O novo universo ficcional infantil nos Muppets

A longevidade dos Muppets, que resistiram à concorrência das modernas animações digitais, parece apontar para uma mudança da sensibilidade infantil em relação aos universos ficcionais: muito mais metalinguística, auto-reflexiva e irônica. A percepção de que a realidade não é mais estável e perene, mas uma construção artificial, plástica, que pode a qualquer momento ser alterada pela força da imaginação. Mas os Muppets parecem atribuir um valor a mais a essa força, um sentido místico.

 

Nessa Páscoa resolvi inovar. Ao invés de dar ovos de páscoa para meus filhos, resolvi dar dois DVDs clássicos dos Muppets: “Os Muppets: o filme” de 1979 e “Os Muppets Conquistam Nova Iorque” de 1984. Para quem não conhece, a série “Os Muppets” é um universo ficcional criado por Jim Henson que iniciou na TV norte-americana nos anos 1970. A principal característica das narrativas é que os diversos personagens que compõem o universo Muppets (Caco, Miss Piggy, Gonzo, Urso Fozzie etc.) convivem com humanos de uma forma natural. O que já é suficiente produzir uma série de situações cômicas e inusitadas.

Assistimos juntos aos filmes: o primeiro que narra a ascensão dos Muppets, do anonimato de Caco, o Sapo, nos pântanos até o sucesso em Hollywood e o outro onde eles tentam fazer um musical de sucesso na Broadway.

A primeira questão levantada por eles: por que ninguém no mundo humano preocupa-se com o fato de os Muppets serem diferentes dos seres humanos?  A questão levantada chamou-me a atenção de uma espécie de sensibilidade metalinguística ou irônica das crianças contemporâneas em relação aos filmes e animações.

Os conteúdos infantis na mídia deixam de ter uma narrativa épica (centrada na ação e heroísmo – cavaleiros, bruxas, piratas, trens a vapor etc.) para adquirirem uma narrativa metalinguística, reflexiva, irônica. “Pink Dink Doo” e “Charlie e Lola” são animações infantis exemplares dessa mudança de sensibilidade. Pink cria estórias para o seu irmão caçula, pontuando e criando a todo instante meta-narrativas. 

“Os Muppets: o filme” impressiona não só pela metalinguagem e constantes referências irônicas ao cinema e showbizz. Ele possui uma complexa narrativa em abismo: assistimos a um filme onde é mostrado outro filme que, no final, vemos uma nova metanarrativa onde os Muppets vão iniciar a produção do filme que acabamos de assistir. Isso talvez explique a longevidade dos Muppets, bonecos fantoches que resistiram à concorrência das modernas tecnologias de animações digitais.

Na sequência final vemos os Muppets famosos e reconhecidos em um estúdio em Hollywood iniciando uma nova produção. O filme poderia ter terminado ali, no ponto que comprovaria que o trabalho duro valeu a pena, e que encontrou amigos e se tornou bem sucedido e que também você deve seguir seus sonhos e assim por diante. Mas não termina assim. Termina com Gonzo balançando em uma corda acima do set de filmagem, caindo no arco-íris de papelão que se desfaz em pedaços, em seguida o teto explode abrindo um enorme buraco.

O que significa essa natureza metalinguística e reflexiva da sensibilidade infantil atual? Olhando em perspectiva das animações infantis em canais de TV especializados como Discovery Kids ou Cartoon Network, percebemos que a antiga narrativa épica infantil acabou: “Era uma vez, um lobo muito fedorento que pegou uma criancinha para fazer seu jantar. Mas, um corajoso caçador entrou na toca do lobo, deu uma tremenda surra no bichano malvado e salvou a criancinha. E viveram felizes para sempre”.

No lugar temos a percepção de que a realidade é plástica, mutável, um “constructo” artificial feito de pastiches e referências irônicas, além dos processos de produção serem cada vez mais transparentes: o que dizer da cena de pura metalinguagem quando alguns Muppets leem o roteiro do próprio filme que assistimos e que eles produzirão no futuro no interior da própria narrativa?

Isso tudo tem um sabor gnóstico: pensar que nosso universo não é uma realidade estável e perene, mas uma construção artificial que não existia desde sempre, mas obra, por exemplo, de um Orson Welles poderoso produtor/demiurgo de Hollywood que no final oferece aos Muppets o “contrato padrão de ricos e famosos” e os transforma em celebridades.

A Conexão do Arco-Íris

Particularmente gnóstico é o verso cantado por Gonzo: “Não há ainda uma palavra para velhos amigos que acabaram de se conhecer”. Em sua jornada em direção a Hollywood, Caco vai encontrando com os personagens dos Muppets pelo caminho. Eles são desconhecidos até então, mas, ao mesmo tempo, consideram-se velhos amigos, como se já fossem conhecidos há muito tempo.

Por que todos são velhos conhecidos? Além da resposta óbvia (todos são Muppets), eles se reconhecem porque todos tem uma centelha interior que os une: a imaginação. A certa altura da narrativa, dentro de uma Igreja abandonada, o grupo musical de Floyd canta os seguintes versos: “Tens que procurar na sua mente/É rápido e fácil de achar/Não custa nada/Qualquer um pode fazê-lo/Consegue imaginar isso?/Use-o se precisar.”

Luis Nassif

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