A desigualdade é ineficiente, um estudo essencial da CEPAL

Hoje em dia, o discurso da igualdade atinge o centro do capitalismo global, estimulando o aparecimento de um novo pensamento econômico, uma nova esquerda

O Financial Times, bíblia do capitalismo, tem criticado acerbamente as políticas anti-sociais praticadas na América Latina? Teria sido contaminado pelo marxismo cultural?

Hoje em dia, o discurso da igualdade atinge o centro do capitalismo global, estimulando o aparecimento de um novo pensamento econômico, uma nova esquerda, um novo pensamento, embora ainda incipiente, no clube dos bilionários.

Aqui, um trabalho essencial da CEPAL (Comissão Econômica Para a América Latina), de 2018. Publicamos a introdução. A íntegra está anexada

  1. A igualdade no centro do desenvolvimento

Durante as sete décadas de sua história institucional, a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) propôs horizontes estratégicos de desenvolvimento. A partir de 2010, esse compromisso passou a incluir uma ênfase especial na igualdade, que se expressa nos principais documentos submetidos à consideração dos países da região nos últimos quatro períodos de sessões. Assim, por quase uma década, a CEPAL colocou a igualdade como um valor fundamental do desenvolvimento e um princípio ético irredutível, em sincronia com a crescente relevância do tema nas demandas cidadãs e no debate sobre políticas.

A igualdade está no centro do desenvolvimento por duas razões. Primeiro, porque dá às políticas um fundamento último centrado num enfoque de direitos e uma vocação humanista que recolhe a herança mais apreciada da modernidade. Segundo, porque a igualdade é também uma condição para avançar rumo a um modelo de desenvolvimento focado na inovação e na aprendizagem, com seus efeitos positivos sobre a produtividade, a sustentabilidade econômica e ambiental, a difusão da sociedade do conhecimento e o fortalecimento da democracia e da cidadania plena.

A igualdade refere-se a igualdade de meios, oportunidades, capacidades e reconhecimento (CEPAL, 2014). A igualdade de meios traduz-se em uma distribuição mais equitativa da renda e da riqueza e uma maior participação da massa salarial no produto; a de oportunidades, na ausência de discriminação de qualquer tipo no acesso a posições sociais, econômicas ou políticas. A igualdade em matéria de acesso a capacidades refere-se a habilidades, conhecimentos e destrezas que os indivíduos adquirem e que lhes permitem empreender projetos de vida que consideram valiosos. Por outro lado, a igualdade como reconhecimento recíproco se expressa na participação de diversos atores no cuidado, trabalho e poder, na distribuição de custos e benefícios entre as gerações atuais e futuras e na visibilidade e afirmação de identidades coletivas.

Este documento toma como ponto de partida essa definição de igualdade e daí avança na discussão de seu papel como força impulsionadora da eficiência econômica. Esta última é definida, sob uma perspectiva dinâmica, como a velocidade com que se pode inovar, absorver as inovações geradas em outras partes do mundo e reduzir a lacuna tecnológica, difundir as inovações no tecido produtivo e, através delas, elevar a produtividade e abrir novos espaços de investimento de maneira sustentável.Trata-se de trajetórias de aumento do produto e da produtividade baseadas no pleno aproveitamento dos recursos e no máximo potencial de aprendizado tecnológico, que ao mesmo tempo preservam o meio ambiente. Argumenta-se que a desigualdade não é só um resultado, mas também um determinante importante do funcionamento da economia, porque condiciona o acesso dos agentes econômicos a capacidades e oportunidades e modela as regras de jogo e os incentivos. A mensagem central é que a desigualdade implica grandes custos de eficiência, o que redunda em que sua superação seja uma condição necessária para o desenvolvimento. As políticas a favor da igualdade não só produzem efeitos positivos em termos de bem-estar social, mas também contribuem para gerar um sistema econômico mais favorável para a aprendizagem, a inovação e o aumento da produtividade.

O historiador Alfred Cobbam (1965) resumiu com precisão a razão que levou os Governos da França, na década de 1950 e início da década de 1960, a adotar planos de desenvolvimento econômico que transformaram substancialmente a sua economia: a pobreza é ineficiente. Contudo, durante muito tempo a visão predominante entre os economistas foi a oposta, a de que eficiência e a igualdade se contrapunham, a tal ponto que Okun (1975) se referiu à relação entre ambas como “a grande concessão” (the big tradeoff). Entendia-se que um menor crescimento econômico era o custo que a sociedade devia pagar para reduzir as desigualdades que surgiam da concorrência nos mercados. Esta ideia foi questionada de maneira crescente na literatura econômica (veja, por exemplo, Acemoglu e outros, 2013; Ostry, Berg e Tsangarides, 2014), de tal modo que emergiu um novo consenso em que a desigualdade é percebida como uma barreira ao desenvolvimento. A “nova economia da desigualdade e da redistribuição” (Bowles, 2012) estuda precisamente os mecanismos do lado da oferta através dos quais a desigualdade gera incentivos contrários à inovação e ao investimento.

A igualdade é uma condição necessária para a eficiência dinâmica do sistema ao criar um ambiente institucional, de políticas e de esforços que prioriza a inovação e a construção de capacidades. Sob esta perspectiva, a igualdade é mais relevante na atualidade do que no passado, devido ao impacto da revolução tecnológica, que torna a construção de capacidades e o fechamento de lacunas uma tarefa mais urgente e necessária. Essa urgência é acentuada pela insustentabilidade do atual padrão de crescimento, que obriga a aproveitar a revolução tecnológica em favor da transformação da matriz energética e dirigir os processos produtivos para processos de baixo carbono, preservando o meio ambiente e seus serviços produtivos para as próximas gerações. Os mecanismos através dos quais opera a relação entre causalidade e eficiência são a difusão muito mais ampla na sociedade da educação e das capacidades; a eliminação das barreiras à criatividade e ao esforço que representam as discriminações de qualquer tipo; o seguro social proporcionado pelo Estado de bem-estar que permite aos agentes aceitar, em maior grau, os riscos inerentes à inovação; e a superação da cultura do privilégio e da economia política que fecham o caminho a novos agentes, setores e ideias que transformam a economia e desafiam comportamentos rentistas baseados em vantagens comparativas estáticas ou privilégios políticos.

O gráfico 1 apresenta a associação negativa entre desigualdade e produtividade numa amostra ampla de países. Essa associação não supõe uma direção única de causalidade entre as duas variáveis; pelo contrário, admite-se que a causalidade provém tanto da desigualdade como da produtividade numa interação complexa, como se argumenta ao longo do documento.

O papel da igualdade sobre a eficiência da oferta contribui para viabilizar seus efeitos positivos sobre a demanda efetiva. É mais provável que a distribuição da renda ajude a expansão da demanda num país cuja estrutura produtiva é mais diversificada e competitiva. Assim, a tradicional visão keynesiana sobre distribuição e demanda efetiva é complementada com a visão schumpeteriana sobre inovação e capacidades.

A visão sob a perspectiva da igualdade converge com as demandas de construção de capacidades e com a ênfase que a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável atribuem ao tema. A crescente preocupação com os elevados níveis de desigualdade que se expressa nas políticas internas dos países tem seu correlato externo nesse consenso da comunidade internacional alcançado em 2015. Ele reconhece a igualdade como um fator essencial da estabilidade internacional e da redução de conflitos. O propósito de assegurar “que ninguém será deixado para trás”, expressado na Agenda 2030, reflete com clareza essa vocação universalista e inclusiva.

O consenso da comunidade internacional surge não só de análises técnicas, mas também do diálogo dos governos e organismos internacionais com a sociedade civil. Um exemplo desse diálogo é a Primeira Reunião do Fórum dos Países da América Latina e do Caribe sobre Desenvolvimento Sustentável, realizada na Cidade do México em abril de 2017. Nela, autoridades de governo, organismos internacionais, acadêmicos e organizações da sociedade civil examinaram e constataram os avanços alcançados pela região em matéria de igualdade e implementação da Agenda 2030. Previu-se, então, que esses objetivos seriam abordados também na Segunda Reunião do Fórum, a ser realizada em Santiago em abril de 2018.

S1800303-pt
Luis Nassif

2 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. O problema é que economistas só ouvem argumento de autoridade. O que os ricos falam, portanto, acaba sendo encarado com temor reverencial.

    Para além da dimensao ética, afinal, ninguém é tao diferente para não ser tratado como semelhante, a questao da produtividade, as implicaçoes materiais, da infra estrutura economica, sempre foi encarada de modo distinto por conservadores, liberais e progressistas.

    Conservadores e liberais sempre amaram a desigualdade. Enquanto uns a consideram “natural” (assim foi e assim sempre será), outros consideram uma coisa boa porque seria a desigualdade que impulsionaria a competição e a concorrência, gerando assim ganhos de produtividade.

    Ao contrário de conservadores e liberais, os progressistas consideram que quanto maior a desigualdade (além de maior desintegração social e violência), maior ineficiência e menor produtividade (alem de outros problemas de integração sistêmica). De modo esquemático, nem os ricos empregam todos os seus potenciais, já que suas posições estão “garantidas”, nem os pobres tem estímulo para fazê-lo, pois as distâncias são tão grandes que não são percebidas como metas realistas. No computo geral, tem-se recursos ociosos e menor produtividade.

  2. CEPAL?!

    “Além dos países da América Latina e Caribe, fazem parte da CEPAL o Canadá, França, Japão, Noruega, Países Baixos, Portugal, Espanha, Reino Unido, Turquia, Itália e Estados Unidos da América. ”
    (https://pt.wikipedia.org/wiki/Comiss%C3%A3o_Econ%C3%B4mica_para_a_Am%C3%A9rica_Latina_e_o_Caribe)

    É “ajuda” estrangeira tanto quanto o USAID. Se vacilar até o FMI vai propor ajuda para salvar o Chile da crise. O Chile e outros países realmente da América Latina…

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador