“What Did Jack Do?”: David Lynch, Meditação Transcendental e surrealismo, por Wilson Ferreira

Um enigmático projeto de 2016 no qual assistimos a um detetive interrogando um macaco capuchinho acusado de assassinato.

por Wilson Ferreira

 

No 74º aniversário de David Lynch, sem aviso, a Netflix postou o curta-metragem (17 minutos) do diretor, chamado “What Did Jack Do?”. Na verdade, um enigmático projeto de 2016 no qual assistimos a um detetive interrogando um macaco capuchinho acusado de assassinato. Um crime passional, motivado por um intenso amor por uma galinha chamada “Toototabom”… – um argumento tão absurdo e engraçado quanto parece. Nesse curta, Lynch retorna a muitos elementos iniciados no seu filme de estreia “Eraserhead” (1977) e recorrentes na sua carreira. Mas esse curta deixa explícita duas influências criativas decisivas na sua obra: a prática, há 45 anos, de Meditação Transcendental e a continuação do legado dadaísta (cut-up) e surrealista (imagens como fluxo onírico) no cinema.

No 74º aniversário de David Lynch, em 20 de janeiro de 2020, a Netflix postou sem muita cerimônia seu curta-metragem What Did Jack Do? – um enigma de 17 minutos de duração, nebuloso, em preto-e-branco granulado e trilha sonora e design de áudio que emulam filmes antigos. Um curta-metragem produzido por uma empresa apropriadamente nomeada por Lynch como “Absurda”.

Essa é a primeira palavra que você vê na tela. O filme é um interrogatório em uma sequência única, sobre uma mesa no café de uma estação de trem – uma típica sala de interrogatório escura e sem janelas.

Um policial, interpretado por Lynch de terno e gravata, que lembra o traje formal do agente do FBI de Twin Peaks, pressiona um pequeno macaco, chamado Jack Cruz, para confessar o assassinato de alguém chamado Max.

Jack tem uma boca estranha (humana, emaranhada na cara do macaco através de uma trucagem deliberadamente rudimentar) e uma linha de respostas evasivas e surrealistas, também dubladas pela voz Lynch distorcida. E o macaco ainda faz um número musical final, uma canção de amor para uma galinha chamada Toototabon.

O curta tem uma aparência sobrenatural, como se fosse algum filme recuperado de tempos distantes – principalmente porque todos os diálogos giram em torno de cafés e cigarros, sugerindo que a ação se passa em tempos distantes quando ainda era permitido fumar em ambientes fechados. Como nos velhos filmes noir.

O pobre macaco capuchinho tem uma voz rouca e tensa. Os close-ups dos movimentos do rosto e da cabeça de Jack inventados por Lynch e pelo diretor de fotografia Scott Ressler nos dão uma sensação bizarramente convincente de alguém desafiador, ainda que assombrado e evasivo, e também de olhos arregalados. À medida que o tenso confronto continua, fica claro que Jack pode ou não ser culpado de assassinato: ele é suspeito de ter matado alguém chamado Max para continuar com uma galinha chamada Toototabon, por quem Jack é perdidamente apaixonado.

Enquanto esperam o café chegar, a conversa é surreal, desarticulada, salpicada de tiradas bizarras, como um diálogo entre dois sonhadores: parece que Lynch maliciosamente gerou o script por algum tipo de programa de computador que cria linhas de diálogo aleatórias. 

 

 

 

O diálogo está sempre prestes a desmoronar, mas nunca chega a acontecer. Há algo estranhamente pungente na maneira como Jack reclama sobre como está sendo tratado nesse interrogatório: “Você joga um animal no telhado apenas para ver a expressão que fica no rosto dele”, reclama o macaquinho.

O Detetive e o macaco

Na verdade curta What Did Jack Do? foi produzido em 2016, coincidentemente o ano do macaco no calendário chinês. Foi exibido pela primeira vez na Foundation Cartier em Paris em 2017 e apareceu novamente no Disruption Festival em Nova York em 2018.

O curioso é que os fãs de Lynch que haviam comentado sobre uma promessa feita pelo diretor em 2014 de que estava “trabalhando com um macaco chamado Jack em um filme que talvez seja lançado um dia”.

O mundo criado pelo diretor David Lynch é singular e sempre parece remeter ao seu filme de estreia Eraserhead (1977), uma verdadeira carta de intenções criativas que orientaria toda sua carreira – Veludo Azul, Twin Peaks, Estrada perdida, Império dos Sonhos etc. 

O curta parece retornar à atmosfera em preto-e-branco de Eraserhead e sua obsessão por homúnculos: do bebê deformado de Eraserhead, passando pelo anão dançarino de Twin Peaks, chegando ao macaco suspeito Jack Cruz. 

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Redação

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