Sérgio Augusto: endireitar a cultura, no bom sentido

Sugerido por P Pereira

Do Estadão

Endireitar, no bom sentido

SÉRGIO AUGUSTO – O Estado de S.Paulo

A cultura brasileira ia muito bem em todos os setores e com pelo menos um fenômeno internacional em seu crédito, a bossa nova, quando os militares usurparam o poder. Com apenas nove dias de mando, baixaram seu primeiro ato institucional e invadiram o câmpus da modelar Universidade de Brasília. Estava iniciada a guerra santa contra a inteligência nacional, que pelo gosto do comandante da invasão, coronel Darcy Lázaro, teria durado três décadas. “Se essa história de cultura vai-nos atrapalhar a endireitar o Brasil, vamos acabar com a cultura pelos próximos 30 anos”, ameaçou o truculento invasor.

Passados 30 anos, a cultura brasileira permanecia viva e o coronel, historicamente morto. Àquela altura, quem fazia história era outro Darcy-o antropólogo Darcy Ribeiro, reitor da UnB enxotado pelo xará fardado em abril de 1964. Mas o coronel não foi totalmente esquecido. Se não ganhou uma estátua equestre, ao menos batizaram com seu nome um estande de tiro, no Distrito Federal. Sic transit gloria mundi.

Não foi por falta de empenho que os templários do obscurantismo verde-oliva perderam sua cruzada. Enquanto a UnB era invadida, tocaram fogo no prédio da União Nacional dos Estudantes, depredaram o Instituto de Estudos Brasileiros, ambos no Rio, e criminalizaram o ativismo do Centro Popular de Cultura (Rio e São Paulo) e do Movimento de Cultura Popular (Recife), dois antros de perigosos comunistas, na avaliação do novo regime. Em seguida vieram os expurgos e demissões em massa em colégios e universidades, os inquéritos humilhantes e sem fundamento jurídico, as ameaças, prisões e tortura de intelectuais, jornalistas e artistas; livros foram apreendidos e destruídos, jornais, filmes, peças, músicas e exposições censurados e proibidos.

Horrorizado, o mais respeitado intelectual católico da época, Alceu Amoroso Lima, desabafou: “Até hoje nunca tive medo do comunismo no Brasil. Agora começo a ter”.

Quando beleguins do Dops recolheram numa livraria do Rio vários exemplares do romance O Vermelho e o Negro, de Stendhal, por suspeitá-lo “subversivo”, o humorista Sérgio Porto, vulgo Stanislaw Ponte Preta, não se conteve: “A revolução está descambando para o perigoso terreno da galhofa”. E deu por inaugurado o Febeapá, o festival de besteiras que começava a assolar o País. E continuaria assolando até depois da morte do humorista, quatro anos mais tarde. De enfarte, esclareça-se.

Ainda havia margem para críticas e gozações aos generais nos primórdios do regime militar. Mas nem por isso a revista de humor Pif-Paf, criada por Millôr Fernandes em 1964, conseguiu suportar as pressões da censura – no oitavo número, bateu mesa. Pif-Paf seria o embrião do semanário O Pasquim (lançado com o AI-5 já em vigor) e Sérgio Porto, seu patrono. Apesar de ameaçado de todas as formas pelo governo e até por atentados à bomba pelas forças de direita, O Pasquim logrou blefar a censura e sobreviver à ditadura. Já uma publicação séria, como a Revista Civilização Brasileira, aguerrida trincheira da intelectualidade liberal e de esquerda, viu-se obrigada a capitular após duas dezenas de edições.

Uma cultura de resistência, manifesta nas imagens ásperas de dois filmes de 1964, Vidas Secas (de Nelson Pereira dos Santos) e Deus e o Diabo na Terra do Sol (de Glauber Rocha), e no show Opinião, espetáculo musicado de contestação criado no ano seguinte por Oduvaldo Viana Filho, Armando Costa, Paulo Pontes e Augusto Boal para o Teatro de Arena do Rio, com Nara Leão (substituída por Maria Bethânia), Zé Keti e João do Vale, indicou um novo rumo para o cinema, a música popular brasileira, o teatro e as artes plásticas. De parâmetros renovados pela pop art e outras vertentes da arte conceitual, a geração de Hélio Oiticica, Rubens Gerchman, Carlos Vergara e Cildo Meireles elaborou estratégias simbólicas e metafóricas para burlar o cerco à liberdade de expressão, aproximar-se de formas criativas mais populares, criticar o mercantilismo e desviar sua mirada para os horizontes do social, do político e do econômico.

A cultura mais viva, portanto, continuou à esquerda do regime, buscando manter-se à margem do sistema vigente de produção e consumo. Glauber Rocha, o Hélio Oiticica do Cinema Novo, fechou com a Estética da Fome, renegando o padrão narrativo das cinematografias hegemônicas. Oiticica, o Glauber das artes plásticas, optou por uma “nova objetividade”, descentralizando a experiência estética das galerias e dos museus. Nem todos, mesmo à esquerda, apreciaram de estalo a exuberância alegórica de Terra em Transe (1967), por exemplo. José Celso Martinez Corrêa apreciou e, juntando a fome com a vontade de comer antropofagicamente, montou, na mesma clave, O Rei da Vela, de Oswald de Andrade. A música de Caetano Veloso e Gilberto Gil e a pança de Chacrinha completaram o sarapatel tropicalista.

A geleia geral do tropicalismo foi a mais jubilosa contribuição que oferecemos à reviravolta cultural de 1968. Para tudo se acabar na diáspora provocada pelo AI-5. Bem que Millôr profetizara: “Ainda vamos sentir saudades do governo Castelo Branco”. Quando abrimos os olhos, Caetano, Gil, Chico Buarque, Glauber, Ferreira Gullar e outros já haviam partido, como o irmão do Henfil, num rabo de foguete.

Quem ficou ou seguiu a receita que Brecht ensinara aos intelectuais alemães, antes de Hitler assumir o poder (“Num tempo em que você não pode dizer o que quer, continue trabalhando, faça o possível para que, no dia em que haja condições reais de você dizer o que quer, saiba fazê-lo melhor”) ou conformou-se com contribuir involuntariamente para o “vazio cultural” que por um tempo desertificou nosso panorama intelectual e artístico.

No início dos anos 1970, antes de também partir para a Europa e dar prestígio internacional a sua Estética do Oprimido, Boal arriscou um palpite: o melhor do teatro brasileiro estaria confinado nas gavetas da censura. Mas quando as gavetas afinal foram abertas, a única obra fora de série que dela saiu foi Rasga Coração, de Oduvaldo Viana Filho.

No vácuo deixado pelo Grupo Oficina, quem mais viço deu à arte cênica foi Antunes Filho, com uma memorável encenação de Macunaíma, de Mário de Andrade, não por acaso a base de outro ponto luminoso nas trevas pós-64, o homônimo filme de Joaquim Pedro de Andrade. Além de nos salvar do marasmo criativo, a antropofagia e o tropicalismo, elas sim, ajudaram a endireitar, no bom sentido, a cultura brasileira.

 

Redação

7 Comentários

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  1. O golpe deixou um legado

    que precisa ser melhor avaliado pelos estudiosos da cultura que foi o incentivo à um empobrecimento deliberado das expressoes culturais,  impedindo o acesso à segmentos mais provocativos e contestadores e estimulando a alienaçao. Assim,saem de cena os tropicalistas e o samba de protesto e abre-se as portas para produtos culturais inocuos e de baixa qualidade, feitos com objetivos de massificaçao, caracterizando processos criativos industriais. Com isto, tivemos a ascensao dos programas popularescos tipicos da epoca, com grande espaço para a musica dita cafona ou brega,  os programas de auditorio passaram a dominar as tvs e o teatro de vanguarda ficou relegado às sombras. E associado a isto, tivemos a demoliçao do projeto educacional idealizado por pensadores como Anisio Texeira e Paulo Freire, cuja visao do assunto era oposta à dos golpistas, diretamente influenciados pelos americanos.  Pode-se dizer que o legado dos militares culminou no breganejo, no pagode baiano tipo psirico, no axé e até no funk carioca, alem dos inefaveis programas de auditorios e reality shows.   Temos muito que “agradecer” por isto, né?

  2. estamos morrendo!
    Tudo muito bom, lutamos envelhecidos por 3 decadas intenitando manter, viver.caminhar com nossa cultura e ganhamos?
    Naoooo!
    Empatamos ou empacamos?
    Este vazio torto deixado como cicatrizar nossa vida, nossa cultura sem uma sequencia natural, avancado formando, moldelador preparando os seguintes, os novos, os jovens .
    Nunca mais poderemos ajustar, so o tempo e novamente outras geracoes dará
    Este meninos deste tempo abracarao com ideias e pensadores sem serem frutos e flores de dictaduras, falta de liberdades, velhos pensadores, viviendo seus momentos.
    Passando para quem?
    Exite um vazio nao de 30 anos e se posso dizer Serao 300 anos

  3. E viva a contracultura.A

    E viva a contracultura.

    A resistência ao golpe que gerou resultados práticos através das suas propostas de mudancas de comportamento.

    São movimentos que propõem uma nova postura moral e estética contra o pensamento de determinada época.

    Nos tempos atuais, com a indústria da mídia e a sociedade de consumo do que é da moda, se matou a importância de movimentos de resistência, e inovação.

    Nos tempos da ditadura, e a importância do que propôs Hélio Oiticica, Luiz Carlos Maciel, e outros, suge o Tropicalismo.

    Tem origem nos baianos Caetano Veloso e Gilberto Gil com as músicas Alegria, Alegria e Domingo no Parque, no Festival de MPB da TV Record em 1967. Acompanhadas por guitarras elétricas (uma novidade), as canções causam polêmica em uma classe média universitária nacionalista, contrária às influências estrangeiras nas artes brasileiras. O disco Tropicália ou Panis et Circensis (1968), manifesto do movimento, vai da estética brega do tango-dramalhão Coração Materno.

    Além da música (cujos maiores representantes foram Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Torquato Neto, Os Mutantes, Tom Zé), manifesta – se nas artes plásticas (destaque para a figura de Hélio Oiticica), no cinema (o movimento sofreu influências e influenciou o “Cinema Novo” de Glauber Rocha), no pensamento de Luiz Carlos Maciel e no teatro (sobretudo nas peças anárquicas de José Celso Martinez).

    Os Tropicalistas criticam os valores estabelecidos através do jeito de se vestirem, pela incorporação de elementos estrangeiros e de elementos da cultura de raiz das diversas regiões do Brasil, misturando manifestações tradicionais brasileiras com inovações estéticas radicais. Critica também à esquerda intelectualizada, a não-aceitação de qualquer forma de censura, a sedução dos meios de comunicação de massa, o retrato da realidade urbana e industrial, a exploração do ser humano, tudo isso, todos esses elementos montado com uma colagem de fragmentos do dia-a-dia, eram, de fato, os princípios norteadores da arte tropicalista.

    O Tropicalismo era visto por seus adversários como um movimento vago e sem comprometimento político, comum à época em que diversos artistas lançaram canções abertamente críticas à ditadura. De fato, os artistas tropicalistas fazem questão de ressaltar que não estavam interessados em promover através de suas músicas referências temáticas tradicionais à problemática político-ideológica, como feito até então pela canção de protesto: acreditavam que a experiência estética vale por si mesma e ela própria já é um instrumento social revolucionário. A esquerda tradicional considerava os tropicalistas reacionários, pela incorporação de elementos estrangeiros nas suas criações.

    Mas, Caetano faz a critica, como na letra de “É Proibido Proibir”, onde questiona:

    ·         as restrições sexuais da família (“a mãe da virgem diz que não”);

    ·         a manipulação das consciências pelo capitalismo de consumo (“e o anúncio da televisão”),

    ·         a liberdade artística  (“e o maestro ergueu o dedo”);

    ·         ao policiamento da classe dominante (“e além da porta há o porteiro”);

    ·         e ele conclui: (“e eu digo não / e eu digo não ao não / e eu digo é proibido proibir”);

    ·         e depois ele provoca: (“me dê um beijo meu amor”);

    ·         convoca uma reação ao sistema quando evoca às manifestações estudantis na França (“eles estão nos esperando / os automóveis ardem em chamas”) e;

    ·         propõe uma reformulação radical  de todos os valores estabelecidos (“derrubar as prateleiras / as estantes / as estatuas / as vidraças / loucas / livros”);

    ·         nega a cultura burguesa (“derrubar…livros sim!”).

    E isso com o inovador arranjo do maestro Rogério Duprat que mesclava vários elementos e o acompanhamento livre, alegre, solto e debochado de “Os Mutantes”.

    http://assisprocura.blogspot.com.br/2011/04/tropicalismo_264.html

    1. Prezado Assis:
      Permita-me,

      Prezado Assis:

      Permita-me, com todo o respeito, contesta-lo.

      1.” De fato, os artistas tropicalistas fazem questão de ressaltar que não estavam interessados em promover através de suas músicas referências temáticas tradicionais à problemática político-ideológica, como feito até então pela canção de protesto: acreditavam que a experiência estética vale por si mesma e ela própria já é um instrumento social revolucionário. A esquerda tradicional considerava os tropicalistas reacionários, pela incorporação de elementos estrangeiros nas suas criações”.

      Falar é um dos atos mais cômodos para se praticar.

      Mais difícil é ser.

      A “experiencia estética” do tal “tropicalismo” era um milhão de vezes menos “social revolucionaria” que a  musica existente antes daquele movimento.

      João Gilberto, Tom, Baden e outros viraram todos os valores estéticos dominantes de cabeça para baixo e deram importância a uma cultura que nascia das nossas raízes.

      “Domingo no Parque”, citada, era uma melodia sem nada de “revolucionário” esteticamente.

      Alias, ao contrario, jamais poderia ser comparada, por exemplo, aos sambas afros de Baden Powel.

      “Alegria, alegria” e outras coisas no gênero eram uma versão tupiniquim da musica pop, em moda no mundo capitalista dominante.

       

      2. “Os Tropicalistas criticam os valores estabelecidos através do jeito de se vestirem”

      Uma das praticas dos movimentos culturais reacionários é colorir a embalagem, para empobrecer o conteúdo.

      Além disso as roupas que usavam repetiam a mesma estética do que era vendido nas grandes lojas de moda de Paris ou NY.

      Era a moda pop, inspirada nos hippies.

      Nada de contestador nisso.

       

      3.”São movimentos que propõem uma nova postura moral e estética contra o pensamento de determinada época”

      Muitos dos “movimentos” que surgiram depois do golpe, realmente, propunham uma “nova postura contra o pensamento da época”.

      Acontece que, sob um olhar mais critico, exatamente para, ao contrario, impedir os avanços alcançados no mundo cultural antes de 64.

      O Brasil, caro Assis, esta urgentemente precisando desta discussão, para colocar certos pontos nos is.

      Debatemos neste blog e em outros espaços o movimento que houve nos meios de comunicação para entrega-los a “jornalistas” confiáveis a direita.

      Ao mesmo tempo, pouco observamos que, algumas vezes,  movimentos artísticos disfarçados como contestadores, poderiam ser, justamente, uma interferência dos reacionários num universo ate então direcionado por ideias mais avançadas.

      As vezes penso que as pessoas tem dificuldade de aceitar que foram enganadas.

      Mesmo depois daquilo que Caetano Veloso, o guru principal, diz, escreve e assina continuamos achando a Tropicália um movimento politicamente revolucionário.

      1. Começo falando da

        Começo falando da contracultura como movimentos de reformas da sociedade.

        Esse é meu ode.

        Neste mesmo período de 50/60 esses movimentos de contracultura se alastraram no mundo.

        As artes foram os seus fomentadores desde os Beatniks

        A partir disso o mundo teve um grande avanço na democracia, ou não?

         

        1. “A partir disso o mundo teve

          “A partir disso o mundo teve um grande avanço na democracia, ou não?”

           

          Caro Assis, a partir disso o mundo foi muitas vezes para a frente e outras para atras.

          O que aconteceu nos meios de comunicação ocorreu tambem na cultura.

          A direita avançou e dominou essas atividades.

          Percebemos mais facilmente que o jornalismo ficou nas mãos dos reacionarios e menos que esse mesmo processo tambem ocorreu nas artes.

          Nem mesmo depois das manifestações politicas de Caetano, Lobão, roqueiros dos 80, atores, pintores declaradamente reacionarios.

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