais e estados policiais despóticos? Por que esse súbito interesse de Hollywood em nos fazer torcer por heróis que lutam por escapar de sistemas totalitários enquanto tentam encorajar a todos (inclusive o espectador) a fazer o mesmo?

Alguns autores sugerem algumas hipóteses conspiratórias como, por exemplo, sugerindo a teoria que chamo de “hipótese de Fox Mulder”: em um dos episódios da série Arquivo X o agente especial da FBI, Fox Mulder, participa de um congresso de ufologia. Alguém lhe pergunta o porquê de ao mesmo tempo em que o governo dos EUA procura esconder o fenômeno UFO, paradoxalmente Hollywood produz tantos filmes sobre seres alienígenas. Mulder responde: “para que todos pensem que os contatos com UFOs e aliens são histórias ficcionais, coisas de cinema. Por isso, quando surgem notícias verdadeiras, ninguém acredita.

A mesma coisa estaria acontecendo com o tema Nova Ordem Mundial e tecnologias de controles totalitários dos indivíduos? Coincidentemente no momento das denúncias sobre a invasão da privacidade na Internet pelas agências governamentais dos EUA, Google e Apple aparecem nas mídias.

Por outro lado, nesses filmes citados, assim como em O Doador de Memórias, muitos deles exploram simbolismos e narrativas gnósticas. Na verdade, estaríamos vivendo nessa onda atual de filmes distópicos, um período parecido com o final do século passado onde filmes como Show de TrumanMatrixO Décimo Terceiro AndarCidade das Sombras e A Vida em Preto em Branco (com o qual O Doador de Memórias tem muitas semelhanças na maneira como explora as cores) tematizavam o temor gnóstico das novas tecnologias estarem criando realidades virtuais que nos manteriam prisioneiros.

  Como veremos mais adiante, comparando esses dois momentos de ascensão de temas gnósticos no cinema há um elemento comum: ambos períodos estavam relacionados a momentos de mudança em paradigmas tecnológicos. No final do século passado as tecnologias digitais e a virtualização da realidade; e hoje, a Internet das Coisas – sistema global de registro de bens em um sistema wireless e nanotecnologia criando possibilidades de geolocalização e controle total de tráfego, hábitos e privacidade.

O Filme

A narrativa se passa em algum lugar em um futuro indeterminado, onde a “Igualdade” é considerado o valor mais importante. Foi criado um mundo monocromático (literalmente as cores foram apagadas da percepção das pessoas), a individualidade foi esmagada e cada cidadão é monitorada desde o nascimento, as famílias foram substituídas por “unidades familiares”. Uma voz ao mesmo tempo suave e ameaçadora faz avisos através de alto-falantes, anunciado decisões dos governantes – os “Anciões”, liderados pela Chefe Elder – Meryl Streep.

         O conceito de “precisão da linguagem” é aplicado e cobrado um do outro (todos vivem pedindo desculpas por alguma “imprecisão”) para evitar termos que expressem sentimentos ou individualidade, drenando a linguagem de qualquer significado – lembrando a novilíngua de 1984 de Orwell.

Junto com a individualidade e os sentimentos, as memórias do que foi um dia a humanidade também foram eliminadas por meio desse controle linguístico associado a dosagens diárias de uma droga que induz ao esquecimento. Porém, uma pessoa da comunidade é sempre escolhida para ser o receptor dessas memórias coletivas das experiências já extintas (amor, guerra, sexo, dor etc.). Esse será chamado de “Doador” (Jeff Bridges), cuja existência se consistirá em treinar seu sucessor, para que suporte física e emocionalmente o peso de carregar nos ombros esse verdadeiro inconsciente coletivo da História – e principalmente a culpa de saber o que todos os humanos “esqueceram”.

No decorrer do filme, o jovem Jonas (Brenton Thwaites) é escolhido para ser o próximo receptor. Confrontado com a complexidade e a emoção das memórias transferidas pelo Doador ele aos poucos vai enxergando as cores (é inevitável a conexão com o filme A Vida em Preto e Branco de 1998), crescendo a sua indignação com aquele sistema social baseado no controle e esquecimento.  Jonas agora terá que fazer uma escolha: ficar ou fugir. Porém, a Comunidade vive em um estranho lugar acima das nuvens. Lá embaixo está “o deserto do real” como diria Morpheus em Matrix. E a esperança de cruzar uma mítica fronteira (a chamada “fronteira das memórias”) uma espécie de limite físico daquele mundo virtual. Se alguém cruzá-la, todas as cores e memórias voltariam, reconstituindo a humanidade perdida.

A Terceira Onda

Essa nova onda de filmes distópicos com elementos gnósticos confirmaria a tese do pesquisador norte-americano Eric Wilson (Secret Cinema: Gnostic Visions in Films, 2006) de que o Gnosticismo sempre ressurge na História da Cultura em momentos de crises ou mudanças de paradigmas: na era de Platão a batalha contra os Sofistas no conflito entre Verdade versus retórica; no princípio da era cristã os ataques do gnóstico Valentim contra a redução da ideia do Deus infinito ao Deus demiurgo chamado Jeová do Velho Testamento; o Gnosticismo do Romantismo no século XVIII-XIX diante da Era Moderna; o Gonosticismo Pop da era Matrix contra as possibilidades totalitárias das tecnologias virtuais.

E hoje, a potencialidade de controle absoluto (linguagem,privacidade etc.) do Estado e corporações com a chamada Internet das Coisas.

           

O Gnosticismo pop parece iniciar uma terceira onda de filmes onde dessa vez a mitologia gnóstica é aplicada em futuros distópicos e totalitários. Um mix de Gnosticismo com 1984 e Admirável Mundo Novo.

A primeira onda do gnosticismo pop no cinema localiza-se na segunda metade dos anos 1990, iniciando-se com Dead Man (1995) e fechando com Matrix em 1999. Nessa primeira onda a mitologia gnóstica é associada a mundos simulados por tecnologias virtuais, capaz de criar uma perfeita contrafação da realidade e mantendo os protagonistas presos em mundos simulados.

Na segunda onda, a partir de filmes como Vanilla Sky (2001), vemos agora protagonistas presos em mundos internos, no interior da própria mente. Esse filmes correspondem ao momento em as tecnologias computacionais se encontram com as neurociências, ciências cognitivas, cibernética e Inteligência Artificial com a finalidade de fazer uma cartografia e topografia da mente: criar modelos virtuais de funcionamento da mente para aplicações como o neuromarketing.

O Doador de Memórias se insere nessa terceira onda na qual os mundos distópicos do futuro são projeções ficcionais do totalitarismo latente do atual projeto da Internet das Coisas e o esquadrinhamento total das atividades dos indivíduos através de ferramentas de Big Data, Dark Data etc.

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Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

3 Comentários

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  1. Vi este filme e nem me dei ao
    Vi este filme e nem me dei ao trabalho de comentá-lo, pois ele pode ser inserido numa longa lista de filmes acerca de pseudo sociedades socialistas perfeitas que vão se revelando autoritárias e desprezíveis. Filmes como este tem sempre a mesma finalidade: demonstrar a superioridade ética do caos capitalista cristão em que se encontra mergulhada a sociedade norte-americana. Um filme irrelevante como todos semelhantes que o antecederam e provavelmente o sucederão (a linha de montagem do cinema não pode parar de criar estas anti-utopias que justificam o imobilismo politico/econômico norte-americano).

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