Covid-19: onde estamos, para onde vamos, o que fazer? Por Felipe Costa

De hoje até o fim de maio, estatísticas devem totalizar entre 37,5 mil e 91 mil mortes. Medidas de mitigação deveriam ser efetivamente adotadas em todo país

Foto EPA

Covid-19 – Onde estamos? Para onde vamos? O que fazer?

Por Felipe A. P. L. Costa [*]

Resumo. Encerramos o mês de abril com 85 mil casos e quase 6 mil mortes provocadas pela covid-19. Em 21/4, após quatro semanas de oscilações para baixo, a taxa de crescimento no número de novos casos passou a oscilar para cima. É uma situação preocupante, como alertei no artigo anterior. De hoje até o fim do mês de maio (31/5), mantido o ritmo atual, as estatísticas nacionais deverão totalizar entre 544 mil e 1,320 milhão de casos e entre 37,5 mil e 91 mil mortes. São números assustadores, mas repito o que escrevi em outro lugar: projeções como estas devem ser vistas como advertências, não como um palpite de loteria. Para frear essa nova escalada, sou de opinião que medidas de mitigação (e.g., distanciamento social e uso generalizado de máscaras) deveriam ser efetivamente adotadas em todo o país.

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  1. Onde estamos?

De acordo com o Ministério da Saúde, o país contabiliza agora 85.380 casos da covid-19, com 5.901 mortes. (Dos indivíduos que foram hospitalizados, 36 mil já teriam recebido alta.)

Os números foram divulgados hoje (30) à tarde.

As estatísticas anunciadas nas últimas 48 horas (hoje, ontem e anteontem) dão sustentação ao alerta que fiz em artigo publicado anteontem neste Jornal GGN – ver As estatísticas são ruins e, sem a adoção de medidas efetivas, irão piorar ainda mais.

Não é necessário repetir aqui tudo o que pode ser lido naquele artigo. O xis da questão, porém, seria o seguinte: em 21/4, após quatro semanas de oscilações para baixo (em quatro ‘ondas’: 21-30/3, 31/3-6/4, 7-14/4 e 15-20/4 – ver FIGURA 1), a taxa de crescimento no número de novos casos mudou de rumo e, pela primeira vez, passou a oscilar para cima [1]. (Sobre as possíveis causas de tal reversão – notadamente a omissão e o boicote deliberado que o Palácio do Planalto tem promovido contra as medidas de mitigação –, ver o artigo anterior.)

Nesse novo e ainda mais preocupante contexto (FIGURA 1, agregado E), os valores estão a oscilar entre 5,8% (26, domingo) e 10,4% (25, sábado). Ou, se ignorarmos as estatísticas do fim de semana (veja uma justificativa para isso no artigo anterior), entre 6,2% (21) e 9,2% (hoje).

FIGURA 1. Variação na taxa de crescimento diário no número de casos da covid-19 na população brasileira (eixo vertical; β expresso em porcentagem), entre 21 de março e 30 de abril. Quatro agregados de pontos foram identificados (A-D) e um quinto está em formação (E). As setas estão a representar algo como a direção e o sentido da força dominante dentro de cada agregado e a linha tracejada, algo como a trajetória média de todos os pontos. Em alaranjado, os resultados de março; em verde, os de abril; em vermelho, os resultados desde a publicação do artigo anterior (ver texto); os quadrados em azul correspondem a domingos.

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  1. Para onde estamos indo?

Vamos admitir – não sem alguma dose de otimismo – que estes dois percentuais balizariam os valores diários que a taxa de crescimento irá assumir nas próximas semanas. Não é algo de todo descabido, de sorte que vamos usar aqueles valores para fazer projeções a respeito da velocidade de disseminação da pandemia até o fim de maio. O percentual menor (6,2%) será usado para obter a projeção otimista e o maior (9,2%), a projeção pessimista [2].

A projeção otimista. A uma taxa de crescimento diário de 6,2%, o total de casos no país checaria a 543.982 até 31/5. (Lembre-se: são agora 85.380 casos e de hoje até o fim de maio o intervalo é de 31 dias.) Este número resultaria em 37.535 mortes, admitindo que a taxa de letalidade pare de subir e permaneça nos atuais 6,9%.

A projeção pessimista. A uma taxa de crescimento diário de 9,2%, o total de casos no país chegaria a 1.319.870 até o dia 31/5. Admitindo a mesma letalidade de antes, este número resultaria em 91.071 mortes.

  1. O que fazer?

Como escrevi em artigo de alguns dias atrás (Covid-19 – Ajustando e renovando o alerta para 30/4), projeções como as que constam do presente artigo devem ser vistas como advertências, não como um palpite de loteria.

Não custa lembrar: a covid-19 é uma doença contagiosa, como já deveria estar claro para todos os governantes e para os cidadãos ajuizados. Tudo o que o vírus precisa para persistir e se propagar em uma população de hospedeiros susceptíveis é que a parcela infectada mantenha contato com os indivíduos ainda não infectados.

Não sabemos a real dimensão do problema entre nós. (Com exceção talvez da Coreia do Sul e de alguns países insulares, acho que ninguém ainda sabe ao certo a real extensão do problema.)

Mas ouso dizer que duas coisas são absolutamente certas neste momento: (1) o distanciamento social é a única arma que temos disponível para frear a expansão no número de novos casos; e (2) se alguém tiver de ir à rua (e muitos têm), vá de máscara – na falta de uma máscara de verdade, uma camiseta amarrada no rosto já ajudaria. Não saía desprotegido nem seja um agente propagador do vírus.

Por fim, correndo o risco de chover no molhado: Tome cuidado com o que lê durante a pandemia. Há muita coisa interessante e instrutiva sendo produzida, mesmo no calor da hora. Tome particular cuidado com o que lê na imprensa brasileira [3]. Em caso de dúvida, penso que o Observatório da Imprensa, apesar das perdas e dos baques que sofreu nos últimos anos, continua a ser uma valiosa referência.

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Notas

[1] Para avaliar a disseminação da covid-19 (tanto em escala mundial como nacional), tenho calculado uma taxa de crescimento diário no número de indivíduos infectados com o SARS-CoV-2. Esta taxa (β) tem sido definida como β = ln [Y(t + 1) / Y(t)], onde Y(t + 1) é o número de indivíduos infectados no dia (t + 1); Y(t) é o número de infectados no dia anterior; e ln indica logaritmo natural. Para exemplos de como usar a fórmula, ver o artigo Covid-19 – O mundo, o país e a atropelada russa. Sobre padrões de crescimento numérico, ver as duas primeiras partes do artigo ‘Corpos, gentes, epidemias e… dívidas’ (aqui e aqui).

[2] Claro que as estatísticas e as projeções podem (e devem) mudar ao longo de maio, a depender do rumo que as coisas tomem. E isto está nas mãos não apenas dos governantes, mas pode depender também da ação organizada de todos nós. Fato é que os valores aqui referidos talvez venham a se revelar inadequados nos próximos dias. Se as coisas melhorarem, como em sã consciência todos nós ansiamos que melhorem, um valor de 6,2% pode se revelar alto demais para ser usado em uma projeção otimista. Por sua vez, 9,2% pode se revelar baixo demais para ser usado em uma projeção pessimista.

[3] O jornal Folha de S. Paulo publicou ontem (29) uma matéria que merece reparos – embora já tenha feito estragos, tendo sido acriticamente reproduzida em outros lugares, como no sítio Brasil 247 (aqui). Estou a me referir à matéria ‘Com aceleração da Covid-19, Brasil tem tendência pior que Itália, Espanha e EUA’, de Diana Yukari, Fábio Takahashi & Guilherme Garcia.

A comparação sugerida é inadequada. E induz leitores a erros e mal-entendidos. O ritmo da pandemia em terras brasileiras até poderia estar mais acelerado do que nos outros países citados (não está ou, ao menos, ainda não está), mas o modo de verificar isso não seria o modo usado na reportagem.

Se eu entendi bem – não sou assinante da FSP e não tive acesso ao texto completo –, o pressuposto por trás da reportagem seria o seguinte: as epidemias varrem os países durante um intervalo de tempo mais ou menos fixo. É um pressuposto equivocado, e suspeito que a sua origem não esteja propriamente na redação do jornal.

Suspeito que o equívoco tenha surgido em razão de um material produzido pelo Ministério da Saúde (Boletim Epidemiológico, n. 7, p. 8 – para a lista completa, ver aqui), no qual se discorre a respeito das etapas de uma curva epidêmica. A figura ali reproduzida, por sua vez, foi extraída e adaptada (a fonte é apropriadamente citada) de uma imagem contida em material produzido pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês), uma conceituada e atualmente desnutrida repartição do Departamento de Saúde do governo federal dos Estados Unidos. Vejamos agora como essa cascata de eventos pode ter resultado em uma matéria problemática.

Em primeiro lugar, cabe observar que o material original produzido pelo CDC estava a tratar de surtos de gripe. Trata-se de uma virose, como nós todos sabemos, mas gripe e covid-19 definitivamente são doenças diferentes. E o mais importante: até onde é sabido, o que estamos a viver hoje seria o primeiro surto em escala mundial (pandemia) da covid-19. A gripe está conosco há muito tempo e os seus surtos são tão recorrentes que já fazem parte até do calendário!

A lição que de fato nós poderíamos extrair de um exame dos surtos anuais de gripe seria tão somente o comportamento geral dessas curvas, não os seus detalhes. O aspecto delas, por exemplo, nos remete à famosa curva normal – ou curva em forma de sino ou ainda curva de Gauss, em alusão ao matemático alemão [Johann] Carl Friedrich Gauss (1777-1855).

Entre as características importantes de uma curva normal padrão, devemos atentar para dois: (1) trata-se é uma curva simétrica, com um lado esquerdo ascendente e um lado direito descendente; e (2) a separar os dois lados, há o topo da curva, que é único.

O aspecto da curva normal pode ser modificado de duas maneiras importantes. Podemos alargar a sua base (o que implicaria em baixar a sua altura) ou podemos elevar a sua altura (o que implicaria em estreitar a sua base).

A já famosa expressão achatamento da curva – expressão que ganhou o mundo em velocidade superior à do SARS-CoV-2 – é exatamente isso: um esforço social concentrado visando alargar a base e, por extensão, baixar a altura da curva. E baixar a altura visa impedir que a infraestrutura do país (ou cidades etc.) venha a ser sobrecarregada, a ponto de perder a sua funcionalidade (ver FIGURA 2).

Não há como baixar a altura sem alargar a base da curva. O que significa dizer que, ao “achatar a curva da covid-19”, nós estaremos também estendendo a duração do surto epidêmico. E mal ou bem, nós começamos a fazer isso em meados de março (com a suspensão de eventos públicos, interrupção de aulas etc.) – talvez um pouco antes, em algumas cidades.

FIGURA 2. Para que o país consiga achatar a curva A (surto epidêmico relativamente breve, mas com muitos casos por dia), transformando-a em D (surto prolongado, mas com poucos casos por dia), a taxa de crescimento no número de novos casos tem de retomar a sua trajetória declinante. Até o dia 21 de abril, o país estaria em uma situação intermediária, entre A e B, mas caminhando em direção à curva D. Nos últimos dias, a direção mudou. A taxa de crescimento, até então em tendência declinante (ver Fig. 1), passou a escalar e nós agora estamos caminhando em direção à curva A.

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Voltando à matéria da FSP, eu diria então o seguinte. Uma comparação mais apropriada entre os países levaria em conta a velocidade de disseminação da epidemia – e.g., quanto tempo foi necessário para que cada país chegasse aos 50 mil casos?

E, em uma comparação com Estados Unidos, Espanha e Itália, o Brasil ainda ficaria em último lugar. Veja: levamos 40 dias (usei estatísticas de ontem, 29) para saltar de 970 para 78.162 casos. Os Estados Unidos precisaram de apenas 16 dias para saltar de 994 para 86.379 casos; a Espanha saltou de 674 para 80.110 em 21 dias e a Itália, de 889 para 80.589 em 27 dias. (Para detalhes, ver artigo: Covid-19 – O mundo, o país e a atropelada russa.)

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Redação

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