Que horas ela volta: Com medo de Jéssica, por Léa Maria Aarão Reis

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Sugerido por José Carlos Lima Spin

Por Léa Maria Aarão Reis

Da Carta Maior

O filme de Anna Muylaert mobiliza e provoca furor. Até a semana passada, 250 mil espectadores assistiram a saga da doméstica Val e da sua filha Jéssica.  Oitenta mil deles apenas num fim de semana. Isto faz Que Horas Ela Volta?  aprumar-se para chegar perto da bilheteria dos blockbusters americanos feitos de boçalidade e de músculos. Escolhido para representar o Brasil na competição de Oscar de melhor filme estrangeiro da edição de 2016, sua carreira reafirma o trabalho da cineasta paulista como autora de bons filmes: o premiado Durval Discos, É proibido fumar, Chamada a cobrar e, sobretudo, como corroteirista do excelente O ano em que meus pais saíram de férias, de Cao Hamburguer.

Qual a explicação para o sucesso, para a explosão do filme da Anna – nos festivais estrangeiros e nas principais cidades do país -, além da narrativa relatada com talento, e de contar com a experiente atriz Regina Casé fazendo com brilho e garra a empregada doméstica nordestina que trabalha para a alta classe média paulistana? Uma personagem emblemática, mas tão ‘banal’ e pouco original?

Simples: com habilidade, Anna toca num nervo infeccionado, até então camuflado, da classe média brasileira. Seu filme expõe e escancara a hierarquização feroz das classes no Brasil dentro da intimidade dos grupos familiares. Uma situação inspirada na sua própria experiência, quando, em certa época, ela precisou contratar uma babá para ajudá-la a cuidar dos filhos então pequenos. Sem esse suporte não poderia continuar trabalhando por um bom tempo. Esta é a origem do roteiro que criou.

Da figura da babá, resquício da escravatura, à empregada doméstica modelo nacional, um outro entulho largado no caminho pela escravidão no país, foi um pequeno passo para expandir o argumento. Sem o trabalho das outras milhares  de  Vals existentes neste país, sejam elas babás, diaristas ou moradoras em um quarto infecto, na casa dos patrões, a família burguesa brasileira emperra e não funciona. A dependência dos patrões é absoluta – até para o mínimo gesto de levantar da cadeira e ir à geladeira para se servir de um copo de água. É isto que Anna mostra serenamente, com simplicidade. E a dependência estampada no espelho que é a telona deixa a plateia burguesa nervosa.

Não surpreende que algumas mulheres, nas sessões de cinemas de zonas ditas nobres das grandes cidades, cheguem a se levantar, revoltadas, para ir embora, como já ocorreu, no meio da exibição.

Mas Muylaert vai além e introduz outro elemento definitivamente perturbador na história: a filha Jéssica, que, pequena, foi deixada pela mãe no Nordeste quando Val parte para trabalhar e sobreviver como doméstica em São Paulo. Agora, já mocinha, Jéssica chega para prestar vestibular para a faculdade de Arquitetura (escândalo!) na capital paulista e é hospedada na opulenta casa dos patrões, no quartinho minúsculo e abafado onde vive sua mãe. “Uma casa meio modernista!”, se deslumbra a futura arquiteta quando percorre a mansão. Ao chegar, a menina “subverte todas as regras”, como observa a cineasta.

Acaba instalada no confortável quarto de hóspedes para desespero da patroa, mergulha na piscina na companhia do filho da casa, também ele um vestibulando, e, a transgressão mais grave: come o sorvete da marca fina e cara, mas destinada aos patrões. O sorvete barato é reservado aos empregados.

Camila Márdila, de 26 anos, vinda de Tabatinga, na periferia de Brasília, é a jovem atriz que defende bem o personagem da filha de Val neste que é o seu segundo filme.

Com a a introdução – ou intromissão – no universo burguês, Jéssica desequilibra a ‘harmonia’ da casa, expõe o nervo podre disfarçado e estabelece uma nova equação familiar como ocorre no célebre filme Teorema, de Pier Paolo Pasolini. “Na cabeça dela,” acrescenta Muylaert, “aquelas regras não significam nada. Mas há quem ache Jéssica arrogante e há quem ache maravilhosa. Dependendo do que você acha da Jéssica fica claro em quem você vota.”

Bingo para Muylaert. Jéssica representa o Brasil novo que começou a ser parido há 12 anos por um governo progressista. Jéssica é a mudança, é o país em que porteiro embarca no avião e senta ao lado da madama no aeroporto. E madama agora é obrigada a cumprir a PEC 72 em vias de entrar em vigor na sua integralidade, e pagar direitos trabalhistas às mulheres que nunca mais serão semiescravas.

Jéssica é o Brasil que, obsessivamente, mesmo sem ainda plena consciência do fato, procura dirimir as diferenças de classe para se tornar um lugar mais igualitário, menos injusto e hipócrita. Mais do que raiva, ódio e menosprezo, os que se encontram instalados no topo da pirâmide sentem é medo de Jéssica. Ela é o ‘anjo’ do Teorema, de Pasolini, que vem anunciar os tempos e os arranjos novos. Um alerta para o início do fim da era da submissão.

O recado do Que Horas ela Volta? é singelo e firme apesar do seu final entreaberto: para a frente nada será como antes. Aconteça o que tiver que suceder, convém lembrar-se do clichê que, no caso, aqui cai como uma luva. A pasta de dentes que saiu do tubo nunca mais caberá dentro dele.

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

5 Comentários

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  1. Que temor os “líderes” têm

    Que temor os “líderes” têm dos “liderados”, não? Não é à toa que os “líderes” façam tanta força para manter os grilhões dos “liderados” sempre tão apertados. Por exemplo, elegendo o “Funcionário do Mês”…

  2. “A pasta de dentes que saiu

    “A pasta de dentes que saiu do tubo nunca mais caberá dentro dele.”

    Valeu.Este lembrete deve ser enviado ao Gilmar Mendes. Se bem que, isso não vem ao caso.

     

    Agora vamos ao filme:

    ”Jéssica chega para prestar vestibular para a faculdade de Arquitetura (escândalo!).”  

    A menina Jéssica, ora uma crisálida, poderia com base noutro mito importante, o da reencarnação, ser uma incorporação (psicopraxia), de Pandora a primeira mulher criada por Zeus .

    Conta o poeta grego Hesíodo, numa das diversas versões deste mito, onde indica que Pandora duas vezes o mito de Pandora; na Teogonia não lhe dá nome, mas diz :

    Dela vem a raça das mulheres e do gênero feminino:

    dela vem a corrida mortal das mulheres

    que trazem problemas aos homens mortais entre os quais vivem,

    nunca companheiras na pobreza odiosa, mas apenas na riqueza.

     

      De qualquer sorte, fiquei curioso, e vou assistir esse , ao que parece, interessante filme.

    Orlando

  3. Como vivo no meio da tal “classe média tradicional” paulistana

    que ainda tem empregada, as vezes “morando no emprego”, e votam com entusiasmo (e como!) no tal Aécio Neves, eu falo para eles que a tal Jéssica é na verdade uma terrorista cubana (ou da Coreia do Norte eu mudo meu relato em função do publico e de quanto eu bebi) que entrou no pais pelo Nordeste usando o disfarce do “Mais médicos”, e que está iniciando a implantação do regime comunista.

    Como todos são leitores do Estado de SP, todos parecem acreditar.

  4. Alegoria divertida

    O filme causa celeuma porque foi elaborado para representar uma alegoria que está muito em voga nos dias atuais: supostamente o PT promoveu uma revolução nas hierarquias sociais brasileiras equivalente à libertação dos escravos no século 19. Tudo isso teria acontecido só de 12 anos para cá. O emprego doméstico é uma alegoria da escravidão, e o PT, então, libertou as domésticas.

    Que os empregos domésticos estão diminuindo no Brasil, isso é fenômeno já amplamente constatado e vem desde bem antes dos últimos 12 anos. Entretanto, é um fenômeno puramente econômico, e não político ou cultural. A disponibilidade de empregados domésticos está relacionado ao estado do mercado de trabalho, e não a leis, hábitos ou atitudes da classe média. Isso não tem a ver com nosso passado escravocrata, a não ser como alegoria, e as alegorias, como se sabe, existem nas imagens, e não na realidade palpável. Quem pesquisar, verá que todos os países cujo estado do mercado de trabalho é semelhante ao nosso possuem uma grande reserva de empregados domésticos, independente de terem ou não um passado escravocrata significativo. Aí se incluem muitos de nossos vizinhos sobretudo da América Andina, onde a escravidão foi extinta bem antes do que no Brasil, e no entanto, ali empregados domésticos são tão comuns quanto o são aqui. Já nos EUA, apesar de seu notório passado escravocrata, empregados domésticos são raros.

    O declínio do emprego doméstico depende da abertura de outras vagas mais atraentes no mercado de trabalho, e a abertura dessa vagas depende do crescimento da economia, e não de fatores políticos ou culturais. Esse processo acelerou-se nos primeiros anos do governo petista porque houve crescimento econômico sustentado. Desacelerou-se nos últimos anos porque o crescimento econômico cessou, e não porque tenha havido uma reação das classes conservadoras. Mesmo porque é prefeitamente possível a classe média brasileira viver sem empregadas domésticas, como o fazem as classes médias dos países ricos.

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