Os Próximos Movimentos no Mercado de Celulares

Há cerca de um ano atrás, eu fiz a previsão de que a Microsoft iria comprar a Nokia. Ontem foram divulgados os detalhes do negócio. Essa não foi uma previsão do tipo cartomante, mas parecia um movimento lógico, então quero explicar o raciocínio por trás dessa previsão, e apresentar algumas outras, que na verdade não são previsões, mas possibilidades de movimento estratégicos das empresas. Mas para entender esses movimentos, precisamos primeiro analisar o mercado de telefones celulares e os sistemas disponíveis.

Os sistemas operacionais (SOs) para celulares nunca foram um problema para os fabricantes, por enquanto a função dos celulares eram fazer ligações e enviar mensagens. Uma única equipe de desenvolvimento com uma dezena de programadores dava conta de escrever o software dos aparelhos sem nenhuma dificuldade, pois a maior parte do código podia ser reaproveitado entre os diferentes modelos, então cada fabricante tinha o seu software, com suas características específicas. Porém, quando apareceram os smartphones, a coisa complicou, pois a agora função de um telefone não era só fazer ligações, mas os usuários queriam usar o telefone quase com as mesmas funcionalidades de um computador, ou seja, suportando os mesmos padrões de interface e comunicação e protocolos de mercado. Então a equipe necessária para desenvolver e manter o software dos telefones cresceu tanto em tamanho quanto em complexidade, e passou a exigir recursos e uma especialização que aumentou exponencialmente o custo dos fabricantes. Como a margem de lucro nessa área é bastante pequena, e os lucros são alcançados com o volume de vendas, esse novo custo simplesmente não cabia mais no modelo de negócio.

Porém havia uma solução à disposição: o Android. Um sistema operacional pronto, fabricado pela poderosa Google, e que poderia ser utilizado nos aparelhos. Apesar de toda a propaganda de ser um software gratuito, os fabricantes precisam licenciar o sistema para poderem utilizá-lo, mas ainda era mais barato e rápido do que montar toda uma equipe de desenvolvimento e produzir o seu próprio SO. Então todos os fabricantes migraram automaticamente para o Android, pois além de resolver seu problema, era a única solução viável disponível, e chegamos à situação que temos hoje, onde o Android é o líder absoluto do mercado, seguido pelo iOS e tendo como concorrente distante o Windows Phone.

Para continuar nossa análise, vamos agora entender melhor cada um desses sistemas e as principais empresas:

Apple

Foi a primeira empresa a investir nessa área, graças à genialidade e visão de futuro do Steve Jobs, e tem todo o crédito por isso. Fabrica os próprios telefones, e usa o sistema operacional iOS, desenvolvido por ela, e possui uma estratégia de marketing bastante agressiva, que faz com que seus usuários sejam fidelizados e defendam os produtos de forma algumas vezes até irracional. Mas tirando os mitos e paixões da análise, sobram os seguintes pontos:

  • A Apple não desenvolve hardware, apenas monta aparelhos. Os componentes eletrônicos são comprados de outras empresas, inclusive de concorrentes, como a Samsung. Então a possibilidade de uma inovação tecnológica trazida pela Apple é nula.
  • Seu ponto forte é o software, que na verdade tem o núcleo baseado no sistema Linux, com uma camada de interface com o usuário muito bem escrita, que garante sua melhor característica: a usabilidade. Você tira da caixa e usa, e tudo funciona de forma intuitiva e simples.
  • Porém, nem tudo são flores. Se você é um usuário avançado, e quiser fazer algo diferente com o seu iPhone, fica quase impossível, e os padrões utilizados pelo aparelho não são os de mercado, o que faz com que você tenha que comprar adaptadores para conexões, e tenha dificuldades extremas para se comunicar com qualquer coisa que não seja fabricada pela Apple. Outro problema são as aplicações. Apesar de existirem muitas na iStore, publicar uma aplicação para lá é complexo, caro  e difícil. Então você fica limitado ao que existe lá e ponto. Em compensação, o controle de qualidade é exigente, então as aplicações disponíveis são seguras e realmente funcionam.
  • Quanto ao modelo de negócio, vemos que a incompatibilidade de padrões não é por acaso, a Apple é monopolista ao extremo. Ela quer que você use o iPhone, compre um MacBook para poder se conectar a ele, use um iPad para navegar na Internet, veja seus filmes na AppleTV, compre músicas na iTunes e vídeos na iMovies, etc. Fugir desse padrão é considerado quase uma heresia.

 

Google

Tem o crédito de ter investido na produção do sistema Android, quando o mercado ainda não estava cristalizado. Com a compra da divisão de celulares da Motorola, passou a ser também fabricante de aparelhos, podendo competir em pé de igualdade com a Apple. Os principais pontos de seu sistema são os seguintes:

  • O Android é na verdade uma grande colcha de retalhos. Baseado completamente no código do Linux, com customizações para a interface com o usuário e acesso ao hardware, foi um sistema desenvolvido às pressas com releases sendo lançadas após pouquíssimos testes, tanto que em poucos anos já possui inúmeras versões no mercado. Parece que finalmente as últimas versões estão bastante estáveis e funcionais, mas exigem também um hardware bastante potente para rodarem sem problemas.
  • Em termos de usabilidade, não se compara ao iOS, mas tem o mérito de poder ser completamente customizado, existindo inclusive algumas versões completamente freeware, que podem ser baixadas da Internet e instaladas (por sua própria conta e risco, pois o processo pode travar seu aparelho). Quanto aos aplicativos, o Android é o oposto do iOS, pois existe uma infinidade de aplicativos, pagos ou não, que podem ser instalados, e publicar um novo aplicativo para o Google Play é tão fácil, que qualquer um publica o seu programa. Essa facilidade na verdade traz um problema, pois programas ruins ou defeituosos, vírus, backdoors e outros também são publicados, pois não existe processo de garantia de qualidade. A baixa qualidade dos programas pode acabar minando a credibilidade do sistema, pois o usuário só entende que seu aparelho travou, e não consegue distinguir o motivo.
  • Não tenho dados internos da Google, mas na minha visão, o maior problema deles é que desenvolver sistemas operacionais exige uma especialização técnica e de processos que leva tempo para ser alcançada. Mesmo que você contrate os melhores programadores e gerentes de projeto do mercado, precisa também de uma maturidade que só se alcança com o tempo.
  • O modelo de negócio da Google, pelo menos quanto ao Android, ainda é completamente separado da Motorola, com o licenciamento do sistema para ser utilizado por inúmeros fabricantes, que para a Motolora são concorrentes. Pessoalmente acho esse licenciamento um escândalo, pois a maior parte do código fonte foi desenvolvido sob a licença GPL, e não poderia ser licenciado. Mas como é a Google, a queridinha dos olhos, e o custo é embutido no preço do aparelho, o pessoal do código livre finge que não percebe nada de errado.

 

Microsoft

Esta é a segunda tentativa da Microsoft na área de SOs para celulares, e a primeira não deu muito certo. Apesar de ser primariamente um fabricante de SOs, a mudança de paradigma dos computadores desktops para os dispositivos móveis não foi completamente assimilada por sua equipe, e a primeira versão de seu sistema foi um fracasso completo, e com toda razão, pois o sistema era muito ruim. Nesta versão, parece que eles investiram para valer, e segundo alguns especialistas que avaliaram, é o melhor sistema operacional já desenvolvido para celulares, pelo menos na avaliação técnica. Porém, a principal avaliação no mercado de celulares não é a técnica, mas a do usuário final.

  • O Windows Phone tem a vantagem de possuir uma interface com o usuário que, em muitos pontos, é similar ao funcionamento do Windows, o que pode facilitar o seu uso, mas ainda é cedo para dizer se essa facilidade vai ser mais relevante do que a usabilidade do iOS.
  • Os aparelhos fabricados pela Nokia sempre estiveram entre os melhores e mais bem conceituados do mercado. Então se conseguirem manter a qualidade técnica e injetar investimentos, criando bons aparelhos, e um plano de negócios bem construído, deve voltar a aparecer como concorrente de verdade no mercado, coisa que não ocorre há bastante tempo.
  • O modelo de funcionamento da loja da Microsoft é um meio termo entre Google e Apple. Não é tão difícil publicar aplicativos, mas existe um controle de qualidade para isso. Além disso, a forma como o sistema foi construído permite que qualquer desenvolvedor de aplicativos para desktop possa desenvolver para Windows Phone, pois a linguagem, as ferramentas e os componentes são os mesmos. Isso pode facilitar a criação de novos aplicativos, mas isso só vai ocorrer quando alcançar uma posição relevante no mercado. Por enquanto, é quem possui menos aplicativos disponíveis, e depende de recursos da própria Microsoft para crescer.
  • O principal problema da Microsoft até agora era o modelo de negócio, pois os únicos fabricantes que tinha apostado no seu sistema eram a Nokia, e alguns modelos da HTC, então a possibilidade de alcançar uma fatia relevante do mercado era pequena. Agora com a compra da Nokia, a Microsoft pode investir pesado no hardware, conseguindo alavancar suas vendas. Tudo vai depender, porém, de outra mudança de paradigma, pois até hoje, a Microsoft era vendedora de software, e com essa mudança passa a vender também o hardware. Não é uma mudança qualquer, e a forma como ela acontece vai implicar no sucesso ou fracasso do negócio.

 

Samsung

A principal diferença entre a Samsung e os outros concorrentes é que ela não fabrica o SO, utilizando o Android em toda a sua linha de produtos. Isso cria uma limitação imensa para seu negócio, e uma dependência complexa com a Google, que hoje também é uma concorrente. Porém, essa situação já é bem conhecida na Samsung, pois todos os outros fabricantes dependem de componentes eletrônicos fabricados por ela, o que lhe dá um poder de barganha para conseguir manter essa situação, pelo menos atualmente.

  • Possui hoje, provavelmente, os melhores aparelhos do mercado, que quando utilizado com as novas versões do Android, formaram uma plataforma capaz de competir com o iPhone. Porém, manter a qualidade de seu hardware e ainda concorrer no preço com os outros fabricantes significa reduzir seu lucro, o que pode trazer problemas no médio prazo.
  • Apesar de ter poder de barganha para negociar com a Google, utilizar o Android traz um problema estratégico muito sério, que é depender da competência de outra empresa para garantir a qualidade dos seus produtos. Todo o seu negócio fica dependente da atuação de uma empresa sobre a qual, na verdade, você não tem nenhuma ingerência, e um erro estratégico da Google pode acabar com o seu negócio. Não é uma situação agradável, e apesar dos contratos que com certeza existem, deve tirar o sono de muitos executivos.

Posta essa análise sobre os principais players, é possível antecipar alguns movimentos, que devem ocorrer no mercado nos próximos anos. Essa é somente a minha visão neste momento, e com certeza vou errar a maioria dos pontos, mas segue assim mesmo:

  • A Microsoft vai investir pesado em novos lançamentos, e com uma certa dose de dumping, vai alcançar uma posição relevante e começar a incomodar a Apple e a Google. No médio prazo, pode ultrapassar a Apple e tomar a segunda colocação, mas a Google vai seguir como líder de mercado ainda por um bom tempo. Porém, o custo para a Microsoft alcançar essa posição serão investimentos massivos que podem rebaixar a avaliação da empresa no mercado.
  • A Apple vai voltar à sua posição de empresa elitizada, com bons produtos, mas caros, acessíveis somente a uma parcela da população e principalmente por questões ideológicas, mas vai continuar como um player relevante de mercado, podendo voltar ao topo se lançar outro produto inovador. Essa é uma posição bastante confortável para ela, pois apesar de não dominar o mercado, como sua margem de lucro é maior, o resultado da empresa pode ser igual ou melhor do que o dos líderes.
  • A Google vai continuar como líder, mas se não melhorar a questão da qualidade do seu sistema e dos aplicativos, pode começar a ter problemas sérios de estabilidade e segurança. Outro ponto de atenção é o relacionamento com os outros fabricantes (notadamente com a Samsung), pois para alavancar a Motorola, pode começar a priorizar seus produtos e canibalizar as parcerias. Considerando ser a única cuja posição de liderança depende de terceiros, um único grande fabricante que adote outro SO pode colocar em risco sua posição.
  • A Samsung vai continuar por enquanto utilizando o Android, mas no longo prazo, não consigo imaginar que ela mantenha essa situação. Provavelmente irá aparecer com um novo SO, nos mesmos moldes do Android, melhorado ou piorado. Outra posição é negociar com a Microsoft, pois a Apple nunca negociaria o seu diferencial, que é o iOS. Poderia também optar por manter as duas linhas (Android e Windows Phone), mas isso demandaria custos adicionais que a sua margem de lucro, já bem apertada, não conseguiria absorver.

Existe um motivo bem objetivo para toda essa movimentação nesse mercado: uma avaliação, a meu ver errônea, de que os tablets irão substituir os computadores (laptops ou desktops), e que os usuários irão utilizar o mesmo SO dos celulares nos tablets. Então quem dominar esse mercado dominará o também milionário mercado de computadores, substituídos pelos tablets. Acho em primeiro, que os tablets não vão substituir os computadores. Vão substituir computadores utilizados para navegar na Internet e ler e-mails, ouvir músicas ou ver filmes, mas a maior parte dos computadores, utilizados hoje em empresas, vão continuar sendo utilizados ainda por muito tempo. Também não acho que os usuários vão querer utilizar o mesmo SO nos celulares e tablets. Se os sistemas forem fáceis de usar e intuitivos, não existe essa necessidade. Se não forem, simplesmente não vão ser usados; então as próprias empresas trabalham contra esse movimento, quando tornam os seus sistemas mais fáceis.

De resto, há alguns anos, quando apareceram os primeiros smartphones, eu disse que um dia vamos chegar na empresa com nosso celulares, e eles vão se conectar automaticamente a uma teclado, mouse e display, e vamos utilizá-los como computador. Não poderia estar mais errado. A capacidade de processamento necessária para atender às nossas necessidades é sempre crescente, e um dispositivo móvel dificilmente vai substituir um fixo, embora possa executar uma boa parte de suas funcionalidades. Então quando um celular conseguir alcançar a capacidade de um desktop hoje, os desktops estarão tão mais à frente que não consigo sequer imaginar hoje sua capacidade.

 

 

 

 

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