Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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O pós-humano no filme “Lucy” e o mito dos 10% do cérebro

“Lucy” (2014) do diretor francês Luc Besson (“O Quinto Elemento”, “Leon: The Professional”), com estreia marcada para esse mês nos cinemas, é mais um filme da safra atual com o tema do pós-humano (“Transcendence”, “The Machine”, “Limitless” etc.). Todos se baseiam em um mito que é o pressuposto da filosofia pós-humanista que anima a agenda tecnocientífica atual: o homem seria um ser limitado porque utilizaria tão somente 10% da capacidade cerebral. Sua limitação viria do corpo físico que nos aprisionaria no medo e na dor. Mito desconstruído por neurologistas sérios como Barry Gordon,  da John Hopkins School of Medicine. Por meio de drogas ou tecnologias cibernéticas o homem daria em “upgrade” em si mesmo, acessando 100% o “banco de dados” cerebral. “Lucy” revela uma nova religião onde Deus é substituído pela tecnologia e a alma pela informação.

Certamente Nietzsche foi o primeiro filósofo a afirmar de modo mais enfático a necessidade de, ao invés de se aperfeiçoar, a espécie humana deveria superar a si mesma na direção de um supra-humanismo. A figura do super-homem nietzschiano assombrou o século XX onde o desenvolvimento tecnológico sem precedentes paralelo a guerras e extermínio apontaram para uma suposta imperfeição humana que deveria ser superada com o auxílio da tecnociência.

Acompanhamos na atualidade uma recorrência de produções cinematográficas que repercutem a última onda da agenda tecnocientífica atual caracterizada pelo que chamamos de tecnognosticismo: a crença de que toda a imperfeição humana deriva da necessidade de superação de três inimigos naturais: a realidade, o mal e a morte.

Filmes como Limitless (2011), The Machine (2013), Transcendence (2014) expressam a última fase do movimento pós-humanista da construção de um novo homem não apenas mediado por próteses ou por aquilo que chamamos de artificial. Esses filmes expressam algo mais além: a superação da própria carne com a descoberta de que aquilo que chamamos de humano encontra-se na mente, presa nas limitações físicas do corpo é que deve ser libertado por meio de up grades e up loads tecnológicos que convertam o humano em dados e informação.

Sem o corpo, a mente se espalharia livre não apenas por redes que fazem interface entre redes informáticas e neuronais, mas se disseminaria nos próprio tecido da realidade, em cada gotícula de água, molécula ou seiva de árvores. Vivemos a era utópica de um panteísmo digital.

Lucy (2014) do diretor francês Luc Besson (com estreia brasileira marcada para 28 de agosto) é mais um filme de ficção científica dentro dessa agenda pós-humanista. Só que enquanto os filmes acima citados fazem até algumas incursões filosóficas mostrando as ambíguas relações entre o homem e a tecnologia (principalmente em Transcendence onde são apresentadas as perigosas conexões entre tecnociência e a vontade de poder), em Lucy a atual agenda pós-humanista assume um tom propagandístico e apologético.

O Filme

Após as suas performances como um ser digital em Ela (Her, 2013) e um extraterrestre em Sob a Pele (2013), a atriz Scarlett Johansson dá um próximo passo lógico no papel-título de Lucy. O conceito do filme é sobre o que aconteceria se um ser humano utilizasse 100% da sua capacidade cerebral, já que supostamente (e é esse o polêmico pressuposto do filme) apenas chegamos a utilizar 10%.

Lucy é uma jovem estudante norte-americana que frequenta festas pesadas com muitas drogas e diversão em Taipei, Taiwan. Ela é atraída para a rede de um impiedoso e poderoso chefão do crime coreano chamado Sr. Jang. Após seu namorado ser assassinado, ela é obrigada a tornar-se uma “mula” de drogas de uma substância sintética poderosa chamada CPH4. Sacos da substância são inseridos cirurgicamente em seu abdômen que são rompidos ao ser agredida por capangas do Sr. Jang.

Lucy não só sobrevive à overdose da droga mas começa a sofrer inesperados efeitos coleterais: progressivamente Lucy começa a acessar partes cada vez mais profundas do cérebro – 20%, 30% e assim por diante. Ela começa a possuir poderes telecinéticos, sensoriais como leitura da mente, interceptação de dados de redes de telecomunicações entre outros superpoderes que desafiam o entendimento humano.

A partir daí Lucy corre contra o tempo, pois seu corpo não suportará por muito tempo a potente droga: por isso ela irá para Paris em busca da ajuda do professor neurocientista Norman (Morgan Freeman) cujos conhecimentos guiarão os espectadores com suas explicações científicas a respeito da nossa subutilização do cérebro. Tudo isso com o cruel Sr. Jang e seus capangas no encalço.

O mito dos 10%

 Lucy é um anti-suspense: a cada dez minutos na narrativa seu cérebro sofre um upgrade e tem o seu poder ampliado, tornando-se cada vez mais invencível e uma verdadeira máquina de matar reduzindo a pó os desesperados capangas do Sr. Jang. O filme recicla de tudo, de 2001 de Kubrick a Matrix – sua capacidade de assimilação de dados é tão impressionante que passa a ver a própria realidade como uma rede infinita de fluxo de dados, invisíveis a olho nu, lembrando o herói Neo de Matrix.

Lucy baseia-se em uma falácia neurocientífica que transformou-se em um mito no qual se baseia o momento atual da filosofia pós-humanista: o mito da subutilização do cérebro. De acordo com artigo da revista Scientific American de 2008 do neurologista Barry Gordon (Johns Hopkins School of Medicine) “As pessoas utilizam apenas 10 por centos dos seus cérebros?”, o mito dos 10% é tão errado quanto risível.

“O que não é compreendido é como os neurônios das diversas regiões do cérebro colaboram para formar a consciência. Outro mistério escondido dentro do nosso córtex plissado é que, de todas as células do cérebro, apenas 10% são neurônios, os outros 90 são as células gliais, que encapsulam os neurônios e cuja função permanece em grande parte desconhecida… Há pessoas que tiveram seus cérebros feridos ou partes dele removido e que ainda vivem uma vida razoavelmente normal, mas isso porque o cérebro tem uma maneira de compensar” (“Do People Only Use 10 Percent of Their Brains?”– Scientific American, 07/02/2008).

Não é que nós usamos apenas 10% do nosso cérebro. Na verdade só conseguimos até aqui compreender o funcionamento de 10% dele.

Esse mito serve a toda a filosofia pós-humanista que motiva a atual agenda científica tecnognóstica: a metáfora do cérebro como um software que necessita de upgrades para realizar todo o seu potencial. E o que limita o potencial da mente? No filme, a própria protagonista Lucy fala em um dos seus monólogos de epifania tecno-mística: medo, desejo e dor.

 

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

14 Comentários

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  1. Claro que a premissa dos 10%

    Claro que a premissa dos 10% não pode (e não deve) ser levada a sério, assim como não devemos achar que exposição a raios gama vão nos transformar em gigantes verdes.

    Mas para um filme que tem por objetivo apenas o entretenimento, não vejo problema. Está na minha lista para assistir.

  2. Caro Nassif e demais
    Quanto

    Caro Nassif e demais

    Quanto ao uso dos 10% é conversa do século 19; no século 20 e 21, quem ficar muito tempo exposto às onda eletromagnéticas da Globo, tende a usar somente os 10%, considerando os mais evoluidos.

    Saudações

  3. apologia ao caos

    ” Vejo os homens como fragmentos do futuro, daquele futuro que eu vejo. E este é todo meu engenho e arte, adensar e juntar tudo que é fragmento e enigma e horrível acaso. E como eu suportaria ser homem se ser homem também não fosse ser poeta, decifrador de enigmas e redentor do acaso.”

    Friedrich Nietzsche – Zaratustra.

    Estes filmes comerciais são a antítese do pensamento nietzschiano. A pancadaria geral é um ultraje ao pensamento filosófico. Mas vou conferir.

  4. Medo, desejo e dor é

    Medo, desejo e dor é exatamente tudo o que o induísmo profundo e as iogas basicamente mentais, como a Raja Ioga, ou rainha das iogas, falam que impede o desenvolvimento pleno da pessoa humana. O primeiro, o medo, é característa do estado de preguiça, letargia, fechamento de horizontes e acomodação em prazeres minúsculos como a gula e a imundície. Este estado é chamado de condição de Tamas. O outro, o desejo, é o mais característico da condição intermediária de Rajas, a condição da inquietude de espírito, da busca desenfreda por prazeres nunca satisfatórios, da agressividade permanente. A dor é consequência natural da presença destas duas condições. O Raja Ioga tem métodos e práticas para que o aprendiz passe do estado tamásico para o rajásico, o que já é grande evolução, e deste para o estado sátvico, de Satva, que é um estado de equilíbrio e de auto-domínio que otimiza ao máximo o uso da mente, ou do cérebro, minimizando ou extinguindo o desejo e a depressão/indolência que causam a dor, sem no entanto impedir o desempenho excelente trabalho eleito. O meio principal para atingir a evolução sátvica é, além das recomendações alimentares e de exercícios respiratórios e outros (nada exagerado, como na Hatha Ioga), a meditação transcendental. Limpar a mente de pensamentos conscientes, sejam eles quais forem, pelo máximo tempo possível, é o caminho certo para depois conseguir reordenar os pensamentos e impedir a mente de divagar de modo tosco e desorientado, acendendo e apagando inutilmente suas capacidades. Mas tais coisas como a meditação transcendental, embora do modo correto possam ser acessíveis a todos, são muito perigosas de serem experimentadas por determinadas pessoas e, regra geral, não devem ser praticadas de modo solitário ou por orientação de um mau mestre. Aliás, é melhor que sejam tentadas de modo solitário que orientadas por um mau mestre, sendo muitos os enganadores e frsantes que a praça, para não dizer o mercado, apresenta. Este é o upgrade que faz o homem usar toda a sua capacidade mental. Upgrades tecnológicos ou por alimentos tais como drogas não podem alterar nada do homem, que será sempre um tamásico, ou rajásico, ou sátvico, seja drogado ou não, dotado ou não de tecnologia. Este upgrade há cinco mil anos é apresentado ao homem pelo próprio homem, a entender-se como verdadeiras as últimas pesquisas arqueológicas e linguísticas que colocam como fonte da Ioga a Civilização do Vale do Indo a qual, ao contrário do que muitos acreditavam, não foi dizimada e muito menos extinta pelas invasões arianas de mil e quinhentos anos antes de Cristo. A cultura sivática, e vedanta, é muito mais antiga que o pós-árias e não sofreu grandes transformações até os dias de hoje, a não ser para pior – é possível que esta cultura tenha desenvolvido ainda mais do que hoje ela nos pode oferecer .           

  5. Não é o primeiro, não será o último

    Há um filme ” Sem Limites” que trata do mesmo assunto. Eis uma sinopse via wikipedia:

    Eddie morra (Bradley Cooper) é um escritor que vive em Nova York e recentemente termina com sua namorada Lindy (Abbie Cornish), não tendo ainda conseguido cumprir o prazo de entrega do seu novo livro (o qual ainda não está escrevendo). Em um certo dia, Eddie encontra Vernon Gant (Johnny Whitworth), o irmão de sua ex-mulher Melissa Gant (Anna Friel), Vernon é um negociante de drogas (remédios) que oferece a Eddie um amostra de uma nova droga, NZT-48. Eddie aceita, e para sua surpresa, a droga aumenta sua inteligência e melhora sua concentração, o cérebro que normalmente usado em 20% de seu limite, passa a ser usado em 100%, todos os sentidos tornam-se aguçados e uma nova visão sobre os problemas de sua vida começam a surgir.

    Eddie pede a Vernon mais desta droga e ele concorda. Quando Eddie vai ao apartamento de Vernon, ele o encontra morto. No apartamento, Eddie encontra um pacote do NZT escondido atrás de um forno, junto com uma caderneta com diversos nomes e algum dinheiro. Com o dinheiro de Vernon e o NZT, Eddie muda sua imagem e abandona a carreira de escritor pelo mercado de ações. Ele enriquece em um ritmo muito rápido e logo é empregado por um poderoso homem de negócios, Carl Van Loon (Robert DeNiro). Eddie também volta com Lindy. Enquanto isso, ele sente que está sendo seguido por um homem de casaco castanho (Tomas Arana). Em pouco tempo, os efeitos colaterais do NZT aparecem. Eddie não consegue cumprir uma tarefa designada a ele por Carl por conta da falta do NZT, e ainda teme que possa ter matado uma mulher. Ele descobre que a retirada da droga leva a morte ou a serios danos às faculdades mentais.

    Alertam-no para reduzir as dosagens até que ele possa parar antes que seja tarde demais. Eddie tenta seguir a recomendação, mas, sem a droga ele passa muito mal. Eddie paga a um químico para produzir mais NZT, e enquanto isso, tenta recuperar seu pacote que foi roubado.

    Um ano depois, Eddie teve seu livro publicado (o título do livro, Illuminating the Dark Fields, faz apologia à novela que inspirou o filme) e está concorrendo a uma vaga no senado dos Estados Unidos e além disso é considerado um potencial candidato à presidência. Durante sua campanha para senador, Carl aborda Eddie e lhe informa que ele comprou a companhia farmacéutica que criou o NZT e forçou o fechamento do laboratório de Eddie. Carl oferece a Eddie um suprimento ilimitado de NZT, entretanto, Eddie precisa aceitar trabalhar novamente para Carl. Eddie recusa a oferta, informando a Carl que seu cérebro mudou devido ao seu longo uso da droga, e que não precisa mais tomá-la. Segundo ele, pôde reformular a composição da droga, de modo que seu cérebro ficou permanentemente alterado, retendo os benefícios cognitivos oferecidos pelo NZT.

  6. filme lucy,vi o filme gostei do tema,é uma pena que um tema dest

    gostei do tema,é uma pena que um tema tão importante, tenha sido contado apenas em 90 minutos ,poderia ter sido contado em no minimo tres filmes,para que ficasse  mais claro.

  7. uma estreia na HBO

    Dos melhores filmes de ação que eu já vi. Uma excelente produção que quando lançou tempo primeza no cinema deu muito o que falar. Agora que é <a href=”http://www.hbomax.tv/programacion.aspx” >uma estreia na HBO disponível</a>, não deixará de vê-lo uma segunda vez. Recomendo muito.

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