“Praça Onze” X “Ai que saudades da Amélia”, por Laura Macedo

O Concurso para a escolha do Melhor Samba do Carnaval Carioca era um mega acontecimento. No ano de 1942 a disputa foi bastante acirrada, entre os compositores Herivelto Martins/Grande Otelo X Ataulfo Alves/Mário Lago. A primeira dupla, defendendo “Praça Onze” e a segunda dupla defendendo “Ai, que saudades da Amélia”.

Praça Onze / Grande Otelo e Herivelto Martins

A Praça Onze existiu por mais de 150 anos. No início era chamada de Rocio Pequeno, posteriormente, Praça Onze de Junho. Nas primeiras décadas do século XX tornou-se o espaço mais cosmopolita do Rio de Janeiro, sempre frequentada por vários imigrantes estrangeiros e por negros oriundos da Bahia.

Foi o compositor/ator Grande Otelo que teve a ideia de protestar, em ritmo de samba, quanto à extinção da referida Praça. Segundo Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello, Otelo era um excelente ator, mas um letrista fraco. Ao mostrar sua letra aos compositores, Max Bulhões, Wilson Batista e Herivelto Martins, não ocorreu o menor interesse dos mesmos. Mas Otelo teimou até que Herivelto, aproveitando a ideia do samba, refez os versos do amigo.

A primeira concorrente a se apresentar foi “Praça Onze”. Herivelto Martins preparou um mega show mostrando os instrumentos e a função de cada um; na sequencia as passistas, um grupo sensacional de mulatas rebolando. Quando executaram “Praça Onze” a plateia foi ao delírio.

Praça onze” (Herivelto Martins/Grande Otelo) # Castro Barbosa/Trio de Ouro. Disco Columbia (55319-A) / Matriz (488). Gravação (25/11/1941) / Lançamento (janeiro/1942).

 

Mário Lago e Ataulfo Aves

 

Mário Lago, autor da letra de – “Ai que saudades da Amélia” -, conta que “Amélia nasceu de uma brincadeira do irmão de Aracy de Almeida, conhecido como Almeidinha, que sempre que o assunto era mulher, brincava – ‘Qual nada, Amélia é que era mulher de verdade. Lavava, passava, cozinhava’”. Mário sacou logo que o mote daria um samba e pediu ao amigo Ataulfo para musicar.

Ataulfo Alves fez o dever de casa tão bem feito que, de quebra, alterou algumas palavras e aumentou o número de versos. Mário ficou uma fera! Ataulfo batalhou muito pela gravação, mas os cantores procurados para gravar, a exemplo de, Cyro Monteiro, Moreira da Silva, Carlos Galhardo e Orlando Silva, recusaram.

Diante da recusa, o próprio Ataulfo decidiu gravá-la, acompanhado por um improvisado conjunto, denominado “Academia do Samba”, que contava com Jacob do Bandolim, tocando cavaquinho, na introdução. Mais um probleminha: Faltava a assinatura de Mário Lago, autorizando a gravação do samba. Mário exigiu um adiantamento de 500 mil-réis. Outro problema: Emílio Vitale (Gravadora Odeon) concordou com a liberação do dinheiro desde que assumisse o controle total de “Amélia”. Ataulfo nem imaginava que estaria fazendo o pior acordo financeiro de sua carreira de compositor.

 

Ai que saudades da Amélia” (Ataulfo Alves/Mário Lago) # Ataulfo Alves e Sua Academia de Samba. Disco Odeon (12106-A) / Matriz (S- 052484). Gravação (27/11/1941) / Lançamento (janeiro/1942).

 

 

O concurso para a escolha do Melhor Samba do Carnaval Carioca de 1942, realizado no estádio do Fluminense, reunindo uma grandiosa plateia cujo critério, segundo o regulamento, seria por aplausos aos vencedores.

As atuações de Ataulfo Alves junto às rádios e de Mário Lago junto aos craques do time do fluminense, que acabara de lograr o bicampeonato carioca de futebol, foram de fundamental importância para que a composição caísse no gosto popular. Resultado: Segundo os pesquisadores Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello, Mário Lago “subiu ao palco e, num rasgo de eloquência e demagogia, fez um discurso emocionante, proclamando ‘Amélia’ símbolo da mulher brasileira”. Quando Ataulfo e suas Pastoras começaram a cantar o estádio veio abaixo, praticamente reivindicando a vitória dos dois sambas.

Sem a possibilidade de desempatar, o presidente do Fluminense, Marcos Carneiro de Mendonça, autorizou o pagamento em dobro do prêmio de campeão a ‘Ai que saudades da Amélia’ e ‘Praça Onze’, cada uma recebendo como se tivesse ganho sozinho”.

 

Últimos capítulos entre “Ai que saudades da Amélia” X “Praça Onze

Mesmo as duas composições terem sido vencedoras, Herivelto Martins provocou o “rival” Ataulfo compondo “Amélia na Praça Onze”.

Amélia na Praça Onze” (Herivelto Martins/Cícero Nunes) # Dircinha Batista. Disco Victor (34921-B) / Matriz (S-052484). Gravação (27/2/1942) / Lançamento (maio/1942).

Ataulfo Alves não ficou calado e respondeu com “Represália”.

Represália” (Ataulfo Alves) # Ataulfo Alves e Sua Academia de Samba. Disco Odeon (12172-A) / Matriz (6946). Gravação (17/4/1942) / Lançamento (julho/1942).

 

Com mais essas duas composições quem continuou a ganhar foi o público amante da boa Música Popular Brasileira.

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Agradecimentos especiais aos amigos: Luciano Hortencio (confecção do vídeo “Amélia na Praça Onze”) e Samuel Machado Filho (áudios das músicas: “Amélia na Praça Onze” e “Represália”).

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Fontes:

– A Canção no Tempo – 85 Anos de Músicas Brasileiras, Vol 1: 1901-1957 / Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello. – São Paulo: Ed. 34, 1997.

– Ataulfo Alves: vida e obra / Sérgio Cabral. – São Paulo: Lazuli Editora: Campanhia Editora Nacional, 2009.

– Áudios SoludCloud – Laura Macedo.

– Foto montagem: Laura Macedo.

– Rádio Batuta do IMS (Instituto Moreira Salles).

– Revista Carioca – Nº331 / P.49 / 1942.

– Site YouTube – Canais: “Patrick Marchal”, “SenhorDaVoz”, “luciano hortencio”.

– Vídeo “Amélia na Praça Onze”: Luciano Hortencio.

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Laura Macedo

14 Comentários

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    1. Para a querida amiga Odonir!

      “Em 1957, a gravadora RCA Victor lançou no mercado uma espécie de songbook para comemorar os 25 anos de carreira do compositor Herivelto Martins, e para isso chamou para os estúdios o que havia de melhor em seu elenco. E dentre eles, Jacob do Bandolim, que registrou em pout-pourri os sambas-choros “Meu rádio e meu mulato”, lançado originalmente por Carmen Miranda em 1938, e ‘Amélia na Praça Onze’, lançado por Linda Batista em 1942″. (YouTube –  Canal: “moreiranochoro”).

      Beijos.

      [video:https://www.youtube.com/watch?v=ag3oPHLnJH8%5D

  1. E uma salva para as musicas

    Da-lhe Laurinha! Adorei as historias. Mario Lago passou a vida, tendo que se explicar sobre a “Amélia mulher de verdade”. Foi o castigo pelo discurso eloquente sobre os dotes de Amélia!

  2. Ainda bem que o mundo mudou…

    Ainda nao tá bom para as mulheres, mas hoje ninguém diria que Amélia é o retrato da mulher brasileira. Apanharia se dissesse…

    1. Ufa! Ainda bem mesmo

      Querida AnaLu,

      Uma historinha de bastidores: Em 1944, durante a cerimônia de batismo de um sobrinho do Atulfo Alves, seu nome foi mencionado e o padre celebrante foi logo perguntando: “É o da canção popular?”. Confirmado o padre revelou que “um dia antes, ao celebrar um casamento, seu conselho à noiva foi o de seguir o exemplo de perseverança e fidelidade da personagem Amélia do samba”.

      O escritor/jornalista e crítico musical Sérgio Cabral diz que a força é tanta que a palavra “Amélia” foi adotada no dicionário de Aurélio Buarque de Holanda como a única extraída da letra de uma canção popular. Segundo a definição do dicionário, “Amélia” é a “mulher que aceita toda sorte de privações e/ou vexames sem reclamar, por amor a seu homem”.

      Concordo plenamente com você: “Ainda bem que o mundo mudou…”. A conquista das mulheres deve ser permanente e em todos os sentidos.

      Beijos

      1. Só um padre mesmo p/ dar um conselho desses…

        Eu gosto da resposta do Ataulfo, a música é bem legal. Mas nem como força de expressao vale tanto sacrifício…

        Bjs, Laura

         

  3. O Rio de Janeiro lírico da Praça Onze

     

    Laura querida, que belo post Musicas lindas. Esse era um tempo de um outro Rio. Um Rio de Janeiro lírico que não existe mais.

     

    Praça Onze

     

    Herivelton Martins e Grande Otelo

     

    [video:https://youtu.be/Kt2Oe4a4EFg%5D

     

     

     

    Rancho da Praça XI (1965)

     

    Dalva de Oliveira

     

    [video:https://youtu.be/tFNDqYTxeyc%5D

    Linda música gravada por Dalva de Oliveira, em 1965, no disco com o mesmo título, ” Rancho da Praça XI “. Este seria seu último disco antes do acidente, que ela sofrera em 1965.

     

    por Samuel Machado Filho

    Marcha-rancho que apareceu pela primeira vez em 1960, numa comédia musical que marcava o retorno de Aracy Cortes (criadora de “Ai ioiô”) aos palcos. Em 1964, Chico Anysio pôs nova letra e a música serviu de tema para o programa “Praça Onze”, apresentado pelo co-autor João Roberto Kelly na TV Rio. Gravada por Dalva de Oliveira na Odeon em 9/9/1964 (compacto simples 7B-056-A, matriz 16689), a música estourou na folia de 1965, a do “Rio quatrocentão”.

    1. As opiniões de Mário de Andrade

      Querido amigo Gilberto,

      Como sei que você é super fã do Mário de Andrade trago as opiniões dele sobre as duas músicas em questão. Mário de Andrade numa carta de fevereiro de 1942, ao jovem amigo Moacir Werneck, começa elogiando o samba de Ataulfo Alves e Mário lago “Ai que saudades da Amélia”.

      “Gostei, sim, muitíssimo do ‘Amélia’, é das coisas mais carioca que se pode imaginar. Mas o ‘Vão acabar com a Praça Onze’ me estrangula de comoção, palavra. Você já viu coisa mais lancinante? Aquele grito ‘Guardai o vosso pandeiro, guardai!’ é das frases mais musicalmente comoventes, um grito manso, abafado, uma queixa do povo suave, que se deixa dominar fácil, sem muita consciência, mas sofre e se queixa (…).

      A carta continua falando de maneira mais geral do samba, levando Mário a sugerir “um estudo sobre os textos do samba carioca” (…) E conclui o assunto voltando a abordar a música de Ataulfo e Mário Lago. ‘Ora o sujeito estourar naquela bruta saudade da Amélia, só porque está sentindo dificuldade com a nova, você já viu coisa mais humana e misturadamente humana? Tem despeito, tem esperteza, tem desabafo, tristeza, ironia, safadeza de malandro, tem ingenuidade, tem pureza lamacenta: é genial. Acho das manifestações mais complexas que há como psicologia coletiva’”.

      Adorei os vídeos. Grande abraço.

       

  4. Dois polemistas notórios mais

    Dois polemistas notórios mais uma vez se revelam: Herivelto, talentosíssimo, aproveitava todas as oportunidades. Essa da Dircinha Batista, Amélia na Praça Onze, está perfeita! Se brincar, está até melhor do que Praça Onze, em minha opinião. Dalva de Oliveira com certeza passou um sufoco pra responder às ironias de Herivelto! Já o grande Mário Lago não fazia por menos: até o parceiro Ataulfo foi engabelado: perdeu uma fábula (historicamente falando) ao ceder sua obra-prima. Aliás, Mário sempre esteve na ‘sombra’, no encalço de outros mestres, como Noel Rosa: o charme pessoal dele é que se fazia impor ante algumas musas do poeta da Vila, se não estou voando.

    No fim das contas, o duelo mostrado nesse post beleza foi ganho por Amélia, até hoje no topo.

    Vou aproveitar e ouvir mais uma vez Amélia na Praça Onze!

    Beijos. 

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