Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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Tudo está à venda no filme “Huckabees – A Vida é uma Comédia”

Quando lançado foi desprezado como uma enorme baboseira pretensiosa e cheia de diálogos sem sentido. Doze anos depois, “Huckabees – A Vida é uma Comédia” (2004) ganha sentido e atualidade e vale à pena ser revisto. Além de mostrar como é possível aliar entretenimento com uma séria discussão filosófica, o filme faz uma surreal metáfora da vida como uma grande loja de departamento onde tudo está à venda – da doença até o suposto remédio que iria nos curar com a paz de espírito. Como a esquizofrênica imagem da rede de lojas Huckabees (vende ao mesmo tempo consumismo e mensagens ecologicamente responsáveis) contamina a vida dos protagonistas que buscam soluções possíveis: ou a melancolia e pessimismo ou a fé nas imagens de sucesso. Mas outros vendedores aparecerão para lhes oferecer conforto no mercado filosófico: aristotélicos, sofistas e céticos.

Historicamente as relações sociais sob o capitalismo sempre foram marcadas pela exploração e violência: da exploração de crianças na indústria têxtil na Revolução Industrial inglesa até a atual exploração infantil em países asiáticos na fabricação de produtos de marca como Nike, passando pelas denúncias de que a rede Walmart obriga funcionários a usarem fraldas descartáveis para não abandonarem posições para ir ao banheiro.

Até o início do século passado isso sempre foi explícito, com a ajuda da violência policial a cada greve operária. Mas tudo mudou desde que o sobrinho de Freud, Edward Bernays, inventou as Relações Públicas e as primeiras técnicas de engenharia de opinião pública. E também quando as fábricas tornaram-se gigantescas corporações anônimas onde a figura do burguês desumano deu lugar aos acionistas sem rostos. Desde então, as corporações procuram criar a imagem de socialmente responsáveis e ecologicamente corretas por meio das técnicas mercadológicas.

Isso fez a sociedade como um todo ingressar numa espécie de cultura esquizofrênica: o capital explora mas ao mesmo tempo promove o marketing da responsabilidade social e ambiental; enquanto a publicidade e propaganda produz imagens de felicidade e sucesso, convivemos com fracasso e frustração; enquanto a mídia promove imagens dos vitoriosos e bem sucedidos, introjetamos a culpa pelas nossas derrotas.

Esse abismo entre aparência e essência, imagem e realidade talvez seja o motivo de muitos dos nossos dramas existenciais. Esse é o tema de Huckabees – A Vida é uma Comédia (2004), um filme sobre a impessoalidade do mundo corporativo onde a imagem positiva das relações públicas substitui a realidade, restando para as pessoas duas saídas: o pessimismo e a melancolia ou acreditar nas imagens de sucesso.

O filme consegue combinar uma comédia non sense e surreal com séria questão filosófica: qual o sentido da nossa existência numa sociedade manipuladora e que procura preencher as falhas com as aparências?

O Filme

Huckabees é um filme caótico, cheio de desafios e enigmas. A certa altura o excesso de linhas de diálogos curtos e minimalistas torna-se até maçante. Mas vale a pena acompanhar as desventuras de Albert (Jason Schwartzman), um ativista ambiental desiludido que trabalha rede de lojas de departamentos chamada Huckabees, “a loja que vende de tudo”.

Albert está atormentado por uma coincidência surreal: encontrou um rapaz africano em uma loja em uma sessão de autógrafos, para depois reconhece-lo como o porteiro do prédio onde mora. Além de quase atropelá-lo no estacionamento de uma das filiais da Huckabees. É dessa coincidência que inicia a discussão existencialista que será o plot principal do filme: a vida é composta apenas por eventos aleatórios? Ou coincidências como essas podem revelar algum propósito para a existência?

Angustiado, Albert contrata um casal de “detetives existenciais”, Bernard (Dustin Hoffman) e Vivian (Lily Tomlin), um serviço especializado em descobrir o sentido da vida de cada cliente – vem imediatamente à mente a lembrança da Lacuna Inc. do filme Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças, especializada em deletar do cérebro as memórias de frustrações amorosas com seus métodos tão malucos como os da dupla de detetives – sobre o filme clique aqui.

A ironia é explícita: assim como na rede Huckabees, tudo está à venda, inclusive a busca do sentido da vida. 

Albert é um ativista que luta para defender uma rocha da especulação urbana – um pedaço de pedra que foi a única coisa que sobrou de um pântano destruído pela construção de mais uma loja da rede Huckabees. Através da sua garota-propaganda Dawn Campbell (Naomi Watts), a rede tenta passar a imagem de ecologicamente responsável para a opinião pública, em contradição flagrante com a imagem materialista e consumista que a modelo inspira.

Para piorar, Albert também é atormentado pela sua espécie de duplo: Brad Stand (Jude Law), bonito, bem sucedido na empresa, articulado, rico e namorado da garota-propaganda da Huckabees. Ele é tudo que Albert gostaria de ser, também possuidor das mesmas assombrações existenciais de Albert, mas que as esconde no consumismo e na vida superficial.

Pessimismo gnóstico?

Os detetives existenciais assumem Albert e Brad como seus clientes, aplicando seus métodos de pesquisa etnográfica – munidos de blocos de anotações, gravadores e câmeras observam a vida cotidiana de cada um, procurando atos falhos, frases ou qualquer coisa que sirva de mote para a descoberta do sentido da vida pessoal.

Mas esses detetives são assombrados pela sua rival: Caterine (Isabelle Huppert), outra detetive existencial, ex-cliente, que agora busca um método radicalmente alternativo para competir com o casal Bernard e Vivian – enquanto esses têm uma visão mais otimista e holística da existência (o ser humano seria parte de um universo harmônico), Caterine é cética e pessimista por acreditar que o ser humano é um intruso em um universo caótico e imperfeito. Quando mais cedo o homem cair fora desse caos cosmológico, tanto melhor.

Caterine tenta roubar os cliente Albert e Brad. Trazê-los para a sua visão de mundo muito próxima do niilismo gnóstico. Mas que, como tudo no filme, é mais um produto à venda na “loja que vende de tudo” – o slogan da Huckabees que é uma irônica metáfora do mundo regido pela lógica mercantil.

Aristotélicos, sofistas e céticos

Por trás da narrativa caótica, o filme consegue fazer uma pequena síntese das posições antagônicas básicas na história da filosofia ocidental: os aristotélicos, os sofistas e os céticos, uma discussão que começou na cena filosófica da antiguidade grega e parece que até hoje não terminou.

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Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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