Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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Uma História do Cinema Esquizo

A paranoia e a esquizofrenia podem ou arrastar o indivíduo à insanidade ou a um estado alterado consciência que abra espaço para a iluminação. Percebe-se na história do “cinema esquizoide” essa mesma dualidade entre os ápices onde Hollywood permite a produção de filmes esquizofrenicamente perturbadores e subversivos e “filmes de recuperação”, verdadeiros neurolépticos onde a paranoia é confinada nos limites racionalizantes do mercado.


Desde a transmissão radiofônica de “Guerra dos Mundos” de Orson Wells, pela rádio CBS em 1938, que levou pânico à Nova York e costa leste americana pelo temor de uma invasão marciana, a paranoia emerge na cultura midiática norte-americana: quantas vezes a cidade de Nova York já foi destruída ou sitiada na cinematografia americana por ETs, terroristas, catástrofes climáticas, guerras nucleares, black-outs, meteoros etc.? Incontáveis vezes. A partir dos anos 40 com o filme Noir, simplesmente o cinema americano e as plateias passam a ficar fascinados pela paranoia: um senso de que algo está fora da ordem na sociedade, um segredo, um oculto centro do qual se irradia corrupção, demência.


Paranoia e Esquizofrenia andam lado a lado. A paranoia é a resultante da condição esquizoide que pode ser sintetizada nas seguintes características: passividade, experiência existencial e psiquismo fragmentado e incapacidade de estabelecer uma fronteira entre realidade e fantasia. Se a esquizofrenia está próxima à paranoia, no outro extremo, essa “enfermidade” também está muito próxima de uma experiência mística ou “xamânica”. O psiquiatra R D Laing traçou um paralelo entre ambas as condições: enquanto na esquizofrenia o indivíduo se afoga no oceano da experiência, na vivência xamânica o indivíduo “aprende” a nadar e atravessá-la. Isso se aproxima do gnosticismo valentiniano da paranoia como um estado alterado de consciência que possibilitaria a gnose: o questionamento da realidade in totum como construção artificial de algo ou alguém que não nos ama. Se toda ideologia tem o seu momento de verdade (como nos ensina Theodor Adorno), toda loucura tem o seu momento progressista como resposta a uma condição de realidade sem sentido.


Em nenhum lugar do mundo a ficção invade a realidade como nos EUA (e sua indústria do entretenimento exporta essa condição para todo o planeta). O centro da sua irrealidade não está em Hollywood, mas seminalmente localizado no Deserto de Nevada com Las Vegas, os primeiros testes nucleares e a Área 51. É o polo irradiador de paranoia e esquizofrenia em escala mundial. Ao mesmo tempo, o florescimento do cinema como indústria também somente seria possível na sociedade norte-americana pela própria natureza esquizo do dispositivo: passividade (no sentido cinemático da passividade corporal em relação à atividade mental) e a suspensão da descrença produzida pelas artimanhas do roteiro e pelo “realismo cinematográfico” da edição e montagem.

Portanto, o tema da paranoia e esquizofrenia acompanha a própria história do cinema americano, produzindo uma batalha interior entre as possibilidades progressistas ou emancipadoras dessa condição (jornadas místicas, gnose) e a contenção racionalizadora que reduz essa experiência a ameaça do Outro.


Jason Horsley faz essa trajetória no segundo capítulo do seu livro “The Secret Life of Cinema”, descrevendo essa luta interna e as respostas da indústria hollywoodiana no sentido de conter os potenciais de ruptura da condição esquizofrênica e paranoica.


Se Orson Wells em “Guerra dos Mundos” involuntariamente transmite o inconsciente coletivo da paranoia americana e, logo depois, o filme Noir vai radicalizar essa percepção ao apresentar um mundo onde não há mocinhos e nem bandidos e o Mal é a própria condição de uma realidade que se dissolve em chuva e névoas, em resposta Hollywood reage com os filmes sci-fi que irão traduzir esse inconsciente coletivo como medo da Guerra Fria. Séries de TV como “Além da Imaginação” e filmes como “Vampiros de Almas”“O Ataque dos Discos Voadores”, o monstro de outro planeta em “stop motion” em “A 20 Milhões de Milhas da Terra” onde Roma é salva pelos americanos etc., reduz a paranoia ao medo do Outro. No Outro (alienígenas, monstros, agentes corruptos infiltrados na sociedade) é projetada a fragmentação do ego e a paranoia resultante de uma “multidão solitária”, no sentido dado pelos estudos do sociólogo David Riesman nos anos 50. O paroxismo da ameaça do Outro infiltrado chega com o filme The Village of the Damned (1960) onde as crianças de uma localidade começam a tornar-se seres alienígenas.


O Ápice do Cinema Esquizo 


Nos anos 60 e 70 com a chegada da contracultura a figura do Outro passa progressivamente a sair de cena. A paranóia torna-se atual e com fundamentação histórica. Filmes como Blow Up, Perdidos na Noite, Easy Rider, Um Estranho no Ninho etc. começam a trazer um novo realismo misturado com desespero, cinismo e paranóia política, dando ao tema uma nova maturidade. Os próprios protagonistas desse período são retratados não mais como heróis convencionais, mas, agora, potencialmente psicopatas, esquizóides, alienados e revoltados. Jack Nicholson foi o porta-voz desse período (combinando inarticulação e revolta com cinismo e integridade). Protagonistas instáveis, obsessivos e paranóicos indicam um processo de maturidade do diagnóstico da sociedade norte-americana: com a saída de cena do Outro, a origem de todo mal só pode ser encontrado na sociedade, nas próprias instituições constitutivas. Da desilusão e rebeldia sem causa, a paranóia e psicopatia passam a ser respostas válidas e adequadas do herói para os novos tempos.


Nos anos 70 temos o ápice da maturidade desse tema em filmes como Laranja Mecânica, Straw Dogs, O Fantasma do Paraíso, O Poderoso Chefão, Chinatown e Taxi Driver.

“Esses filmes, como nenhum outro anteriormente conseguiu, chegam a ficar cara-a-cara com o dilema. Eles não apenas chegam a admitir a existência do problema, mas começam a sugerir o que está por trás dele. O que esses filmes têm em comum é um profundo senso de alienação, não unicamente em relação à sociedade, mas da humanidade ela mesma ou dos valores e pressupostos nos ela se constitui. Eles não oferecem qualquer tipo de solução, além de atos de violência sem sentido” (HORSLEY, Jason, The Secret Life of Cinema: Schizophrenic and Shamanic Journeys in American Cinema. London: McFarland, 2009, p. 42.)

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Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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