O Cemitério de Brasília – Ecoando Umberto

O mais recente romance de Umberto Eco, “O Cemitério de Praga”, tem como personagem central Simonini, um notário que se especializa em falsificar documentos.
O anti-herói da história se torna um mestre na arte da mentira, em inventar histórias, depoimentos e provas que, embasando mirabolantes teorias da conspiração, são usados para alimentar preconceitos e justificar ações políticas e perseguições contra o inimigo da vez.

Por seus méritos como falsificador, Simonini passa a ser contratado por governos, serviços secretos e grupos políticos para se infiltrar em movimentos e forjar denúncias, que possam gerar comoção popular e angariar apoio para a repressão contra minorias.

Outro de seus feitos seria a articulação dos “Protocolos de Sião”: relatos que “comprovariam” a existência de uma conspiração judaica para dominar o mundo e corromper os valores cristãos.
Apesar de sabidamente falsos, os Protocolos de Sião serviram de argumento aos anti-sionistas e à perseguição ao povo judaico durante toda a primeira metade do século XX, culminando na tragédia do holocausto. 

Na criação de Umberto Eco, a principal estratégia de disseminação das teorias de conspiração e mentiras é a utilização da nascente grande mídia impressa.

São os jornais e periódicos engajados na propagação de preconceitos que, mesmo sabendo a origem falsa dos documentos trazidos por sua “fonte”, os publicam e divulgam, transformando-as em “verdades”.

O mais interessante, porém, é que de tudo o que narra Umberto Eco, apenas a personagem de Simonini é fictício, todas as demais “falsidades” são reais: todas as tramas, invenções, calúnias, mentiras, teorias de conspiração, publicações e matérias jornalísticas citadas no livro realmente ocorreram; espalhando preconceitos, fazendo vítimas inocentes e manipulando a opinião pública.

Um dos jornais reproduzidos no livro é o “Le Petit Journal”, diário parisiense publicado entre 1863 e 1944, que se engajou na campanha de difamação de Alfred Dreyfus.

Uma visita ao Museu Kura Hulanda, em Curaçao, dedicado à memória da escravidão negra nas Américas, permite observar exemplar do “Le Petit Journal”: numa sala dedicada à exposição do preconceito racial nas publicações “brancas”, a primeira página do jornal francês exibe  ilustração de um grupo de brancos que tentava pintar um negro de branco.

Simonini (ou seria Eco?) tem uma explicação para porque é tão fácil espalhar preconceitos e teorias de conspiração: depois que o preconceito já está plantado na pessoa, basta dizer o que elas querem ouvir. Mesmo que sejam mentiras óbvias ou a mera repetição de histórias conhecidas, sempre vai ser possível encontrar quem as apóie, pois, no fundo, são a expressão de seu próprio preconceito.

Um século, infelizmente, não é tempo suficiente para melhorar certas práticas e valores. Muitos dos grandes veículos de imprensa, hoje, em nada diferem do antigo Le Petit Journal

Alguns veículos tem transformado o jornalismo de opinião na simples repetição dos preconceitos e opiniões dos donos da mídia. Os dossiês e as provas que fundamentam as matérias, muitas vezes, são apenas resultados de boatos, depoimentos vazios, interpretações preconceituosas ou pura falsidade.

Assim como Simonini inventou uma reunião no Cemitério Judaico em Praga como palco para seus Protocolos de Sião, todo dia a mídia inventa complôs nos gabinetes, restaurantes e esquinas de Brasília.

Se observamos o papel de boa parte de nossa mídia, temos a certeza de que nossos netos, certamente, verão exemplares de alguns periódicos de hoje nas paredes dos museus de amanhã, não como documentos históricos, mas como exemplos do ridículo do preconceito e da manipulação da verdade, a serviço dos piores interesses.


Redação

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