Sobre a vida e obra de Alfred Russel Wallace, por Felipe A. P. L. Costa

As viagens e o trabalho de campo deram a Wallace uma detalhada visão a respeito de biogeografia – disciplina que lida com a distribuição geográfica das espécies.

Sobre a vida e obra de Alfred Russel Wallace

Por Felipe A. P. L. Costa

Filho de Thomas Vere Wallace (1771-1843) e Mary Ann Greenell (1788-1868) – ele um advogado, mas que viveu das terras que herdou (até perdê-las), ela uma dona de casa –, Alfred Russel Wallace nasceu em Llanbadoc, vilarejo próximo à cidade de Usk, no sudeste do atual País de Gales, em 8/1/1823 [1].

Foi o penúltimo de nove irmãos (em itálico, os seis que atingiram a idade adulta): Elizabeth Martha (1808-1808), William (1809-1845), Elizabeth (1810-1832), Frances (1812-1893), Mary Anne (1814-1822), Emma (1816-1822), John (1818-1895), ARW e Herbert Edward (1829-1851).

Até os cinco anos de idade, morou em Kensington Cottage (atual Kensington House), a casa onde nasceu, situada às margens do rio Usk e em cujos arredores teve os primeiros contatos com o mundo natural. Em 1828, a família foi para Hertford, terra natal da mãe, ao norte de Londres, onde ele começou a ter uma educação formal.

Em 1835, a situação financeira da família sofreu um baque e, no início de 1837, ele teve de abandonar a escola, indo morar com seu irmão John, que já trabalhava como carpinteiro, em Londres. Em meados de 1837, foi trabalhar com o irmão mais velho, William, no condado de Bedfordshire, em um negócio envolvendo agrimensura. Em 1841, ele e o irmão foram para Neath, no País de Gales. Em razão do trabalho, cresceu o seu interesse por história natural, sobretudo botânica – queria identificar as plantas que via no campo. Passou a comprar livros de botânica e a colecionar espécimes. Dois anos depois, no entanto, os dois irmãos tiveram de se separar, pois os negócios não iam bem.

Em 1844, após algum tempo desempregado, Wallace foi aceito para o cargo de professor em uma escola para crianças (Collegiate School), em Leicester, cidade de médio porte localizada a poucos quilômetros a nordeste de Londres. Foi lá que ele conheceu e se tornou amigo de Henry Walter Bates (1825-1892) [2].

Em 1845, após a morte repentina de William, Wallace retornou a Neath, e lá reassumiu as atividades como agrimensor. No mesmo ano, leu Vestígios da história natural da criação, cujos argumentos transformistas o impressionariam bastante. Ele e Bates mantiveram contato e, a certa altura, começaram a arquitetar uma viagem conjunta a algum lugar “remoto e inexplorado”. Tendo como inspiração A voyage up the river Amazon (J Murray, 1847), do naturalista estadunidense William Henry Edwards (1822-1902), os dois escolheram como destino a cidade de Belém (Pará, na época).

Em 26/4/1848, após alguns meses de preparação, os dois jovens naturalistas – Wallace e Bates estavam então com 25 e 23 anos, respectivamente – finalmente embarcaram. A viagem da Inglaterra (Liverpool) ao Brasil (Belém) durou um mês. Eles se estabeleceram nas proximidades de Belém [3].

Costumavam viajar juntos. A partir de junho de 1849, no entanto, aparentemente após uma desavença, passaram a viajar separados. Wallace permaneceria na Amazônia até julho de 1852; Bates ficaria mais sete anos, indo embora (adoentado) em 1859.

Resgate em alto-mar

O regresso de Wallace à Inglaterra quase se converteu em tragédia. Em 12/7/1852, ele embarcou no Helen, um brigue de 235 toneladas, com destino a Londres.

A embarcação saiu de Belém transportando “cerca de 120 toneladas de borracha e diversas de cacau, colorau, piaçaba e óleo de copaíba” (Wallace 1979, p. 240) [4]. As primeiras três semanas transcorreram bem, sem incidentes. Na manhã de 6 de agosto, porém, o brique pegou fogo e, em questão de horas, o incêndio se alastrou. A carga principal foi destruída, incluindo o óleo de copaíba, que serviu de combustível para alimentar as chamas. Wallace perdeu praticamente toda a bagagem que levava (coleções, manuscritos etc.).

Segundo Wallace (1979, p. 240-5), o incêndio começou quando o Helen estava próximo às coordenadas 30° N e 52° W, a pouco mais de 1.100 km de distância das Bermudas, a massa de terra firme conhecida mais próxima. Utilizando os botes salva-vidas, a tripulação e os passageiros conseguiram se salvar; por fim, na tarde do dia 15, todos eles foram resgatados pelo Jordeson, brigue que havia saído de Cuba com destino a Londres. O resgate ocorreu próximo a 32° N e 60° W, a uns 300 km das Bermudas, justamente para onde os náufragos rumavam.

A viagem teve alguns percalços – além do aumento inesperado no número de passageiros, condições meteorológicas adversas prolongaram a viagem bem além do previsto. Mas o Jordeson chegou ao seu destino: em 1º de outubro, a embarcação atracou em Deal, cidade portuária a sudeste de Londres, e Wallace pôde novamente colocar os pés em terra firme.

Wallace se converteu em um coletor profissional e colecionar espécimes (insetos, aves, mamíferos etc.) passou a ser o seu ganha-pão. Entre 1854 e 1862, esteve no sudeste asiático – Malásia Peninsular, Singapura, Sumatra, Java, Bornéu, Timor, Celebes, Molucas; além da Nova Guiné e diversas ilhas menores, já na região australiana. Diferentemente do que se passou em sua viagem ao Brasil, não houve incidentes dessa vez, tendo ele enviado à Inglaterra uma expressiva coleção de história natural [5].

As viagens e o trabalho de campo deram a Wallace uma detalhada visão a respeito de biogeografia – disciplina que lida com a distribuição geográfica das espécies. Passou a escrever sobre o assunto. Organizou e apresentou suas ideias em três livros originais (em português): O arquipélago malaio: A terra do orangotango e da ave-do-paraíso (Harper, 1869); A distribuição geográfica dos animais, em dois volumes (Harper, 1876); e Vida insular: Ou, O fenômeno e as causas das faunas e floras insulares (Macmillan, 1880).

Coda

Darwin e Wallace viviam realidades socioeconômicas distintas. Aquele jamais teve de enfrentar qualquer tipo de dificuldade financeira, enquanto este sempre viveu com um orçamento apertado, situação que só seria remediada quando ele já contava com quase 60 anos.

Em 1881, graças ao empenho pessoal de Darwin, Wallace passou a receber uma pensão anual do governo britânico no valor de 200 libras. Era uma ajuda fabulosa, mas que não chegava nem perto do saldo anual que Darwin tinha com os seus investimentos – algo em torno de oito mil libras.

Uma coisa que eles tinham em comum era a veia literária.

Os dois publicaram dezenas de obras, entre livros, notas e artigos. Aliás, foi justamente um livro de Wallace – Darwinismo, publicado em 1889 – que ajudou a selar o vínculo que já naquela época se passou a fazer entre o nome do seu então falecido colega (e não o seu) e a teoria científica que ambos haviam criado [6].

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Notas

[*] Artigo extraído e adaptado do livro O que é darwinismo (2019), assim como 15 artigos anteriores – ver aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui. (A versão impressa contém referências bibliográficas.) Para detalhes e informações adicionais sobre o livro, inclusive sobre o modo de aquisição por via postal, faça contato com o autor pelo endereço [email protected]. Para conhecer outros artigos e livros, ver aqui.

[1] O biógrafo e estudioso inglês Charles H. Smith trata ARW como “um inglês nascido no País de Gales”.

[2] Sobre a vida e obra de HWB, ver Costa, FAPL. 2017. O evolucionista voador & outros inventores da biologia moderna. Viçosa, Edição do autor.

[3] O real objetivo da viagem é ainda hoje motivo de pesquisa e discussão. Quando Wallace e Bates chegaram ao país, a Amazônia brasileira correspondia a uma unidade política, a província do Grão-Pará. (A província do Amazonas foi criada em 1850.) Em 1849, Herbert Edward, irmão caçula de ARW, veio ao Brasil, acompanhando o naturalista Richard Spruce (1817-1893). Vítima de febre amarela, Herbert faleceu em Belém, em 1851.

[4] Wallace. AR. 1979 [1889]. Viagens pelos rios Amazonas e Negro, 2ª ed. BH, Itatiaia & Edusp.

[5] Em 1866, Wallace casou com Annie Mitten (1846-1914). O casal teve três filhos, Herbert Spencer (1867-1874), Violet Isabel (1869-1945) e William Greenell (1871-1951). Moraram em mais de uma dezena de endereços, tanto em Londres como em outras cidades, nos condados de Essex, Surrey e Dorset. ARW faleceu em Dorset, para onde o casal havia se mudado em 1889 – primeiro para Parkstone (1889-1902), depois para Broadstone (1902-1913). Na ocasião, eles moravam em uma casa que havia sido idealizada e construída pelo próprio naturalista.

[6] Edição em português (tradução bem problemática, carente de revisão): Darwinismo (Edusp, 2012). O nome de Wallace como coautor da teoria evolutiva costuma ser deixado de lado ou esquecido. Nas palavras de Hardin (1969 [1959]. A natureza e o destino do homem. Nacional, p. 41-2; grafia original):

Finalmente, o lugar de Wallace na galeria da fama, sem dúvida alguma, foi influenciado pela sua conduta de 1858. Publicou um grande número de boas obras de história natural e interessantes livros de viagens; mas, em compensação, vez por outra, defendia ardorosamente a socialização da terra, o espiritualismo e atacava violentamente a vacinação. O sucesso de um homem não se deve tanto à soma das pessoas que estão a seu favor, senão pela diferença deixada após subtrair todos aquêles que êle afrontou de uma forma ou outra. Subtraindo os nobres que antipatizavam com o socialismo de Wallace, os cientistas que zombavam do espiritualismo, os médicos que defendiam a vacinação e os religiosos conservadores chocados pela evolução – veremos que poucos restam para elogiar Wallace. Não é de se admirar que quase nos esquecemos de sua parte na tarefa.

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Redação

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