Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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O Mito do Vampiro Chega à Maturidade em “Deixe Ela Entrar”

Esqueça filmes como “Crepúsculo” onde vampiros com “sex appeal” seduzem adolescentes. Aclamadíssimo em Festivais de cinema Fantástico, o filme sueco “Deixe Ela Entrar” (Let The Right One In, 2008) igualmente narra uma estória de amor impossível entre adolescentes, mas rompe com os principais cânones do gênero ao apresentar o vampiro não mais como encarnação, mas como representação do Mal: o vampiro abandona a adolescência dos “shopping centers” para ingressar na rotina de um adolescente repleta de ambiguidades, indecisões e desejos de vingança.


Os dois principais arquétipos dos contos góticos foram criados por autores britânicos no século XIX: “Frankenstein” de Mary Shelley (expressando os medos de um futuro onde a ciência usurparia o poder divino de criar a vida) e “Drácula” de Bram Stocker (expressando o medo de supertições e tabus do passado que invadem o presente para destruir a vida por meio da contaminação).

Atualmente, o arquétipo do vampiro está em ascensão no cinema. Em um primeiro momento tivemos as adaptações cinematográficas clássicas e fiéis ao livro de Bram Stocker (o vampiro como encarnação do Mal que invade a sociedade vitoriana pela contaminação do sangue) até os filmes ingleses de terror da Hammer nos anos 60. Mas a partir do filme “Entrevista com um Vampiro” nos anos de 1990, a figura do vampiro começa a ser investida de “sex appeal” ao ser vivida por atores como Tom Cruise e Brad Pitt: a sedução do vampiro através do olhar e a mordida e sucção do sangue como uma metáfora erótica e sexual.

A partir daí temos duas linhas cinematográficas pelas quais o mito do vampiro é atualizado: de um lado a vertente cômica como, por exemplo, o horror cômico-trash inglês “Matadores de Vampiras Lésbicas” (Lesbian Vampire Killers, 2009); do outro, o blockbuster “Crepúsculo” (Twilight, 2008) onde uma adolescente mortal apaixona-se por um vampiro que consegue andar à luz do dia, pálido e com um estranho ar perdido e frágil (fascinante para adolescentes pois, afinal, é assim que eles se veem). Seja por um caminho ou pelo outro, o Mal é erotizado e o ataque sanguinário vira uma espécie de cópula sado-masoquista.

Apesar disso, ambas as correntes respeitam o principal código estabelecido sobre vampiros: eles continuam sendo a encarnação do Mal, ou pela culpa (a imortalidade como uma maldição) ou como a própria encarnação da maldade (matar como manifestação do prazer pelo Poder).  Essa é uma visão religiosa do Mal presente desde Bram Stocker: o vampiro como uma tentação demoníaca que, por meio da hipnose, vem despertar nos seres humanos (e principalmente mulheres) seus impulsos mais primitivos seja na época vitoriana ou na dos shopping centers: entregar o próprio pescoço para ingressar no imortal reino do Mal. Em outras palavras, entregar-se ao pecado e ser punido por isso.

Porém, um filme vai desafiar esse código estabelecido sobre o Mal. É o filme sueco “Deixe Ela Entrar” (Let The Right One In, 2008) uma adaptação do livro homônimo de John Ajvide Lindqvist e dirigido por Thomas Alfredson. Não é à toa que o filme foi aclamadíssimo pela crítica e pelos fãs do cinema Fantástico: embora seja comparado com “Crepúsculo” por incorporar o amor entre adolescentes mortais e imortais, o filme subverte a convencional visão religiosa do Mal: o vampiro é retratado apenas como sintoma do Mal diluído nas relações humanas e na própria sociedade. Ele não é mais uma encarnação, mas uma representação do Mal.

Passado no começo da década de 1980 conta a estória de Oskar, um adolescente de 12 anos que vive em Blackberg, uma cidade-dormitório nos subúrbios de Estocolmo. Esquálido e introvertido vive em um pequeno apartamento com sua mãe divorciada. Vítima de constantes “bullyng” na escola, passa o restante do dia imaginando formas de vingança enquanto desfere golpes com uma faca no tronco de uma árvore.

O apuro estético em apresentar a paisagens geladas da pequena cidade na proporção da tela em “scope” é ideal para apresentar a aridez gelada tanto da neve quanto das relações humanas. Como cidade-dormitório, Blackberg é destituída de vida comunitária. Predomina a solidão e tédio: os pais pouco se interessam pela vida de Oskar, as relações na escola são humilhantes e cruéis, um pequeno grupo de alcoólatras reúne-se em um bar e homem vive solitário em um apartamento cheio de gatos.

Até que o dia em que Oskar conhece Eli, garota que se mudou para o apartamento ao lado cujas janelas são estranhamente encobertas por papelão. Ela também tem doze anos, só que “há muito tempo” e adianta: “eles não poderão ser amigos”. Para a vida de Oskar naquele lugar, tudo parece normal, afinal, ela é tão introvertida quanto ele e avessa à socialização como todos.

Mas o silêncio da aridez gelada do subúrbio é quebrado por uma série de brutais assassinatos. Um idoso senhor que acompanha Eli (seu pai?) tem o hábito de assassinar pessoas para retirar o sangue. A última tentativa é fracassada quando é quase flagrado por duas mulheres. Retorna ao apartamento de Eli, faminta à espera do sangue. Descobrimos que Eli é uma vampira e aquele senhor um guardião que está cansado de matar pessoas para alimentá-la. Ele vem falhando constantemente, obrigando Eli a sair para a caça para alimentar-se por conta própria.

Paralelo a isso, desenvolve-se uma relação ambígua entre amor e amizade de Oskar com Eli. É sintomático que, mesmo descobrindo que Eli é uma vampira, sua admiração e afeto crescem por ela: parece que a figura sobrenatural de Eli não abala nada, mas parece se encaixar perfeitamente num contexto de uma sociedade tensa, cruel e fria.

“Eu preciso de sangue para viver, você por vingança”, diz Eli. Aqui temos a primeira ruptura do filme com o gênero: não temos a clássica relação que pressupõe um vampiro ciente do fardo da imortalidade e um mortal que inveja o poder do outro. Pelo contrário, Oskar e Eli são apresentados como adolescentes, os dois desejosos por sangue (seja por sobrevivência ou vingança). O que parece só aumentar o afeto ao reconhecerem-se um no outro. Esqueça filmes como “Crepúsculo” onde mortais adolescentes ficam fascinados pelo poder e imortalidade dos seres das trevas.

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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