O salário do medo ronda o trabalhador, por Jota A. Botelho


Fotogramas da versão colorizada: a explosão de um dos caminhões carregado de nitroglicerina.

O salário do medo ronda o trabalhador

por Jota A. Botelho

Hoje em dia há várias leituras na blogosfera baseadas em obras do passado que vão desde o mundo das artes, das ciências, da filosofia e da história, até mesmo do amor para nos explicar o que se passa em nosso país. De repente, parece que virou moda, talvez porque quase tudo ficou atual no Brasil. Breve estaremos analisando os papiros do Egito dos faraós tamanho o retrocesso que nos apresenta. E para não ficar fora de moda, embora minha avó já dizia que o bom da moda é ficar fora dela, fui buscar então nas obras de dois Georges, a de Henri-Georges Clouzot, diretor do filme baseado no livro homônimo do segundo, Georges Arnaud, O Salário do Medo, de 1953, uma visão sobre a precarização do trabalho carregado de nitroglicerina pura. 

https://www.youtube.com/watch?v=BH-CxOfFFdg align:center


Enquanto o mundo avança a passos largos para uma globalização inclusiva, nas Novas Rotas da Seda, e o Brasil ficando de fora, voltamos à nossa tragédia…

O SALÁRIO DO MEDO DO NOVO PRECARIADO


Fotograma original do filme O Salário do Medo, 1953.

Um dos grandes achados do capitalismo para prosperar foi colocar no bolso dos trabalhadores alguns trocados para ele se sentir minimamente seguro com o pão nosso de cada dia. Embora os riscos de sua sobrevivência sempre se mantiveram presentes – porque ele ainda continua dependente das relações de trabalho com o patronato – mas mesmo assim foram criadas leis para garantir sua posição no mercado de trabalho com aumentos transitórios de salários. No entanto, quando essas relações se precarizam e retrocedem para aquém de suas conquistas, realizadas ao longo de décadas, o MEDO se faz presente e pode se tornar altamente explosivo. Esse novo precariado que já se pontifica na linha do horizonte, acuado e sendo pago por um salário do medo pode virar um animal irracional, retrocedendo também à nossa ancestralidade antes de se fazer racional, antes de ter dado o salto qualitativo do mundo da natureza para o mundo da cultura. E uma sociedade povoada por seres irracionais está fadada ao fracasso. Quando o medo de viver se funde e se confunde com a falta do medo de morrer, as mediações subjetivas do ser humano deixam de existir e se metabolizam na barbárie. As múltiplas temporalidades do passado com o presente e com o futuro também se retrocedem ou simplesmente deixam de existir. O tempo histórico como perspectiva de se tornar sujeito de si mesmo perde suas referências para o trabalhador e tudo vira predicado para o precarizado. É quando surge então o individuo incivilizado, vivendo estranhado no mundo, num mundo de outro, ou em um mundo de ninguém, simultaneamente. As vísceras do sistema se expõem de tal forma que ele se torna insuportável e intolerável. Tudo que nos rodeia passa a ser temporário e efêmero. E temerário, pois o que realmente importa é o instinto da sobrevivência, assentado na disputa diária, na luta permanente e NA MORTE. É nitroglicerina pura. Muito parecido com a história que nos conta o filme de Henri-Georges Clouzot, baseado no romance homônimo O Salário do Medo, de Georges Arnaud, com muita nitroglicerina na veia.

O LIVRO DE GEORGES ARNAUD


Capas do livro de Georges Arnaud: edições em português e francês.

Georges Arnaud abre o seu romance com uma epígrafe: “A Guatemala não existe. Eu sei-o, vivi lá”. Analisando não só pelo fato do livro ter sido baseado em suas viagens pela América Latina, mas do ponto de vista histórico, da época em que a obra foi lançada, cerca de 1950, a Guatemala existe, claro, e existia sim – e que coincidência – com um governo progressista nas mãos de Jacobo Ardenz, no período de 1951-1954, que tentou realizar uma reforma agrária, entrando em choque com o monopólio das empresas americanas, sobretudo com a United Fruit Company. Em resposta, seu governo foi alvo de um golpe de estado organizado pela CIA que instalou uma ditadura no país, daí o nome República das Bananas. Este foi o primeiro golpe de estado promovido pela CIA na América Latina durante a Guerra Fria. Che Guevara estava por lá e depois foi para o México tomar umas aulas com Fidel Castro de como se fazer uma verdadeira revolução. Mas a epígrafe de Arnaud, agora do ponto vista literário, se refere à aguda precariedade das condições de vida do lugarejo que ele deve ter recriado e que se localizava no interior da Guatemala. Realmente, lá não existia vida alguma, só miséria. Uma pobreza absurda que também ainda habita o Brasil afora, principalmente se persistir esse golpe de estado, que acabamos de sofrer, por um bando de aventureiros de sobrenomes estrangeirados, instalados nos três poderes de uma república imatura e aliados de oriundos mequetrefes da pior espécie. 


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Carlos Lacerda e sua persistente herança maligna da cantilena lacerdista, não saberia se sorria ou se chorava em seu túmulo corvídeo pelo primarismo dos golpistas. Talvez ele dissesse: “Quanto amadorismo! Não sabiam que estavam todos grampeados? Sempre fomos vigiados! Agora estou aqui sem saber se morri”. O Brasil também ainda nos parece que não sabe porque está morrendo. E nas lajes, sobre a lápide, me aparece um goiano de Formosa/GO para – quem sabe – explodir de vez o “engenhoso” golpe dos lacerdinhas. E é ainda da antiga corrutela Formosinha dos Couros, talvez uma das cidades mais paradoxal do Brasil: a cidade é horrorosa, mas chama-se Formosa; a lagoa de lá é linda, mas é conhecida como lagoa feia; a cadeia fica na praça da Liberdade; e o sujeito mais feio da cidade tem apelido de quase-lindo. Pode? Não pode! Logo, logo, talvez estaremos dizendo: “O Brasil não existe. Eu sei-o, vivo aqui”.

O FILME DE GEORGES CLOUZOT

Fotogramas da versão colorizada: cenas de abertura do filme com uma criança brincando com baratas ao redor de uma poça de lama. 

O país é a Guatemala, a cidade, Las Piedras, uma corrutela insalubre e degradada pela miséria e o abandono no interior do país. Nas primeiras cenas do filme o cenário que nos apresenta é o mais cruel possível: uma criança nativa brinca com baratas ao redor de uma poça de lama. Eis Las Piedras, um túmulo do subdesenvolvimento, com ruas esburacadas, cheias de poças d’águas estagnadas, gente pobre por todos os lados transitando pelas ruelas do lugar. Essa cena inicial nos faz lembrar do filme de Sam Peckinpah em sua fase mais radical, Meu Ódio Será Sua Herança, de 1969, onde crianças assistem com satisfação um escorpião sendo devorado por formigas. Quem manda em Las Piedras é uma companhia petrolífera norte-americana, a SOC (Southerm Oil Company), cuja sede regional fica no lugarejo. Um dos personagens do filme denuncia: “Onde tem petróleo, têm yankees”. Depois que alguns poços de petróleo da companhia se incendeiam, quatro homens serão selecionados para transportar uma carga cheia de explosivos – galões de nitroglicerina – por uma estrada a caminho do inferno. Assim, a civilização capitalista neoliberal vai se descortinando na tela diante de nossos olhos. Os homens estranhados de seu mundo, desterrados de seu país, que foram para lá como imigrantes ou simples aventureiros, possivelmente fugindo de suas próprias misérias de origem e em busca de riquezas, se reúnem no El Corsário Negro, nome bastante sugestivo da modernização que nos traz esse tipo de desenvolvimento. Não tardará, receberemos eles aqui de braços abertos. São pessoas de vários nacionalidades, franceses, italianos, holandeses, alemães e por aí vai. A empresa, que explora a mão de obra nativa, sem nenhum DIREITO TRABALHISTA, claro, enfrenta uma frágil resistência de uma espécie de sindicado local quando das mortes dos trabalhadores na explosão dos poços de petróleo. Mas ela tem a sua própria segurança, que nos é mostrada da janela quando aberta pelo chefe do escritório central. Afinal, é ela quem manda e está acabado. Tem também a sua própria cidadela confortável para os administradores, enfim, ela não se mistura com as pessoas do lugar. Sua natureza é indubitavelmente colonial. Foi para lá ganhar dinheiro e ponto. Dane-se o resto. Tudo é precário para todos que estão na berlinda. No romance, Arnaud expõe esse estado de coisas: “O suor, por vezes o sangue desses homens, são necessários para o bom andamento da máquina”. Mas é esse o grande truque, a esperteza e o triunfo da mecanização do capitalismo atual, que vem deixando de correr qualquer risco: quando o homem perde o controle da máquina, a máquina se volta contra ele. Só veremos isso mais claramente no final do filme, embora com ressalvas da época de sua realização no ano de 1953, data de sua estreia nos cinemas.


Fotogramas da versão colorizada: a morte do parceiro na luta pela sobrevivência, a entrega da tarefa conforme o combinado e o pagamento pela missão cumprida.

O Salário do Medo é isso, um cenário em que são jogados seres humanos num subdesenvolvimento perverso com uma conversa fiada de uma modernização capitalista ditada pelo mercado. Uma metáfora da barbárie humana típica de uma República das Bananas. Os quatros caminhoneiros escolhidos a dedo vão fazer sua travessia naquela estrada da morte graças ao salário prometido, mediante o cumprimento da tarefa, e que irão explorar os seus medos diante da necessidade de sobrevivência de cada um, para poderem realizar o sonho que todos desejavam, partir de vez daquele inferno. O pior do monopólio das riquezas, é que ele passa a ter também o monopólio do dinheiro. E Arnaud descreve em seu livro o drama existencial daqueles homens: “… Os dentes cerrados mediam com raiva o tamanho da ratoeira… Não há dinheiro sem trabalho… E sem dinheiro não se vai embora…” (citação resumida e adaptada).
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O filme em p&b aqui: PARTE I  & PARTE II

O filme colorizado em esloveno (?), aqui.

Sobre Georges Clouzot, aqui. 

Fotogramas da versão colorizada e cartazes do filme
O Salário do Medo, 1953 (clique p/ampliar).

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Jota Botelho

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