A Rainha Vermelha e o Bobo da Corte, por Felipe A. P. L. Costa

A Rainha Vermelha e o Bobo da Corte

por Felipe A. P. L. Costa [1]

Em 1859, Charles Darwin, um dos idealizadores da teoria da evolução por seleção natural, publicou seu livro mais famoso, Sobre a origem das espécies. Para o naturalista inglês, explicar a divergência e multiplicação das linhagens (espécies) – ‘o mistério dos mistérios’, segundo ele – era um desafio. Em 2009, como parte das comemorações pelo bicentenário de nascimento de Darwin, o prestigioso periódico científico Science (v. 323, pp. 728-751) trouxe uma seção especial de artigos que reveem diferentes aspectos do que conhecemos hoje sobre a especiação, o processo que levou à formação de tantas espécies de seres vivos. Em um dos trabalhos, dois modelos, o da Rainha Vermelha e o do Bobo da Corte, são confrontados. Qual deles seria o responsável por moldar a diversidade de seres vivos?

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Breve contexto histórico. A teoria da evolução por seleção natural – talvez, a mais influente de todas as teorias científicas – foi criada pelos britânicos Charles Darwin (1809-1882) e Alfred Russel Wallace (1823-1913) (ver ‘Sobre o darwinismo’). Um primeiro esboço geral da teoria foi divulgado em 1º de julho de 1858, em uma reunião da Sociedade Lineana de Londres. No ano seguinte, Darwin publicaria mais detalhes em seu mais famoso livro, Sobre a origem das espécies, versão abreviada e simplificada de um manuscrito inacabado.

E a biologia e o mundo nunca mais seriam os mesmos.

Em seu livro, Darwin não resolveu de todo o problema da especiação (como uma população dá origem a duas ou mais populações evolutivamente divergentes). Mas ele apresentou e discutou algumas possibilidades, a partir das quais este e outros aspectos da biologia evolutiva vêm sendo explorados.

Edição especial

Como parte das comemorações pelo bicentenário e também pelos 150 anos da primeira edição de Sobre a origem das espécies, a revista Science de 5/2/2009 trouxe uma seção especial com cinco artigos de revisão sobre diferentes aspectos do processo de especiação. Por limitação de espaço, vamos comentar aqui apenas um desses trabalhos, embora a edição como um todo traga algumas das discussões mais efervescentes da biologia evolutiva contemporânea.

O artigo escolhido tem um título peculiar: ‘A Rainha Vermelha e o Bobo da Corte: diversidade de espécies e o papel de fatores bióticos e abióticos ao longo do tempo’. Nele, Michael J. Benton [2], da Universidade de Bristol (Inglaterra), examina até que ponto fatores bióticos (modelo Rainha Vermelha) e fatores abióticos (modelo Bobo da Corte) seriam responsáveis por promover a especiação, moldando assim a diversidade de espécies.

O primeiro modelo, cujo nome faz alusão à Rainha Vermelha, personagem do livro Alice através do espelho, de Lewis Carroll (1832-1898), foi sugerido pelo biólogo estadunidense Leigh Van Valen (1935-2010), em 1973. Segundo esse modelo, as interações entre (competição, predação etc.) entre os seres vivos seriam os principais condutores da mudança evolutiva. É o que ocorre, por exemplo, quando um novo tipo de defesa surge em uma população de presas. Com isso, o surgimento de todo e qualquer tipo de contra-ataque por parte dos predadores passa a ser algo extremamente vantajoso. Não há soluções propriamente definitivas para essas ‘corridas armamentistas’, pois a evolução de novos tipos de defesa (ou de ataque) produz repercussões que vão e voltam. Assim, a exemplo do que ocorre no livro de Carroll, as espécies estão sempre ‘correndo para permanecer no mesmo lugar’ – i.e., as linhagens mais bem-sucedidas simplesmente persistem, enquanto as outras vão desaparecendo.

O modelo Bobo da Corte (Court Jester, no original em inglês), proposto pelo paleontólogo estadunidense Anthony D. Barnosky, em 2001, ressalta a importância evolutiva das perturbações ambientais promovidas por fatores abióticos, como mudanças climáticas e soerguimento de montanhas. Mais especificamente, a história das linhagens dependeria, em boa medida, de suas respostas às mudanças imprevisíveis que ocorrem no ambiente físico, lembrando o comportamento caprichoso dos bobos da corte dos tempos medievais. Cabe ressaltar, porém, que não há ‘corridas armamentistas’ entre linhagens de seres vivos e elementos não vivos do ambiente, pois estes últimos são evolutivamente inertes – fótons de luz e moléculas de água, por exemplo, não mudam, ao longo do tempo, em função de serem ou não consumidos por seres vivos. Perturbações no ambiente físico podem exigir a evolução de novos níveis de tolerância, mas isso não desencadeia uma sucessão de ajustes mútuos entre seres vivos e elementos não vivos.

Coda

E quem seria, portanto, o grande responsável por moldar a diversidade das espécies, a Rainha Vermelha ou o Bobo da Corte? Na opinião de Benton, os dois modelos não são necessariamente excludentes. Eles apenas parecem operar em escalas (espaciais e temporais) distintas. Assim, enquanto competição, predação e outros fatores bióticos moldariam a evolução no interior de ecossistemas locais por períodos relativamente curtos de tempo, fatores abióticos, como mudanças climáticas e eventos tectônicos ou oceânicos, poderiam moldar padrões de evolução em escala mais ampla e duradoura (por milhares ou milhões de anos). Como afirma o autor, resta saber se essa visão pluralista do processo evolutivo vai facilitar o diálogo entre as diferentes escolas de pensamento envolvidas com o estudo da diversidade biológica.

Notas

[1] Versão algo diferente deste artigo apareceu na revista Ciência Hoje (n. 258, p. 12-3), em 2009.

[2] O paleontólogo escocês Michael J. [James] Benton (nascido em 1956) é autor, entre outros, de História da vida (L&PM, 2012 [2008]).

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[Nota adicional: para detalhes e informaçõe sobre o livro mais recente do autor, O evolucionista voador & outros inventores da biologia moderna (2017), inclusive sobre o modo de aquisição por via postal, ver aqui; para conhecer outras obras do autor (além de uma versão em PDF da versão original deste artigo), ver aqui.]

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