Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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Uma jornada xamânica em “Blueberry: Desejo de Vingança”

Uma verdadeira cápsula do tempo. Um daqueles filmes que mereciam ser enterrados na época do seu lançamento para depois serem redescobertos como verdadeiras pérolas. O filme “Blueberry”  (aka “Renegade”) do francês Jan Kounen (2004) foi ridicularizado pela crítica e público para hoje ser saudado como um western sobrenatural, um cult do xamanismo no cinema.  Blueberry não é apenas um filme sobre jornadas espirituais xamânicas de um protagonista à beira da morte: os próprios efeitos especiais e imagens cinéticas induzem o espectador a imergir em estados alterados de consciência. O desejo de vingança de um protagonista transforma-se em jornada xamânica de autoconhecimento desconstruindo as códigos do gênero faroeste – vingança, honra, dominação e conquista.

O gênero western já foi muitas vezes desconstruído no cinema por sátiras (Banzé no Oeste, 1974, de Mel Brooks), o exagero revivalista do spaghetti western italiano dos anos 1960-70, a fusão do western com séries policiais urbanas nos anos 1970 (McCloud – 1970-77) ou a paródia dos códigos e convenções dos duelos e violência nos filmes de Tarantino.

Mas nada se equipara ao western francês Blueberry. Baseado no faroeste em quadrinhos francês homônimo de Jean-Michel Charlier e Jean “Moebius” Giraud, o filme foi muito mais além da simples adaptação de um comic book: o filme transformou-se em uma jornada espiritual após o próprio diretor do filme se encontrar com índios xamãs que o iniciaram a rituais verdadeiros.

O filme apresenta todos os ingredientes do gênero como o saloon, o bordel, duelos, tiroteios e perseguições envolvendo cowboys e índios. Mas em Blueberry percebemos que todos esses elementos clássicos do gênero são apenas um pretexto de algo mais ambicioso: transformar o desejo de vingança e o duelo final dos protagonistas em uma batalha mística e psicodélica que realiza-se não nesse mundo, mas no interior da mente através de xamânicos estados alterados de consciência.

O filme lembra muito Dead Man (1995) de Jim Jarmusch sobre o protagonista Johnny Deep que em uma cidade perdida no velho Oeste conhece um índio xamã que o faz iniciar uma jornada espiritual de autoconhecimento, preparando-o para a morte e a entrada no Outro Mundo.

Mas Blueberry não se limita a falar sobre xamanismo. A própria experiência visual e sonora dos efeitos em computação gráfica nas sequências espirituais da narrativa induz o espectador a uma simulação da experiência xamânica – principalmente, o duelo final dos protagonistas no “Mundo Superior” mental é uma sucessão alucinante de imagens cinéticas que reproduz a experiência de êxtase através da indução de drogas xamânicas como a mescalina ou peyote.

Alejandro Jodorowski saltaria de alegria ao ver essa cena, um verdadeiro peyote em celulóide  – o que tornou Blueberry um filme cult que é a mais próxima homenagem ao filme El Topo de Jodorowski, com um grande orçamento que um western merece.

Mas como todo filme cult, na época do lançamento foi mal recebido pela crítica e vaiado pelo público – as atuações, a narrativa e os efeitos especiais, tudo ridicularizado. Blueberry é impactante e experimental. Um daqueles filmes que são verdadeiras cápsulas do tempo que devem ser enterradas para, mais tarde, serem redescobertos como verdadeiras pérolas.

O Filme

Mike Blueberry (Vicent Cassel) é um ajudante de xerife cansado de manter a ordem em uma cidade chamada Palomito no oeste selvagem da década de 1870. A cidade é habitada por um grupo heterogêneo de canalhas e personagens caricaturais: um velho e gordo xerife que anda em cadeira de rodas (Ernst Borgnine) empurrado pelo seu filho Billy the Idiot (John Kounen); Mariah (Juliete Lewis) numa versão moderna de Calamity Jane; Prosis (Eddie Izzard), um geólogo, pequeno escroque oportunista e covarde; Woodhead (Dijimon Hounsou), o ajudante do geólogo cuja cabeça foi escalpelada pelos índios mas ainda vive; e Blount (Michael Madsen) um assassino frio com uma história sórdida de rivalidade no passado com Mike que procurará vingança ao revê-lo na cidade.

Mike foi educado pelos índios. Encontrado quase morto foi submetido a um ritual xamânico de cura. Mas os xamãs fizeram muito mais: foi preparado espiritualmente para uma futura jornada espiritual onde terá que lutar para libertar seu espírito e o coração das suas sombras e monstros interiores.

A chegada de Blount e sua gangue em Palomito na busca de um tesouro indígena converte a cidade em um verdadeiro inferno trazendo para Mike recordações dolorosas do passado e o desejo de vingança.

O suposto tesouro está em uma misteriosa montanha que somente pode ser alcançada atravessando as dunas de um deserto. Para Blount é a chave do dinheiro e poder; para os indígenas é uma montanha mágica; e para Mike Blueberry será o portal do duelo mais lisérgico da história do cinema – Blount e Mike duelarão no interior das suas mentes em um ritual xamânico e sob estados alterados de consciência. 

Xamanismo e os outros mundos

Xamanismo é uma antiga prática mística utilizando estados alterados de consciência como meio de contatar energias, deuses e espíritos desse e de outros planos da existência. O xamã vê todos os aspectos do universo como conectados (plantas, animais, pedras etc.), uma rede de padrões de energia, vibrações e entidades. O papel do xamã é ser o intermediário entre os diferentes mundos.

Tal como descreveu o pesquisador Mircea Eliade, a cosmologia xamânica é estruturada em três mundos: os homens vivem na Terra, uma espécie zona média entre o Mundo Subterrâneo e o Mundo Superior. Os três mundos estão unidos por um eixo central ou espécie de túnel de comunicação simbolizado de formas distintas nas diferentes culturas: montanha, árvore etc. – leia ELIADE, Mircea, O Xamanismo e as Técnicas Arcaicas do Êxtase, Martins Fontes, 1998.

Segundo diversas crenças xamânicas, existem aberturas para viajar no mundo espiritual. Geralmente as entradas são em formas circulares. Essas aberturas, rodas, túneis, buracos ou cavernas também existem dentro de nós mesmos. Através de desenhos em paredes de cavernas, estátuas, pinturas, os xamãs de diversos povos retratam o mundo espiritual dentro de nós.

O Mundo Subterrâneo é onde nos conectamos com espíritos das plantas, animais e minerais. Mas também encontramos a nossa sombra, a parte mais obscura do nosso ser onde estão os instintos e sentimentos densos como a vingança e o ódio. Nesse mundo nos defrontamos com os símbolos e arquétipos dessas sombras – no filme representado por serpentes e escorpiões.

No Mundo Intermediário viajamos para o passado e futuro. Na sua jornada espiritual Mike volta ao passado e revive a cena traumática que o prende ao ódio e vingança por Blount.

 
Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

4 Comentários

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  1. Roteiro interessante mas que

    Roteiro interessante mas que desvirtua totalmente a personagem título. O Blueberry dos quadrinhos consegue ser melhor que isso. E olha que gosto de propostas malucas, tipo Dead Man de Jarmusch, aliás o último filme em que trabalha Robert Mitchum.

    1. O diretor pirou

      Ficou diferente das HQs porque no meio das filmagens o diretor conheceu índios xamãs peruanos, pirou e até fez um documentário sobre eles.

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