Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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“Whiplash” fala de qualquer coisa… menos de música, por Wilson Ferreira

Corremos diariamente contra o tempo para atender aos valores da eficiência, desempenho e produtividade que regem a sociedade atual. Ao contrário, na música o tempo é uma ferramenta de expressão artística e não um inimigo. E também um meio para a improvisação e surpresa. Mas no filme “Whiplash” o tempo não é musical: é disciplina e performance – um baterista de Jazz iniciante tem que tocar cada vez mais rápido até sangue e suor caírem sobre o set do instrumento. Em um conservatório de Nova York, alunos de Jazz vivem sob o fascínio dos grandes virtuoses do passado sob a regência de um professor ditatorial e manipulador. Para eles, a música é disciplina e os mestres do  passado se tornaram virtuoses do Jazz porque foram disciplinados através aprendizado pela dor e humilhação. Em “Whiplash”, a música se rende ao “no pain, no gain” – “sem dor, sem recompensa”, ao pé da letra – princípio opressivo da meritocracia atual.

Na música, e principalmente no Jazz, a expressão artística manifesta-se através de quatro recursos: Tempo, Sensação, Dinâmica e Prática. O Tempo é um recurso, é o ritmo através do qual nos entregamos à música; a Sensação é como o Tempo nos envolve – a sensação sinestésica da batida transformando o corpo do músico e o instrumento em uma coisa só; a Dinâmica são as forças que produzem o movimento determinando o quanto tal alto ou baixo tocamos ou cantamos; e a Prática tem a ver com disciplina e tenacidade.

A Prática refere-se a como o músico vai passar incontáveis horas aperfeiçoando sua arte para comunica-se sem esforço com aqueles ao redor, plateia e outros músicos. Assim como na linguagem oral e fonética, o músico passa muito tempo desenvolvendo seu vocabulário para ter capacidade de expressar sentimentos e emoções em um nível mais profundo.

E qual a melhor forma de aprender uma linguagem, seja a oral ou musical? Estar na companhia daqueles que já aprenderam a falar ou tocar um instrumento.

 

É por isso que Whiplash é um filme sobre qualquer coisa… menos sobre música! Acompanhamos o protagonista  Andrew Neimann (Miles Teller), um baterista de jazz iniciante de 19 anos, em um conservatório musical de Nova York em uma sala de prática isolado, tentando tocar a bateria (ou a “swingada dobrada”, o grande desafio proposto pelo professor) cada vez mais rápida.

A sala de prática pode ser até um local solitário onde desenvolve-se o vocabulário, a leitura e a escrita das partituras. Mas, em última análise, precisamos sair para conversar com as pessoas e desenvolver dialetos. 

Mas em Whiplash quando isso acontece, Andrew se depara com uma sala onde músicos calados e cabisbaixos acompanham a regência de um professor ditatorial chamado Terence Fletcher (J.K. Simmons), um verdadeiro metrônomo humano, capaz de manipular seus alunos por meio de abusivos jogos mentais para produzir neles desconfianças mútuas, desprezo e atitudes competitivas. 

Música, abuso e humilhação

Se a música é uma linguagem que, como todas, aprendemos conversando com pessoas, ao contrário, o filme mostra uma suposta “busca pela perfeição” (aliás, um péssimo título em português para o filme) através da superação de limites e a capacidade individual de resistir ao abuso e humilhação.

Todos parecem estar ali não por gostarem de música, mas movidos pela ambição de fazerem parte da orquestra de um Lincoln Center ou assinar um contrato com a gravadora Blue Note. Whiplash não nos mostra um conservatório musical: há músicos, instrumentos, partituras, mas tudo parece ser mais uma daquelas salas de processos seletivos de candidatos a um emprego onde maquiavélicos gerentes de RH inventam dinâmicas de grupo arbitrárias para selecionar aqueles que melhor resistem à humilhações, stress e a pressão do tempo.

Aliás, Whiplash parece tratar sobre o Tempo. Mas não o Tempo musical (o ritmo) como vimos acima, mas o tempo disciplinar, performático – Andrew tem que tocar cada vez mais rápido até que sangue e suor caiam sobre os pratos e tambores do set de bateria. As mãos encharcadas de sangue não se prestam para um baterista tecnicamente competente. 

Em Whiplash os grandes mestres do jazz como Charlie Parker, Buddy Rich e Jo Jones não são reverenciados, mas tornam-se fantasmas que determinam o sucesso ou o fracasso dos estudantes de músicas Por que? Porque Andrew e os outros estudantes do conservatórios são oprimidos pelo virtuosismo dos mestres do passado, traduzido em rapidez, performance, desempenho, precisão etc. É como a sociedade atual, regida pelo princípio da disciplina como performance, interpreta o virtuosismo artístico – pelo princípio corporativo do desempenho e a filosofia de autoajuda do “no pain, no gain” – “sem dor, sem recompensa”.

O Filme

Andrew pratica até tarde da noite, solitário, na melhor escola de música de Nova York quando o som da sua bateria cai nos ouvidos do temido professor Terence Fletcher, o condutor da banda de jazz mais importante do conservatório.  Ele para, ouve, dá ordens para que execute compassos e swingados (obviamente rápidos), vira as costas e vai embora, aparentemente decepcionado com o que ouviu.

Sem saber, Andrew participou do primeiro momento do “método de ensino” de Fletcher: jogos mentais que pretende “empurrar o aluno até o limite”. E esse limite é o do stress, humilhação e dor.

Fletcher costuma contar uma história que justificaria o seu pouco ortodoxo método pedagógico: a história de como Jo Jones jogou um prato de bateria na cabeça de Charlie Parker após uma péssimo desempenho. Para Fletcher, a humilhação fez Parker voltar para casa, praticar até o limite para depois se tornar o legendário “Bird”. Para ele, se esse prato não tivesse sido disparado na cabeça do músico, a história do Jazz não seria a mesma.

Por isso, Flecther usa uma técnica bárbara que envolve chantagem, terror e tortura física tais como solos de bateria repetitivos até o sangue se espalhar sobre o kit, como fosse uma espécie de octógono do UFC do Jazz.

A narrativa descreve a família de Andrew como a de um loser: filho de um pai professor de literatura de uma escola secundária (Jim Neimann feito por Paul Raiser), abandonado pela esposa, que passa o tempo com o filho assistindo filmes enquanto come pipoca.

No seu quarto, Andrew se cerca com posters dos grandes virtuoses do Jazz, enquanto se entrega a exaustivos exercícios no set de bateria. Fletcher sabe disso, e usa a condição de “perdedor” da vida familiar de Andrew para sadicamente estimulá-lo à competição com os outros bateristas do conservatório.

“No Pain, no Gain”

Assistindo ao filme, não há como deixar de lembrar de O Cisne Negro (Black Swan, 2010) onde o diretor artístico de uma companhia de balé chamado Thomas Leroy (Vincent Cassel) manipula Nina e Lily para arrancar delas a melhor performance para escolher qual delas será bailarina principal da montagem de O Lago dos Cisnes.

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Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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