Os olhos de Berlim, por Rogério Mattos

 

O olhar de Doctor Manhattan ou Mister 1989 (Berlim)

Os olhos de Berlim, por Rogério Mattos

O que é o marco de 1989 para nós? A queda do muro de Berlim consagrou a vitória da democracia ocidental ou um mundo pós-burguês e pós-proletário, ou seja, dominado pela tecnocracia e pelo alto capital financeiro, onde qualquer ideia de luta de classes deveria ser abolida?

No filme Watchmen, um trabalho contra qualquer Liga da Justiça, vê-se a continuação da lógica da Guerra Fria só permitida pelo suposto consenso democrático que a queda do Muro de Berlim justificou. A vitória democrática justifica a continuação da lógica de guerra, de 1989 à destruição das Torres Gêmeas, da crise econômica de 2008 às “revoluções coloridas”.

Como, então, com a análise Gilles Deleuze sobre o cinema de Orson Welles (o mesmo que filmou sobre o magnata da mídia, o famoso Cidadão Kane), com seu conceito de “potências do falso” se pode compreender como se forma um Vigilante, um super-herói, uma Liga da Justiça? Em tempos de justiceiros curitibanos, de estado de exceção e de mundo pós-democrático, o filme pode nos trazer reflexões preciosas para se compreender o momento atual, em específico o neomacartismo, vivido no Brasil e no mundo.

Por Rogério Mattos: Professor e tradutor da revista Executive Intelligence Review. Formado em História, mestre em Letras pela UERJ e doutorando em Filosofia pela mesma faculdade. Mantém o site http://www.oabertinho.com.br, onde publica alguns de seus escritos.

O texto pode ser lido em PDF no Academia.edu. Clique aqui para acessar.

Uma cidade devastada, milhares de mortos e o Comediante, com seu charuto na boca e fuzil na mão, é interpelado por seu parceiro incrédulo, que participa da chacina mas sem o destemor e crueldade de Edward Blake: “O que aconteceu com o sonho americano?”, e o Comediante responde, às gargalhadas: “Ele se tornou realidade”. Chegamos aqui ao que Gilles Deleuze uma vez chamou, sobre o cinema de Orson Welles, de potências do falso. Blake nos remete à figura do falsário, aquele que “elevando o falso à potência, a vida se libertava tanto das aparências quanto da verdade: nem verdadeiro nem falso, alternativa indecidível, mas potência do falso, vontade decisória” (DELEUZE, 2007, p. 178). Edward Blake poderia ser uma espécie de justiceiro, um justiceiro da primeira Guerra Fria, um John McCarthy armado, correlato imediato dos justiceiros dessa espécie de nova Guerra Fria que vivemos, em tempos de lawfare e de neomacartismo, de Bolsonaro a Sérgio Moro. Assassinos a sangue frio, sejam serial-killers do tipo dos engravatados curitibanos, calculistas; ou os daquela espécie mais bruta, como os jovens atiradores em escolas americanas, correlato púbere do ódio escancarado de políticos reacionários. De um lado, assassinatos de reputação e coerção moral, que levam à falência psicológica e até mesmo física dos envolvidos (Dona Marisa, Reitor Chancellier); de outro, o cheiro selvagem, amplamente difuso, que conhecemos a mais tempo. Talvez. Edward Blake poderia ser um desses, mas, como potência do falso, faz inverter o sinal que o apontaria como um mero justiceiro, ou seja, um falsário qualquer.

Há uma série dos falsários que liga o “homem da verdade” ao artista. Este é o que eleva o falso à sua potência, descentra as relações binárias entre aparência e verdade. “O movimento fundamental descentrado torna-se movimento em falso, e o tempo fundamentalmente liberado torna-se potência do falso que agora se efetua no movimento em falso” (DELEUZE, 2007, p.174). O movimento em falso se dá quando o Comediante, depois de elevar à última potência a falsidade em que vivia (sempre encarada ao máximo com uma ironia amarga, cortante, como no diálogo acima reproduzido), sempre se movendo com passos em falso, descobre a armação final da qual fazia parte sem saber. Por isso, é assassinado. Blake sempre se trai: mata a mulher que estuprou e engravidou; mata ela e o filho ainda dentro da barriga gigante. Comete atrocidades inumeráveis. Faz parte do sistema e com ele se vangloria. Mas é uma vangloria inútil. Ele é um bufão em cada um de seus atos: o falsário por excelência, o exato oposto do primeiro da série dos falsários, o “homem da verdade”. Pode-se substituir, na citação, Orson Welles por Alan Moore:

Orson Welles é o primeiro: ele liberta uma imagem-tempo direta e faz a imagem ficar sob o poder do falso. Sem dúvida estes dois aspectos estão estreitamente ligados, mas as críticas recentes deram cada vez mais importância ao segundo, que culmina com Verdades e mentiras. Há um nietzschianismo de Welles, como se ele tornasse a passar pelos principais pontos da critica à verdade em Nietszche: o “mundo verdadeiro” não existe e, se existisse, seria inacessível, não passível de evocação; e se fosse evocável, seria inútil, supérfluo. O mundo verdadeiro supõe um “homem verídico”, um homem que quer a verdade, mas tal homem tem estranhos móveis, como se ele escondesse em si outro homem, uma vingança: Otelo quer a verdade, mas por ciúmes, ou pior, por vingar-se de ser negro, e Vargas, o homem verídico por excelência, parece demasiado tempo indiferente à sina de sua mulher, inteiramente ocupado nos arquivos juntando provas contra seu inimigo. O homem verídico não quer finalmente nada mais que julgar a vida, ele exige um valor superior, e bem, em nome do qual poderá julgar; tem sede de julgar, vê na vida um mal, um erro a ser expiado: a origem moral da noção de verdade. À maneira de Nietszche, Welles não parou de lutar contra o sistema de julgamento: não existe valor superior à vida, a vida não tem de ser julgada, nem justificada, ela é inocente, tem a “inocência do devir”, para além do bem e do mal… (DELEUZE, 2007, p. 168)

O fim do Comediante dá lugar a emergência como protagonista do personagem soturno, mascarado, Rorschach. Este é como os detetives das ficções tradicionais (mais para Dupin, de Allan Poe, do que para o Holmes, de Conan Doyle). Talvez o mais humano dos personagens, ele é o responsável por investigar o assassinato do Comediante e suas consequências, até chegar ao plano terrível de Ozymandias. Este se configuraria numa potência particular das forças do falso. Ozymandias, mais um dos falsificadores, o exato oposto do falsificador por excelência, o artista. O sonho americano só se torna realidade com a destruição, e é nisso o que se empenha o dublê de super-homem; na verdade, o duplo humano da força mental de Manhattan, aqui chamado de Berlim por causas que serão explicadas mais à frente. Dr. Manhattan (ou ele e seu duplo humano), na cultura, é o doutor Strangelove. No mundo político, é o lorde Bertrand Russell, defensor do MAD (Mutual Assurance Destruction), para quem os EUA e a URSS deveriam se bombardear de tempos em tempos para manter a “população controlada”. O sinal final do filme é a destruição das Torres Gêmeas, é o plano aberto partindo do Ground Zero. É a volta oficial do confronto leste-oeste, da nova Guerra Fria inaugurada com o 11/09. É contra essa verdade irrefutável que se volta Rorschach, contra esse consenso burro que restabelece a dualidade da verdade e aparência, ou seja, de uma verdade sempre sob aparência, de uma verdade, em suma, que remete a causas superiores: o móbil da aparência de verdade, potências do falso.

O ato de catecismo de uma ditadura universal: esse o significado do 11/09, supostamente unir o mundo contra um inimigo abstrato (Osama Bin Laden, afgãos, ou Manhattan que se refugia em Marte – puras abstrações). Ao relatar o acontecimento como ocorrido em plena Guerra Fria, muitos sinais são trocados, já que o autor do filme antecipa um acontecimento futuro num contexto onde ele seria impossível. O ato de Manhattan/Ozymandias, na tela, é a destruição de Nova Iorque. Para quê? Para garantir a “paz mundial”, o ato inaugural do catecismo em direção a uma ditadura universal calcada no combate ao terror invisível. Quando se suprime à força a dualidade pela qual o mundo se movia, cria-se o consenso burro porque temeroso, porque baseado no pavor. Não foi outro o objetivo do 11/09, criar o pavor em escala mundial e iniciar a Guerra ao Terror. Se há paralelo entre a figura das duas espécies de super-homem que figuram no filme, Manhattan e Ozymandias, há uma clivagem entre os personagens que nas histórias em quadrinho sempre apareceram como irmãos, ainda que um se superpusesse em importância ao outro. Agora Robin, o Comediante, é o protagonista, o motor oculto de toda a história. Batman, quando descobre as manipulações de Ozymandias, abaixa a cabeça. Ele é capaz de negociar, de criar consenso com uma prática abominável, de aceitar o impensável, o genocídio. E é por não aceitar esta verdade que o Comediante é morto. O outro que decifra a verdade (que faz todos os outros Vigilantes a descobri-la) também é morto não por tê-la descoberto, mas por não aceitar que se realize as profecias de Dr. Strangelove ou as do satânico lorde Bertrand Russell:

Mas alguém dirá que os maus tempos são excepcionais e que podem ser enfrentados com métodos excepcionais. Isto foi mais ou menos certo durante o período de lua de mel do industrialismo, mas deixará de ser certo, a menos que se possa diminuir o aumento da população. Atualmente, a população do mundo cresce à razão de 58.000 indivíduos por dia. A guerra, até agora, não teve grande efeito neste crescimento, que continuou ao longo de cada uma das duas guerras mundiais. A guerra… até agora, foi decepcionante, neste aspecto… mas, talvez, a guerra bacteriológica seja mais efetiva. Se uma Peste Negra se propagasse uma vez a cada geração, os sobreviventes poderiam procriar livremente, sem encher demasiadamente o mundo… A situação, seguramente, seria algo desagradável, mas o que importa? As pessoas realmente nobres são indiferentes à felicidade, sobretudo à felicidade dos demais. (RUSSELL, 1959, p. 102-4)

Elevar à potência do falso é mostrar o personagem em sua verdade. O que Alan Moore busca é desmistificar a lógica da Guerra Fria: aparência de paz com a verdade da guerra. Como desfazer esse laço? Julgando o homem, julgando a vida? Não diria isso. Ele cria a antítese de qualquer julgamento. Como precursor sombrio, o Comediante. Este, como personagem de uma fábula, é a figura que indica que quando o Comediante morre, na vida, os planos mais sinistros estão em ação. Tática do terror, guerra ao Eixo do Mal, implosão da lógica de Guerra Fria a elevá-la a suas últimas consequências. Quem é capaz de desvendá-la finalmente? Rorschach. Assim, Deleuze, utilizando de Nietzsche e Welles, opera uma nova clivagem:

Atrás do homem verídico, que julga a vida do ponto de vista dos valores pretensamente mais altos [Ozymandias: matar milhões para salvar bilhões], está o homem doente, “doente de si próprio”, que julga a vida do ponto de vista de sua doença, de sua degenerescência e esgotamento. E isso talvez seja melhor do que o homem verídico, pois a vida doente ainda é vida, ela opõe à morte a vida, em vez de lhe opor “valores superiores”… Nietzsche dizia: atrás do homem verídico, que julga a vida, há o homem doente, doente da própria vida. E Welles acrescenta: atrás da rã, animal verídico por excelência, há o escorpião, animal doente de si mesmo. Um é idiota, e o outro, um sujo. No entanto eles são complementares como duas figuras do niilismo, duas figuras da vontade de potência. (DELEUZE, 2007, p. 172)

O homem dos ideais superiores e o homem degenerado estão juntos do início ao fim da trama, e é por um consenso mútuo que ele é assassinado. Rorschach não apela contra sua morte. Se nega o consenso político, sua impossibilidade de não revelar o genocídio cometido por Manhattan/Ozymandias, por outro lado concorda em ser aniquilado. Chega a implorar por isso frente a hesitação dos outros Vigilantes. São dois extremos dentro da série dos falsários. Como encontrar, portanto, a potência do falso, o falsário elevado a sua própria potência, ou seja, capaz de mudar o sinal que a própria falsidade indica? Devemos lembrar dos filósofos cínicos na Grécia. Diógenes é responsável, segundo o Oráculo, de mudar o sinal, de falsificar a moeda. Primeiro exemplo histórico da potência do falso, diante do qual Platão ainda é um homem verídico, um julgador da vida… Ao seguir estritamente a linguagem nietzschiana, Platão é o personagem dos ideias ascéticos, enquanto Sócrates, com seu pedido a sacrificar um galo a Asclépio antes de morrer, é o doente. Não por outro motivo o cinismo vai reconfigurar todo o panorama da filosofia antiga, muito além de uma suposta modernidade de Aristóteles… Mas aqui subscrevemos um único ponto de vista, ou seja, colocamos personagens-conceitos para tornar evidente o que Deleuze diz quando cita a distinção entre ideais superiores/homem doentes como fazendo parte do mesmo contínuo. São puras ficções, expressões da verdade. Se Leibniz é quem coloca a questão do “ponto de vista”, da analysis situs, ele também é quem dobra e desdobra, faz entrever, os inúmeros mundos possíveis. Ficamos com esta porta aberta, com este melhor dos mundos possíveis como expresso por Nietzsche.

Lorde Bertrand Russel: “As pessoas realmente nobres são indiferentes à felicidade, sobretudo à felicidade dos demais.”

Ao sair do mundo ficcional e chegar ao factício, fica mais fácil resolver a questão do heroísmo em Watchmen. O caso de Julian Assange é exemplar. Um hacker, alguém que viveu a cultura punk, frequentou submundos e resolve “enfrentar o sistema”. Daniel Estulin tem um livro onde disseca a formação do Wikileaks. Podemos dizer que ele foi um movimento anti-sistema ou uma organização de contra-insurgência? Como mais um dos niilistas, ele está atrelado ao homem verídico como o escorpião ao sapo, o sujo ao burro. Pegar arquivos secretos e distribuir para os veículos da grande imprensa internacional pode ser considerado um ato “rebelde”? É o que questiona Estulin. Ainda mais: se a política de tráfico de drogas é responsável em boa parte por manter em pé dívidas soberanas de países e a liquidez do sistema financeiro internacional, como nenhuma página a respeito disso vazou pela Wikileaks? E tem mais um ponto para quem acompanha os escritos do agente da KGB: muitos documentos secretos são desclassificados ou vazados pelas agências de inteligência de maneira proposital. Ou são puras mentiras fabricadas para enganar os agentes que se baseiam nesses documentos e, quando vem a público, dar uma versão distorcida de uma história, ou são meias verdades, parcelas delas, utilizadas para desviar o foco de questões mais importantes que os mesmos espiões não querem que ninguém saiba. A qualidade dos documentos da Wikileaks é baixíssima e, considerando que o escorpião serve ao sapo, o objetivo dos vazamentos é risível. Serviu primeiramente para despistar – como se tudo estivesse controlado pelo sistema – a incrível engrenagem de espionagem que passou a valer depois do Ato Patriota e aprofundado exponencialmente depois da crise de 2008, que fez surgir do nada as “redes sociais”, além do Google ter sido devidamente turbinado, tornando-se veículo monopolístico na internet. Toda uma outra potência do falso nos revelou Edward Snowden.

Assange, Rorschach e mesmo muitos adeptos de Moro e Bolsonaro hoje em dia se movem por tal mentalidade coletiva. Um ódio cego ao lado de uma ingenuidade política sem fim. Como na fala do anarquista do filme Watchmen: “Carcaça de cachorro atropelado encontrada no beco hoje de manhã. Esta cidade tem medo de mim porque conheço sua verdadeira face. As ruas são extensões das sarjetas cheias de sangue. Quando os canos dos esgotos se encherem de sangue todos os vermes morrerão afogados. A sujeira acumulada de sexo e crime envolverá prostitutas e políticos, que voltarão os olhos para cima, implorando… ‘salve-nos!’… e eu do alto sussurrarei ‘não!’. Tiveram uma escolha. Todos eles. Poderiam ter seguido os passos de homens bons como o meu pai, ou o presidente Truman. Homens decentes que acreditavam em trabalho honesto. Ao invés disso, eles seguiram os libertinos e comunistas, e só perceberam que a trilha levava a um precipício quando já era tarde demais. E não me diga que não tiveram escolha. Agora o mundo inteiro está à beira do precipício, olhando pra baixo no inferno sangrento. Todos aqueles intelectuais e gente de fala mansa… De repente mais ninguém tem nada a dizer”. Expressões da vontade de potência, forças do niilismo. Se Rorschach é contra a implosão do centro de Nova Iorque por que tem nostalgia de Truman, o responsável pelas duas bombas atômicas no Japão, mesmo depois que esse país se rendeu publicamente? O mundo é sujo como sujo são os doentes da própria vida. E uma ingenuidade flagrante (“como meu pai, ou o presidente Truman”) sempre recobre seus discursos. Como ser doente e, em certa medida, não ingênuo, não relativamente inconsciente? Moro e seus asseclas são os sapos; não sofrem desse tipo de inconsciência, já que são os homens verídicos. Por isso essas duas forças do niilismo trabalharam em conjunto para levar à situação de caos social que ainda vivemos.

Se Rorschach não é o herói, como uma leitura à primeira vista pode nos levar a crer, quem o seria? O Comediante talvez seja o personagem mais fascinante. Pouco aparece no filme. Seu estilo bonachão, e que faz mostrar a verdade da maneira mais cínica, pode lembrar personagem como o Poderoso Chefão ou de figuras atormentadas como o protagonista de Taxi Driver. De fato, do sentimento de superioridade inicial, Edward Blake se deixa dominar por uma melancolia profunda, própria aos sofrimentos do antigo combatente de guerra, o depois taxista nas ruas de Nova Iorque, Travis. De acordo com os inúmeros escritos estéticos de Friedrich Schiller, o sentimento heroico, elevado, tem relação com o sublime (e seu parentesco com o trágico), como também com os sentimentos de graça (compreendido também no sentido teológico) e dignidade. Alan Moore, somente na conclusão do filme, parece indicar como se chegar a esse ideal estético. Por via cínica, é verdade, o que o faz também estar dentro do éthos da produção artística moderna.

Eddie Blake estupra Espectral. Tenta uma primeira vez e apanha por causa disso. Na segunda tem sua tentativa que termina em êxito. Blake é como aquele personagem da pergunta que Gilles Deleuze faz por toda a vida, de Diferença e Repetição ao O que é filosofia?: quem quer a verdade? É o ciumento, é o tarado? Como conseguir a verdade? Pela extorsão, pelo estupro, pela tortura? Se escolher o meio de se chegar à verdade tem relação com a escolha dos parceiros filosóficos, com a criação de pactos (com quem se pode criá-los e quem são os traidores), com toda uma filosofia que, revista de cima a baixo, retoma o platonismo de maneira invertida, e por isso ainda mais original, como caracterizar, nesse contexto, o estuprador? Dificilmente Blake seria um parceiro filosófico. Ele, na verdade, de maneira invertida, como que repassa condutas como as dos procuradores de Curitiba, de Sérgio Moro, de cima a baixo. Pela inversão, pelo cinismo (“um Hegel barbudo e um Marx imberbe”, o objetivo da filosofia, como escrito no prólogo de Diferença e Repetição), mostra o sadismo de tais personagens. Saindo do mundo da ficção ou dos personagens-conceitos, o fato que demonstra que tal sistema da crueldade está na conduta desses pretensos salvadores da pátria foi a dosimetria da pena aplicada contra Lula: nove anos, segundo Moro, já que ele é chamado de Nine (nove dedos) por aquela turma; depois, a estranhíssima coincidência de todos os três desembargadores o condenarem, sem supostamente saberem com antecedência o voto do outro, a 12 anos e 1 mês de prisão. 12 + 1 = 13. Teatro da crueldade, brincadeiras do Comediante.

Espectral II, Laury, filha de Sally Júpiter (Espectral I) e Eddie Blake, só descobre a identidade de seu pai ao final do filme. É quando sua mãe deixa um amargor de toda vida de lado e abraça a filha com verdadeira sinceridade: “Gosto de Eddie porque ele me deu uma coisa muito boa, você”. Batman assiste a cena, agora devidamente em relação permanente com Laury, ex-amante de Doutor Manhattan, e que só deixa esse já que, acusado de ter provocado o holocausto (na verdade, Ozymandias usa os poderes mentais de Manhattan sem este o saber para fazer o atentado), refugia-se nas galáxias. Batman sabe que o preferido de Laury é o Doutor, capaz de se multiplicar em vários homens para satisfazer sexualmente sua parceira, enquanto se mantém em outra sala realizando seus estudos (vê-se que é como o personagem Vargas, apontado por Deleuze na ficção de Welles: “o homem verídico por excelência, parece demasiado tempo indiferente à sina de sua mulher, inteiramente ocupado nos arquivos juntando provas contra seu inimigo”). Ele também tinha uma ex-amante, uma jovem cientista que é sua namorada quando ele sofreu o acidente nuclear que o deixou com super poderes. Ao ver sua mulher ficando velha e se deparar com a jovem Laury, Manhattan, que não envelhece, larga sem dó a primeira mulher para ficar com a filha do Comediante. O amor entre os dois não é contestado em nenhum momento da trama, a não ser pelas tramas de Ozymandias que manipula emocionalmente Manhattan, mantendo-o alheio das preocupações terrenas, o que o faz se afastar de sua mulher. Ela quer sexo, carinho e atenção. Há um racha no relacionamento, logo preenchido pelo “idiota” Batman (lembre-se das dualidades: idiota/sujo, sapo/escorpião, duas vertentes do niilismo, da vontade de potência, na série dos falsários). Laury continua a gostar de Manhattan, como a cena do encontro dos dois em Marte comprova (uma cena de amor mesmo depois de estar junto a Batman). Aqui chegamos na ironia do artista; para falar com propriedade, chegamos ao seu cinismo, sua condição de chegar ao sublime. A filha nascida de um estupro condescendentemente aceita sua condição; Batman aceita sua condição, sempre como um idiota, de amante da filha bastarda e enamorada do ex-parceiro que viajou para outras terras.

Uma série de condescendências, portanto. Desde a que deixa como um segredo o genocídio, até a condescendência por parte de Rorschach com sua morte, e finaliza com a condescendência em família, da aceitação sem escrúpulos, seja por amar uma mulher que não é de toda sua (Batman), seja porque o estupro se naturalize com facilidade. Tudo acontece como se houvesse um plano prévio para se aceitar qualquer barbárie, ou como se aceitá-la fosse algo comum. Não é o fato da estupidez ser aceita (de uma maneira ou de outra temos de aceitá-la como condição do mundo, pelo menos), mas a facilidade, a naturalidade como tudo isso se dá é que transforma todo esse “consenso” como algo extremamente artificial. Batman é como um Homer Simpson que é tão alienado quanto se lixa para qualquer escrúpulo (nesse sentido, em via inversa, não é tão distante do pai de sua amante, Blake). O estupro em família é o teste da dignidade. É uma dignidade sem graça que aparece no final do filme, sem verdadeiro sorriso, sem gargalhada, sem verdadeiro sentimento de paz. Para lembrar Schiller, o sentimento de graça é a última potência do sentimento de dignidade. É a capacidade de se dar, de se doar, sempre de graça, e sempre na medida em que a dignidade segue espaço para que essa abundância de vida surja. Falei que isso era um tema teológico, mas esse é exatamente como é tratado por filósofos do Renascimento, como Nicolau de Cusa e Lutero, por exemplo. Deus é o pai das luzes, e elas são abundantes e infinitas. Sem a graça não há salvação – para corrigir o lema corrente que “fora da fé não há salvação”. Assim, sem a graça, a gargalhada, o riso franco e aberto, não há liberdade. O que o final do filme sinaliza é uma punhalada em nossos escrúpulos. Caso não dermos muita importância à questão familiar de Laury e Sally, o Batman aparece como o passivo por excelência, não como o ingênuo – condição de toda graça. Afinal,

Os homens ditos superiores são vis ou maus. Mas o bom só tem um nome, generosidade, e é o traço pelo qual Welles define sua personagem preferida, Falstaff, é também o traço que se supõe dominante no eterno projeto de Don Quixote. Se o devir é potência do falso, o bom, o generoso, o nobre, é o que eleva o falso à enésima potência, ou a vontade de potência até o devir artista. Falstaff e Don Quixote podem parecer falastrões ou lastimáveis, ultrapassados pela história: mas, são peritos em metamorfoses da vida, opõe o devir à História. incomensuráveis a qualquer julgamento, têm a inocência do devir. E sem dúvida o devir é sempre inocente, mesmo no crime, mesmo na vida esgotada, na medida em que ela ainda é um devir. Mas o bom se deixa esgotar pela vida em vez de a esgotar, colocando-se sempre a serviço do que renasce na vida, do que metamorfoseia e cria. Ele faz do devir um Ser, tão proteiforme, em vez de arrojá-lo no não ser, do alto de um ser uniforme e paralisado. São dois estado da vida que se opõem no seio do devir imanente, e não uma instância que se pretendesse superior ao ao devir, seja para julgar a vida, seja para apropriá-la e esgotá-la de qualquer modo. (DELEUZE, 2007, p. 173)

O que Alan Moore mostra são seres inexpressivos, mesmo que Vigilantes (lutadores americanos contra a União Soviética em plena Guera Fria); o fim de todo e qualquer Vigilante, de um tipo de heroísmo baixo, sempre vulgar (não há espaço nem para o heroísmo idolatro dos anti-heróis). A adaptação da história em quadrinhos faz mexer na dignidade, tática para se alcançar o sublime, ainda que intimamente entrelaçado com o trágico, ou seja, a alusão ao atentado as Torres Gêmeas. A tática é elevar o falso à eleva potência pela mexida nos escrúpulos mínimos de dignidade de quem assiste o filme. A passividade de todos os personagens ou sua suposta bondade (não ingenuidade, mas potências do falso) impressiona. Por isso Rorschach, como dublê de Assange, não pode ser herói. Sua verdade é parcial já que, amargurado com seus conflitos existenciais e alheio às questões emocionais entre os demais personagens, tem só a sua ideia fixa como meta: revelar a verdade como o ciumento, como aquele que foi traído; revelar a verdade como vingança, como retaliação contra a vida doente que teve de enfrentar. Só o diretor, em sua boa adaptação, consegue dar conta desse quadro e é exatamente pelo fundo emocional que toda a falsidade desse agenciamento de falsários ou Vigilantes é revelado: assim, ele faz do devir um ser proteiforme, um cruzamento de inúmeras mentiras que só é revelado por algo que está fora ou, no máximo, fica implícito para quem ver o drama e não a parte mais racional do relato. Porque, na verdade, a destruição de Manhattan como “inside job” (no mais, o Doutor é agente do governo americano e o ajuda a proteger o país contra os soviéticos), é a parte “racional” revelada. O que é indigno, é aceitar esse estupro, essa traição, como algo normal. Esse o senso de dignidade que nenhum personagem do filme contém. Por isso, nem mesmo o Comediante, personagem trágico e decadente, é capaz de graça, apenas de risadas evasivas.

Bom, aqui chegamos ao ponto final. O que seria “o olhar de Berlim”, codinome inventado para o Doutor Manhattan? Entre o Comics de Zack Snyder e o filme de Alan Moore algumas décadas se passaram. A data de lançamento do filme não deixa de ser um sintoma: logo após a maior crise econômica depois de 1929 e 20 anos exatos da queda do muro de Berlim. Para os ingênuos no sentido do burro ou do sujo, esse fato histórico teve como consequência, para o bem o para o mal, a vitória ocidental sobre a suposta tirania ocidental. Em palavras claras, a vitória da democracia contra os governos opressores. Porém o que marca 1989 não é uma vitória da democracia, mas de uma nova ordem pós-burguesa, pós-proletária, onde passa a comandar o livre-mercado, o mundo das altas finanças, que teria supostamente aniquilado qualquer motivo para a luta de classes. Viveríamos num mundo em paz daí em diante. 1989 é um ato de guerra total, como foi o 11/09 e como foi o assassinato de John Kennedy. Todos se movem mais no plano simbólico do que no que se chama de “factual”. O assassinato de Kennedy despertou uma onda de pessimismo no povo estadunidense. Foi um choque impensável, duro. Não por outro motivo nunca mais os EUA lançaram grandes projetos, grandes ideias de alcance mundial, como foi o Projeto Apolo liderado por Kennedy. Para não se falar na boa tradição do Partido Democrata construída no séc. XX, de Roosevelt e JKF, que simplesmente ruiu. O 11/09 foi outra onda de choque cuja mensagem foi clara: agora devemos unir esforços para nos livrar do mal; mal este sempre entendido de modo abstrato. A utopia do filme, com EUA e URSS juntos contra o holocausto provocado por seres estranhos, meio extraterrestres como Manhattan, mostra simplesmente que ali se trata da união de governos para se criar um governo mundial, único, uma Nova Ordem Mundial, como proclamou Bush pai quando eleito presidente. Essa Nova Ordem Mundial é comemorada, encarada como uma festa, quando se derruba o muro de Berlim (não muito diferente da comemoração francesa da queda da Bastilha, que marcou o fim da Assembleia Constituinte e abriu espaço para o Terror; comemorações cívicas como odes ao macabro, um tema ainda a ser escrito em seus detalhes). Na Alemanha ocorre o que faz instaurar o catecismo de uma ditadura mundial, do livre-mercado e da democracia ao estilo ocidental. Desse instante para os “bombardeios humanitários”, em Kosovo, é um pulo, ou para o “direito de proteger”, de Tony Blair, eufemismo para minar as garantias históricas estabelecidas na Paz de Westfália, e que significa simplesmente “direito de intervir” em Estados nacionais soberanos.

O final do filme Watchmen mostra uma família constituída por um estupro e que acha tudo isso normal. Não se tem a obrigação em mexer em feridas, talvez, já de todo fechadas. O fato é que o estupro a que se alude é que Doutor Manhattan destruiu a própria Manhattan, o coração de Nova Iorque. Dentro de círculos mais esclarecidos, para não se falar dos círculos de “inteligência” (não de intelectuais propriamente, mas geralmente um agregado de forças a que se juntam determinados setores dos serviços de inteligência de diferentes países), essa é uma verdade banal, o 11/09 como um “inside job”. Se Edward Snowden faz Julian Assange parecer um escorpião inofensivo frente as devastadoras verdades que revelou, mostrando mesmo aspectos dos mais valiosos de como opera os círculos de inteligência nos países mais ricos, principalmente depois do Ato Patriota, que foi uma afronta às garantias individuais de cidadãos e países inteiros. O fato de não se aceitar, por dignidade pessoal, uma afronta como essa que levou as guerras atuais no Oriente Médio e que, reconfiguradas depois das primaveras coloridas em inúmeros países, leva o mundo a uma super quente Nova Guerra Fria, é a mensagem do filme, ainda que não atento às consequências – a todas as consequências possíveis – que tal ato interno engendrou. Talvez não se precise chegar à “terceira verdade”, como se diz das revelações de outro agente russo, Dimitri Khalezov – para muito além de Assange ou de Snowden.

Os olhos de Berlim são os olhos da democracia ocidental, pronta a intervir sempre que corra um risco para a manutenção de seu catecismo de uma ditadura universal. Desde a guerra no Iraque e no Afeganistão a Rússia se afastou da parceria que tinha com a OTAN, com os EUA, por causa dos inúmeros excessos, ilegalidades, crimes cometidos. Iniciou-se uma cisão que dificilmente conseguimos, hoje, vislumbrar um fim. Ou se está sob os olhos de Berlim, obedecendo, como que telepaticamente o que seus olhos sem íris, como se fossem olhos oniscientes, ditam, ou se está fora do circuito dos Vigilantes. Daí a impossibilidade do heroísmo no filme: ser Vigilante, na Guerra Fria, era combater na esteira do macartismo e do acirramento das tensões leste-oeste, mesmo com todas as “boas intenções”. Ser Vigilante, hoje, é defender a democracia no estilo ocidental, mesmo com condições econômicas deploráveis em todas as economias banhadas pelo Atlântico e/ou atreladas às economias mais ricas dos países do Atlântico norte. Ser Vigilante é defender o atual neomacartismo, as perseguições judiciárias, as invasões em países soberanos, o financiamento de milícias e até Estados terroristas (ironia das ironias); é desestruturar a economia de um país e promover o genocídio do social. Lava-Jato, a vigilância dos “padrões morais” à moda ocidental, tropa de choque de Curitiba. Não importa quão sátiros possam ser, Comediantes. E os niilistas que por negação o seguem: não querem nada, somente a implosão de todo sistema político, com os mais sonhadores desejando um brutamonte linha dura como presidente, e os mais sensatos um candidato puro sangue do mercado, essa entidade incorruptível. Se há uma lição em Watchmen (Quem seria Watchmen senão Berlim ou Doutor Manhattan?) é que não saída para o desenvolvimento e auto-afirmação dos povos quando se promove qualquer tipo de Liga da Justiça. Fazendo jus ao Comics de Alan Moore, seu filme continua sendo o anti super heróis. Aceitar utopias é como viver um estupro e achar que, por algum motivo superior (lembremos do homem verídico de Nietzsche, o dos “motivos superiores”), tudo pode ser impunemente falseado, como no uso reiterado de narcóticos e entorpecentes dos mais variados. Quanto tempo ainda irá demorar para que se tenha o pé no chão para, com a consciência necessária, sairmos do estado de guerra que vivemos, aqui e no mundo? Como disseram Deleuze e Guattari em seu platô sobre a Nomadologia, a guerra total não precisa ser nuclear. Não é outro o éthos atual, que pode ou não implicar o uso de armas nucleares como linha auxiliar, ou final, da guerra total que vivemos. Do assassinato de Kennedy ao 11/09 e além: toda uma história que ainda precisa ser contada. O filme Watchmen nos dá alguns subsídios para isso.

NOTAS

DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2007.

RUSSELL, Bertrand. The impact of science on society. New York: Simon and Shuster, 1959, p. 102-4 (edição brasileira: O impacto da ciência na sociedade. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979).

 

FILMOGRAFIA

Watchmen. Dirigido por Zack Snyder. Lançamento no Brasil em 6 de março de 2009.

 

ICONOGRAFIA

O Comediante: o sonho americano se tornou realidade.

 

O amor de Manhattan e Batman: indiferente a qualquer catástrofe

 

Espectral II à esquerda Manhattan e Ozymandias a sua direita.

 

Rorschach, o suposto herói pois anti-herói. Um mero niilista.

 

 

Redação

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