Um festival de verão, por Walnice Nogueira Galvão

Um festival de verão

por Walnice Nogueira Galvão

Quando o verão chega no hemisfério Norte, a vida se engalana. O sol aquece, as roupas somem, as pessoas se espalham pela praças, as mesinhas migram para as calçadas, a alegria é geral, como uma ressurreição. O que afinal é, uma ressurreição da natureza até então massacrada pelo frio que interioriza, pela morte do mundo vegetal e pela hibernação. Os festivais de arte se instalam por toda parte.

Onde houver imponentes ruínas gregas ou romanas, esses serão os locais escolhidos para os eventos, sempre ao ar livre. Alguns se especializam: na Inglaterra é Shakespeare pelo país todo, sobretudo nos pátios internos daquelas lindas universidades medievais, como Oxford e Cambridge; Avignon hospeda o festival de teatro; Verona oferece óperas completas, sem faltar a Aída de Verdi, com direito a elefantes no palco.

Um deles é o de Orange, cidadezinha na Provença, no sul da França, que se jacta de ter o anfiteatro romano (datando do 1º século) em melhor estado de toda a Europa, acomodando 9 mil pessoas. Na semana passada, o festival, lotadíssimo, apresentou sua programação de canto lírico no sábado à noite. O espetáculo durou 3 horas.

Assistimos a uma sequência de árias de ópera, cantadas por solistas acompanhados por orquestra sinfônica e pelo Coral da cidade de Parma. Os solistas eram jovens e não dos mais conhecidos, mas nem por isso menos competentes. As árias foram selecionadas entre as mais populares: “Il mio babbino caro” de Gianni Schichi, o coro “Va pensiero” do Nabuco etc. Teve até – ponto alto e reservado para o final – a desafiante ária da Rainha da Noite, de A flauta mágica. No começo parecia que estavam (et pour cause) privilegiando os franceses, com muito Bizet, Gounod, Offenbach e outros compatriotas. Mas logo depois predominaram Verdi, Mozart, Puccini – e a impressão se desfez. Os cantores era de primeira linha e não se apresentavam vestidos a caráter, mas com trajes de gala como vestidos longos e fraques ou smokings. Fez grande sucesso um baixo coreano de voz possante, que ficava mais interessante ainda por interpretar papeis historicamente atribuídos a europeus. Já o imaginaram como um toureiro de Carmen?

O festival ardilosamente piscava o olho para o pop. A meio caminho, ouvimos um coro de seiscentas vozes, e era a garotada cantando uma seleção de Prince e Michael Jackson. Não foram para o palco, onde não caberiam, mas cantaram ali mesmo onde estavam, formando um setor colorido na plateia, todos vestidos com abrigos vermelhos ou azuis. Eram constituídos por corais jovens de toda a Provença.

Após mais canto lírico, apresentou-se um conjunto de gospel a cargo de negros americanos. E algumas árias depois a banda de gaita de foles da Marinha francesa, a caráter em suas roupas brancas de marinheiro, com boinas de pompom. Os instrumentos eram, afora as gaitas, pífanos e tambores. Ofereceram, combinando com o instrumento principal, uma canção celta em gaélico. Despediram-se marchando pelo meio da plateia, com seu maestro batendo continência: a casa veio abaixo.

Lugar privilegiado, quase no fim do concerto, foi reservado à queridinha dos franceses, a inglesa expatriada desde a juventude, a cantora Jane Birkin. Veio cantar uma canção de seu ex-marido há longo tempo falecido Serge Gainsbourg, “La javanaise”, que tem por estribilho aquele lancinante louvor e lamento dedicado ao efêmero dos amores: “Nous nous aimions/Le temps d´une chanson”… Suas três talentosas filhas incluem a premiada atriz de cinema Charlotte Gainsbourg .

Ao fim, o público se dispersou lentamente, mostrando sinais da euforia trazida por tanta beleza.

O festival de Orange ocorre, variando a cada vez a programação, toda semana de verão em seu anfiteatro do tempo de Augusto. Hoje é tombado pela Unesco, mas devemos sua descoberta e início de restauração ao autor do romance Carmen, Prosper Mérimée, que em meados do Oitocentos foi diretor dos Monumentos Históricos da França. Perspicaz, foi ele quem percebeu o potencial estético da ruína e tratou de resgatá-la do aniquilamento certeiro – com resultados como esse. A ele acendemos uma vela de gratidão.

Walnice Nogueira Galvão

2 Comentários

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  1. Estive lá há alguns anos

    Estive lá há alguns anos quando de uma viagem de um mês pelo interior da França, ė realmente um belíssimo lugar, reconheci na hora as suas escadarias e seu palco inteiros, tive até a oportunidade de recitar uma poesia em italiano a pedido de meus amigos e companheiros de viagem para testar a excelente acústica do local.  Foi uma curtição. Parabéns por poder estar presente a este lindo acontecimento.

     

     

     

     

     

  2. Que ninguém se engane!

    Estive em Verona há 5 anos atrás. E lá como alhures, esses festivais de verão em ruínas antigas são máquinas espetaculosas de apelo estritamente turístico. Na verdade, turismo massivo, de qualidade cultural no mínimo duvidosa.

    É como se pipocasse André Rieu (essa versão black-tie e repaginada do Ray Conniff) como brotoeja estival. Em geral o popularesco do popularesco, sem qualquer rigor de linguagem ou execução, apenas para encantar vovós alemãs que por alguns instantes saíram da frente da televisão.

    O turismo de massa interno europeu hoje se divide em dois grandes contingentes: o das vovós que vão buscar os calores mediterrâneos (muito distante do espírito cultural da romântica “meine Reise in Italien”) e o da juventude (ou meia-juventude) ébria e sem-noção, que na sexta-feira passada gerou um apelo do prefeito de Palma de Mallorca à Alemanha: “Dejen de enviar turistas basura!”

    “Cafona” é a palavra mais gentil que se pode usar para se referir a esses semi-megaeventos a preços estratosféricos. Trata-se de uma pasteurização pop daquilo que na Europa Central e Setentrional é o cânone da alta cultura. Tem cheiro de naftalina misturado com formol e algum perfume barato (para turistas apressados que não sabem o que é escolher um Santa Maria Novella).

    Os verdadeiros e criativos festivais de verão na Europa são os que não têm muita badalação, são planejados para a gente local, arriscam aventuras musicais bem menos naftalínicas e chegam a custar módicos 7 euros a entrada, como o que acontece anualmente durante 3 meses em Sevilha, entre as laranjeiras dos jardins do Real Alcázar (http://www.actidea.es/nochesalcazar2017/):

    [video:https://www.youtube.com/watch?v=2SeRarKRMuA&feature=youtu.be align:center]

    Mas enfim, tem turista que vai a Paris achando que o melhor lugar do mundo depois do Shopping Iguatemi são as Galleries Lafayette. Melhor ir logo para Miami então! (Aliás, a Disney também tem ruínas greco-romanas…).

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