Uma fantástica realidade no Brasil-Malpertius

 

Em meados dos anos 1980 fiquei profundamente impressionado quando ao ver pela primeira vez o filme Malpertius (1971) num cineclube do Bexiga. Uma vez por ano procuro rever a cópia que mandei fazer dessa obra-prima que explora a delicada relação entre realidade e ficção e apaga a distinção que existe entre sanidade e loucura. 

O filme tem um verbete em inglês na Wikipedia. Com ajuda do Google traduzi um fragmento dele:

Jan (Mathieu Carrière), que é um jovem marinheiro que retorna à terra natal e, enquanto procura por sua casa de infância, é misteriosamente sequestrado. Ele acorda em uma antiga mansão isolada chamada Malpertuis, onde ele se encontra entre vários parentes, incluindo sua irmã Nancy (Susan Hampshire), bem como um taxidermista estranho e um louco chamado Lampernisse. A mansão acaba se apresentando como um labirinto de corredores, escadarias e câmaras secretas, pertencentes à sua família.
Seu tio ocultista Cassavius (Orson Welles) está prestes a dividir a propriedade entre seus herdeiros, mas, como se vê, somente se eles se comprometem a nunca deixar as instalações. Eles se encontram presos num mistério em que eles agem como se fossem os deuses da mitologia grega que Cassavius acredita que eles sejam. Mas qualquer um que tenta escapar é encontrado terrivelmente assassinado. O enredo permanece obscuro até o fim, enquanto Jan tenta desvendar o mistério que parece se transformar numa loucura onírica.”

https://en.wikipedia.org/wiki/Malpertuis_(film)

Nas últimas semanas o Brasil foi transformado numa mansão assombrada isolada do mundo. Todos nós estamos sendo aprisionados nesse Brasil-Malpertius. Entretanto, seria injusto tentar relacionar os principais personagens da nossa realidade fantástica com a mitologia grega. Creio ser muito mais adequado recorrer às nossas próprias fantasias para fazer isso.

No centro do poder, as principais personagens que comandam a realidade fantástica brasileira são:

Chupa Cabra – desde que atuava na Justiça Federal, o Ministro da Justiça sugava a energia vital da legislação brasileira para prejudicar a esquerda

ET de Varginha – o Ministro das Relações Exteriores se diz um especialista em alienígenas

Curupira – o Ministro da Educação nomeado por Bolsonaro avança para o passado como se estivesse caminhando para o futuro, ele quer reintroduzir a censura e o controle ideológico sobre as universidades brasileiras

Mula sem Cabeça – a Ministra da Família diz que viu Jesus numa goiabeira, afirma ter qualificações que não adquiriu e foi acusada de raptar um curumim

Aimberê – o Ministro da Fazenda é um especialista em espalhar maldades, ele pretende transformar os trabalhadores brasileiros em escravos sem direitos trabalhistas e previdenciários

Guaixará – o Ministro da Casa Civil é um corrupto assumido hipócrita o suficiente para pedir perdão ao respeitável público sem se dar ao trabalho de reparar os danos que provocou

Todos sob o comando do casal que detém o poder supremo: Anhangá e Ipupiara. O Presidente da República é um mentiroso contumaz que usou o disfarce de mito para poder prejudicar os interesses da população brasileira; a esposa dele é uma encantadora de tolos acusada de ludibriar fiéis da igreja evangélica em que atuava como pastora.

Os males banidos do nosso mundo pela nossa Constituição Cidadã (Injustiça, censura, violência gratuita, racismo, discriminação, exclusão social, ignorância, fome, ausência de assistência médica etc) foram transformados em programa de governo. Para garantir seus privilégios salariais e manter o novo desequilíbrio entre ricos e pobres, os juízes escondem as Leis nos arquivos mortos dos Fóruns e aplicam apenas simulacros delas.

A sanidade é considerada uma nova loucura. Escritores famosos que nunca agiram como inimigos de ninguém passaram a ser tratados como se fossem terroristas perigosos capazes de destruir o sistema. Mas os livros não serão queimados em público. O mais provável é que eles alimentem os fogões daqueles que não podem comprar gás de cozinha.

As riquezas nacionais estão sendo literalmente doadas aos estrangeiros. Mas o Exército está mais preocupado com a licitação das espumantes e latas de caviar que serão apreciadas durantes as reuniões de gala limitadas aos generais e seus amigos.

Como no filme homônimo, ninguém conseguirá fugir do Brasil-Malpertius. Os índios perdem suas terras, mas não são considerados foragidos. Trabalhadores perdem direitos, mas não poderão mais reclamá-los em razão da extinção da Justiça do Trabalho.

O Ministro da Justiça está mais preocupado em nomear o novo Procurador Geral da República do que em investigar denúncias de corrupção dos membros do governo. Os abusos cometidos pelo Judiciário também não estão na pauta do Chupa Cabra. Tudo indica que em pouco tempo ele conseguirá sugar toda a energia que foi investida pela Assembleia Nacional Constituinte para definir os princípios gerais da administração pública (art. 37, da CF/88).

A criminosa prisão de Lula por causa de um crime impossível que sequer foi previamente descrito na Lei Penal citada pelo Chupa Cabra na sentença condenatória é tratada como se fosse algo banal. O Direito Penal do inimigo criou inimigos do Direito Penal dentro e fora do Judiciário.

Amigos do mercado, os juízes não foram capazes de prender os CEOs da Vale por causa da tragédia de Mariana. A nova tragédia em Brumadinho acarretou apenas a prisão de dois pobres engenheiros que provavelmente falsificaram relatórios para manter seus empregos. Muito juiz e pouca justiça, os males do Brasil-Malpertius são.

Em seu Fado Tropical, Chico Buarque – ele mesmo ferozmente perseguido pelos analfabetos políticos que fazem guerrilha contra a cultura na internet- teorizou sobre um personagem que deixou de existir: o brasileiro impulsivo.

E se a sentença se anuncia bruta
Mais que depressa a mão cega executa,
Pois que senão o coração perdoa.

Confinados num imenso manicômio governado por seres demoníacos secundados por juízes acanalhados, dezenas de milhões de brasileiros sofrem. Mas ninguém ousa transformar o sofrimento em ação. Entorpecidas por Smartphones, nossas consciências silenciam nossos atos. Não perdoamos, nem agimos… nossos corações já estão mortos?

Dito isso, sugiro aos interessados ver o filme Malpertius e pensar um pouco sobre o Brasil e, principalmente, sobre seu próprio papel na realidade fantástica que estamos ajudando a construir. Nossa insana paralisia é o cimento que ergue as paredes da prisão em que seremos confinados e eventualmente torturados e exterminados.

 

Fábio de Oliveira Ribeiro

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