Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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Wokesploitation é a fronteira final do reality show em “Esta é a Sua Morte”

Wokesploitation é a fronteira final do reality show em “Esta é a Sua Morte”

Por Wilson Ferreira

Depois de explorar as mazelas do sexo e da vida, a última fronteira da TV é a morte. Mas não a das vítimas, mas daqueles que querem dar cabo das suas próprias vidas. Depois de décadas de críticas e sátiras cinematográficas ao gênero televisivo do reality show, “Essa é a Sua Morte” (2017) evoca a tendência atual do “Wokesploitation” – chamar a atenção das injustiças da mídia e sociedade por meio da hiper-violência e muito sangue, como na franquia “Uma Noite de Crime”. Mas é um reality show sobre suicidas endividados através do viés “camp”, “trash” como fosse uma típica “soap opera” norte-americana. Um filme que vai além da crítica ao reality show: mostra a fase terminal da TV, agora obcecada em procurar de forma tautista “a realidade do real” numa sociedade na qual a morte se tornou mais lucrativa do que a vida, seja no sistema econômico quanto no político.

O gênero televisivo reality show já foi desconstruído e virado ao avesso pelo cinema, desde o clássicos gnósticos Show de Truman e EdTV que suscitavam discussões espirituais e existenciais. 

Porém, o século XXI a tendência foi a desconstrução a partir do viés chamado “wokesploitation”: despertar a consciência crítica do espectador para as injustiças da indústria do entretenimento através da hiper-violência, sangue e tripas – forçar o espectador a abrir os olhos. Mas, paradoxalmente, oferecendo ao mesmo tempo o prazer voyeurista que é a essência do reality show.

 

Esta é a Sua Morte (This is Your Death, aka The Show, 2017), dirigido pelo vilão “Gus” da série Breaking Bad Giancarlo Esposito, incorre nesse mesmo paradoxo. Entretanto, a novidade que Esposito nos entrega é uma wokesploitation num viés camp (estética baseada na ironia kitsch, no exagero e numa proposital vulgaridade), trash, com uma linguagem de câmera e performance dos atores como fosse uma grande soap opera – a telenovela norte-americana. O que é reforçado pela estética da fotografia de Paul Mitchnik, que passou a maior parte da sua carreira fazendo filmes para TV.

Como um filme camp, o próprio título do filme guarda uma ironia que talvez somente aqueles que viveram o suficiente a história da TV vão perceber: o título faz um trocadilho com um dos primeiros reality shows da primeira idade de ouro da TV, o programa This Is Your Life (1952-1961) – criado e apresentado por Ralph Edwards, foi o primeiro programa de TV forjado para criar intimidade com o espectador. Celebridades ou pessoas comuns (que de alguma forma contribuíram com sua comunidade) eram surpreendidas no show ao vivo com uma apresentação dos detalhes das suas vidas, contadas por parentes e amigos.

 

 Esse trocadilho do título, ao lado da linha de diálogo “eu quero mostrar a realidade do real!” confessada ansiosamente pelo protagonista a certa altura do filme, mostra que Esta é a Sua Morte vai muito além da discussão do reality show – Esposito pretende discutir o esgotamento atual do próprio formato da televisão, pelo menos da TV aberta comandada pelos níveis de audiência.

A passagem de “This Is Your LIFE” para “This Is Your DEATH” mostra o final tautista (tautologia + autismo) de uma mídia que parece devorar a si mesma, tão autocentrada e incapaz de mostrar o real de forma sincera e honesta que, depois de explorar a vida e o sexo restaria a última fronteira: a morte – um reality show com pessoas dando cabo da própria vida ao vivo.

E o sintoma de uma sociedade na qual a morte se tornou mais lucrativa do que a vida, seja no sistema econômico quanto no político.

O Filme

Os créditos iniciais do filme são entrecortados com cenas de um desastre ocorrido no episódio final do reality show Casei com um Milionário. Restando duas finalistas, o milionário em questão escolhe uma delas para ser sua esposa. Terminando com a vice-campeã rejeitada disparando uma arma contra o homem antes de virar a arma para si mesma, matando-se ao vivo e em rede nacional.

Para o galã apresentador (propositalmente caricato com seu “gel-hair”) Adam Roger (Josh Duhamel), é o momento da chamada para o despertar no dia seguinte da tragédia: no programa “Morning Show EUA”, apresentado com um sorriso de porcelana por James Franco, Adam desabafa ao vivo as afrontas dos jogos televisivos – colocar um contra o outro pessoas endividadas e  desesperadas para a emissora ganhar audiência e muito dinheiro.

 

O que lembra bastante o clássico de Sidney Lumet Network: Rede de Intrigas (1976) no qual um apresentador de telejornal ameaça se matar ao vivo gritando “Estou louco como o demônio, e não aguento mais isso!” – sobre o filme clique aqui.

Depois desse desabafo ao vivo, Adam se acha acabado para a TV, volta para casa e encontra sua irmã Karina (Sarah Wayne Callies), uma assistente de enfermagem, dando-lhe os parabéns pela atitude. Chamado pela executiva Ilana Katz (Famke Janssen) para uma reunião no dia seguinte com a cúpula da emissora, Adam acredita que será demitido e carreira na TV terminada. 

Mas, para sua surpresa, descobre que em vez de ser demitido é apresentado para uma nova produtora chamada Sylvia (Caitlin Fitzgerald) para desenvolverem um novo reality show no qual pessoas pobres e com intenções suicidas sejam encorajadas a dar cabo de si mesmas ao vivo.

Um advogado dá o suporte jurídico necessário: a rede não poderia ser responsabilizada, desde que provasse que não estimulou aos atos suicidas – apenas disponibilizou os meios, sem disparar o gatilho.

Inebriado pela sua tomada de consciência, Adam pretende conciliar sua nova “consciência crítica” com os propósitos de lucro dos executivos da rede: “não quero fazer um show que afirme a morte. Quero que as pessoas morram por um propósito maior…”, racionaliza Adam Roger em sua epifania.

Com o programa “Essa é a Sua Morte”, Adam vira uma espécie de tele-evangelista da morte, com a missão de “acordar a nação” mostrando pessoas desesperadas, endividadas ou com doenças terminais trocando a sua vida por um futuro melhor para seus familiares – em um jogo mórbido, os telespectadores fazem doações para o suicídio com melhor performance.

Paralela a essa estória, acompanhamos as desventuras de Mason Washington (interpretado pelo próprio Esposito), faxineiro da emissora e vivendo de diversos bicos mal remunerados. Aos 55 anos, já teve seus melhores dias, mas perdeu o emprego com a crise econômica. E hoje, endividado, está prestes a perder sua casa para o banco e não consegue mais sustentar sua família. 

 

Fica óbvio que os destinos de Mason e do tele-evangelista da morte Adam Roger ocasionalmente se chocarão. Principalmente porque para Roger, a gincana dos suicídios acaba se transformando em um fim em si mesmo: obcecado pela audiência para continuar “despertando” o público para a realidade da nação, Roger vai inevitavelmente ultrapassar a linha da legalidade.

Tautismo da Neotevê

“Mostrar a realidade do real!”. Essa exortação angustiada de Adam Roger é o sintoma da fase terminal da TV atual, a fase da metástase do que o pesquisador francês Lucien Sfez chamava de “tautismo”: o fechamento operacional de um sistema autocentrado, tautológico e isolado do mundo exterior – SFEZ, Lucien, Crítica da Comunicação, Loyola, 1994.

Depois da primeira fase áurea da TV (dos tempos do Esta é a Sua Vida) no qual a janela pretendia ser uma janela aberta para o mundo, sua hipertrofia midiática fez se converter em “Neotevê” (Umberto Eco) – uma televisão mais preocupada em falar de si mesma com muita metalinguagem e making of – clique aqui.

Esta é a Sua Morte mostra a atual fase terminal: após tanta metalinguagem e de apresentar para o público o artifício por trás de câmeras e apresentadores, tardiamente a TV volta a lembrar que existe um mundo exterior, no deserto do real. Porém, o tautismo já está em metástase: a “realidade do real” está condenada a ser convertida pela realidade aumentada do show e entretenimento televisivos.

Mas por que a realidade aumentada através da morte? Em uma das linhas de diálogo de Adam Roger ainda consciente (antes de ser absorvido pela lógica mercadológica do show) ele dispara: “todos estão lucrando com a miséria dos outros… As igrejas lucram, os bancos lucram, as companhias de fast food lucram… jornalistas como você lucram!”.

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Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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