Telecom: mudanças são necessárias, mas risco de estratificação é real

Jornal GGN – O setor de telecomunicações está em processo de profunda remodelação. A lei que o regulamenta é de 1997 e trata principalmente da importância econômica e social da telefonia fixa. De lá para cá, a telefonia móvel e a banda larga cresceram e se tornaram tão mais essenciais, tanto para a vida das pessoas quanto para o ambiente de negócios e o desenvolvimento da nação.

O regime público traz garantias de universalização da prestação de serviço, regramento tarifário, tempo máximo de instalação, um padrão mínimo de qualidade. Mas há 18, quase 19 anos, ao elaborar a legislação das telecomunicações, o governo entendeu que o serviço essencial seria apenas a telefonia fixa. Dessa forma, quando entraram no mercado, e na medida em que passaram a crescer em importância, a telefonia móvel e a banda larga estavam em regime privado. E em regime privado se desenvolveram. Ao ponto de se tornarem tão importantes (ou mais) para as atividades econômicas dos setores produtivos e para o dia a dia da população.

O que se seguiu foi uma natural diminuição na demanda por telefonia fixa. Só que, em regime público, as concessionárias têm a obrigação legal de manter a infraestrutura, mesmo que ela esteja sendo subutilizada. Além disso, outras operadoras entraram para disputar o mercado, em regime privado, sem todas as contrapartidas e atuando apenas nas localidades interessantes do ponto de vista comercial, o que se tornou um problema para a competitividade do setor.

Esses são os principais argumentos para retirar a telefonia fixa do regime público. E eles fazem sentido. O problema é que, em regime privado, e com uma economia estagnada, tudo que o governo tem é a promessa das operadoras de continuar a investir no desenvolvimento da prestação de serviços. Em regiões remotas, periféricas e de baixa renda o risco de estratificação social é real. E o setor de telecomunicações é fundamental para o desenvolvimento econômico e social.

O Jornal GGN conversou com Samuel Possebon, editor da Teletime, uma publicação especializada que há 20 anos cobre a indústria de telecomunicações. Ele explicou as particularidades dos regimes público e privado, abordou aspectos conceituais do problema, falou sobre a questão da arrecadação dos governos estaduais – que têm grande dependência do ICMS das telecomunicações – e sobre a necessidade de investimentos do governo federal caso queira levar a cabo a mudança de modelo regulatório, entre outros assuntos.

Abaixo, os principais trechos da entrevista:

Qual sua opinião sobre essas propostas que vêm flexibilizar os serviços de telecomunicações e acabar com o regime público da telefonia fixa?

Essa discussão sobre o modelo de telecomunicações já existe há alguns anos. Não é desse ano nem do ano passado. Há pelo menos uns dez anos a gente já fala da necessidade de rever esse modelo.

Essa necessidade se dá por duas razões. A primeira é que o modelo foi estabelecido na época da Telebras e decorre de uma visão que se tinha de que a expansão dos serviços de telecomunicações se daria, sobretudo, na telefonia fixa e que aquele era o serviço essencial e que tinha que ser universalizado para a população.

Essa era a percepção na época. Uma época em que se pagava aqueles planos de expansão e eles tinham valores absurdos, em que as pessoas declaravam linha de telefone no imposto de renda, uma linha telefônica custava alguns milhares de dólares, em que as pessoas ficavam na fila para pagar, tinha ficha de telefone, orelhão.

O problema que a privatização vinha resolver era, primeiro, caixa para o governo, o governo precisava vender empresas para ter dinheiro; e segundo é que realmente o país tinha uma carência muito grande de infraestrutura de telecom.

Então se estabeleceu o modelo que privilegiava resolver o problema da telefonia fixa. Só que rapidamente ficou claro que a prioridade estratégica que tinha sido definida na época, em 1997, com a Lei Geral de Telecomunicações – que foi feita justamente para dar o marco regulatório para a privatização – estava defasada tecnologicamente, em relação aos produtos e os serviços que estavam se desenvolvendo.

Porque logo no início dos anos 2000, você já começou a ver um crescimento expressivo, muito significativo, da telefonia móvel. A banda larga também começou a se desenvolver. E em questão de poucos anos, não mais do que cinco anos, você já tinha um retrato claro de que o mercado de telecomunicações não era um mercado cujo serviço essencial era a telefonia fixa.

O serviço essencial era a telefonia móvel e a internet…

Exato. Na vida das pessoas os serviços essenciais eram esses. O modelo não proibia que esses serviços fossem prestados, mas por outro lado também não tinha nenhum estímulo para que eles se universalizassem e atendessem às necessidades básicas dos cidadãos como a telefonia fixa tinha.

Eles estavam em regime privado, ao contrário da telefonia fixa, que estava em regime público e tinha metas de universalização, modicidade tarifária…

Exatamente. O que define o serviço púbico, como você bem observou, é a universalização, o regramento tarifário. O conceito de modicidade tarifária não se aplica muito a telecomunicações como no setor de energia, mas tem um regramento tarifário, tem uma definição de tarifas a partir da atuação do regulador.

E o outro aspecto que define o caráter da concessão é a universalidade do serviço. Ele tem que estar presente e disponível para qualquer cidadão, essa é a primeira característica. E a segunda característica é que o governo, o Estado, tem que assumir a responsabilidade daquele serviço no caso de a prestadora deixar de fazer. Então, o cidadão tem a garantia que ele nunca vai deixar de ter o telefone fixo.

Só que se você pergunta para qualquer pessoa hoje se ela prefere ter um telefone fixo, ou prefere ter um telefone móvel, ou prefere uma banda larga, certamente ela não vai responder o telefone fixo. Muito provavelmente ela vai preferir o telefone móvel ou a banda larga.

Isso logo ficou claro. Só que o modelo já estava desenhado, tinha que se desenvolver, o governo também estava buscando desenvolver mais competição, estava de alguma maneira já comprometido com o plano que estava desenhado e desde então, já se passaram 18 anos, o modelo vigente é esse.

Então, o progresso, agora, estaria em trazer a telefonia móvel e a banda larga para o regime público? O que a gente está vendo é o contrário, é a telefonia fixa indo para o regime privado…

Aí já começa a ter um ponto de divergência de visões. Sobre como você deve conduzir um modelo econômico, que vai depender do interlocutor.

Se o modelo estivesse sendo desenhado neste momento, mas a gente estivesse em 1997, talvez o que fizesse sentido seria estabelecer desde o começo um regime de prestação de serviço público, seja para telefonia móvel, seja para banda larga. Faria sentido buscar desenvolver aquilo.

Mas o fato é que ao longo desses 18 anos, a iniciativa privada e o modelo privado fizeram com que tanto o serviço de telefonia móvel quanto o serviço de banda larga se desenvolvessem razoavelmente. A cobertura da telefonia móvel é praticamente universal, ou se não é universal, ela abrange uma parte muito significativa da população brasileira. Eu diria que mais de 95% da população brasileira é coberta por telefonia móvel.

E a banda larga também vem caminhando, com um ritmo bastante mais lento, mas vem caminhando, num sentido de expansão. Foi o único serviço de telecomunicações, por exemplo, que nesse período de crise não viveu uma retração. Todos os serviços de telecomunicações passaram por uma retração durante esses dois últimos anos e o serviço de banda larga fixa continuou se desenvolvendo.

Então, existe argumento para dizer que a iniciativa privada e o regime privado foram suficientes para fazer o desenvolvimento tanto do mercado de banda larga quanto do mercado de telefonia móvel. E que, portanto, mostrou-se mais exitoso seguir um modelo privado do que um modelo público.

Qual seria o benefício de ter feito no regime público?

Todos os esforços de investimento de universalização que você já fez até agora teriam sido feitos com o serviço que realmente interessa para a população. E aquele serviço que é essencial e extremamente relevante para as pessoas teria garantia de continuidade e garantia de prestação.

Que garantias são essas?

Se uma empresa quebrar – uma hipótese que 18 anos atrás era praticamente impensável, mas hoje é bastante concreta, com a recuperação judicial da Oi, por exemplo – o governo tem que assumir aquela empresa e continuar prestando o serviço. Essa é uma garantia.

A outra garantia é que a regulamentação prevê que as empresas têm que atender em todas as localidades do país, em todos os municípios e em um determinado nível padrão de atendimento.

Então, em qualquer cidade do país que você estiver e você quiser ter um telefone fixo, você tem que ser atendido em um determinado período, que é estabelecido pela regulamentação, e a concessionária é obrigada a te atender. Não existe a opção de ela dizer que não tem rede instalada, ou não tem mais capacidade para te atender, ou que só vai te atender daqui a três meses. Ela precisa te atender em um determinado parâmetro, que é garantido por lei.

Então, além da continuidade do serviço, que o Estado é obrigado a garantir, além do controle tarifário, que o Estado é obrigado a exercer, ela ainda tem essa obrigação de te atender de uma maneira universal.

Ela não pode dizer não, ela tem que prestar o serviço…

Não tem hipótese de ela dizer não. Se disser não, ela não está cumprindo o compromisso de universalização.

E isso é viável economicamente?

Aí é que começa o problema. Era viável até o momento que as pessoas usavam o telefone fixo. Hoje, as pessoas estão usando cada vez menos o telefone fixo, as receitas com o telefone fixo estão caindo. As pessoas estão deixando de contratar o serviço, mas a concessionária é obrigada a manter a infraestrutura, a manter a rede lá.

Então, aquela rede está começando a dar mais despesa para a empresa e menos receita?

Exatamente. Uma rede que ao longo do tempo foi muito lucrativa, muito lucrativa mesmo. Porque a condição para prestar o serviço era boa. A concessionária cobrava a assinatura básica, que é uma tarifa que você paga mesmo que não use o telefone. A assinatura básica teve épocas que estava R$ 40. Significa que para ter um telefone fixo você pagava R$ 40 mesmo que você não usasse. Era uma assinatura que fazia parte do pacote básico. Então, sempre foi um serviço muito rentável.

E o governo complementava de alguma forma? Ou era só o consumidor que garantia a receita da concessionária?

Só o usuário. O governo nunca entrou com nenhuma forma de aporte financeiro na telefonia fixa. Nem na forma de subsídio, nem na forma de recursos para incentivar, nada disso. Sempre foi prestado 100% com recursos da iniciativa privada.

Mas para eles era muito rentável. Enquanto todos os serviços de telecomunicações têm uma margem pequena, da ordem de 15%, 10%, o serviço de telefonia fixo tinha mais 40%, 50% de margem.

Então, para eles, era um negócio muito vantajoso. Não dá para dizer que eles entraram em um negócio ruim. Nunca foi ruim, sempre foi bom. Principalmente no começo, logo depois da privatização.

Ele começou a ser ruim, começou a sinalizar que seria um negócio ruim, de cinco, dez anos para cá. Porque as pessoas passaram a desconectar o telefone, não querem mais o número fixo, a concorrência das empresas que prestam telefonia fixa pelo regime privado começou a crescer. Então, empresas como a NET, a GVT, começaram a avançar nesse mercado, com outros planos de negócios, com outros planos tarifários muito mais interessante.

E com outros serviços no pacote…

Com outros serviços agregados! Vendendo combo de banda larga, com telefone fixo e TV por assinatura, por exemplo.

Então, eles começaram a avançar nisso e as concessionárias de telefonia fixa foram vendo as suas margens caírem, as bases de assinantes caírem, o custo dos serviços aumentarem, porque as redes foram ficando velhas, tem que fazer mais investimento para manter aquela rede. E eles por lei são obrigados a manter a rede disponível e pronta para atender a população caso ela venha a precisar.

A empresa privada que entra no ramo de telefonia fixa disputa em condições iguais com a concessionária?

Não. Porque ela presta serviço de telefonia fixa no regime privado, não presta no regime público. Então, ela não é obrigada a atender regiões que financeiramente não são interessantes, não precisa manter telefone público (orelhão), não precisa submeter seu plano de negócios para a Anatel aprovar a tarifa que ela vai cobrar, nada disso. Ela tem liberdade plena para prestar o serviço como ela quiser.

Então, o que está no centro da mudança na Lei Geral das Telecomunicações é acabar com o regime público para desobrigar a concessionária de prestar um serviço que não tem mais demanda?

Exatamente. Esse é o argumento que no fundo da discussão está sendo colocado.

Mas qual é o plano maior? É isso. Mas você tem ainda as concessionárias de telecomunicações desinteressadas de continuar prestando esse serviço, mas também não querendo assumir nenhum ônus regulatório de ter que prestar algum outro serviço em regime público. Elas não querem, por exemplo, que transforme a banda larga ou a telefonia móvel em serviços prestados em regime público. Porque elas entendem que são serviços que estão sendo bem prestados pela iniciativa privada.

O que elas concordam e até pedem que aconteça é que o governo subsidie ou financie a prestação dos serviços privados em áreas não rentáveis. Então, se você tem regiões remotas, ou periféricas, ou de baixa renda, mas tem uma demanda por banda larga – porque é um serviço essencial hoje, é um serviço que todo mundo quer ter – o que as empresas dizem é que elas querem prestar o serviço em regime privado e querem que o governo ajude subsidiando, ou desonerando, ou tirando imposto.

E o governo consegue pensar em dar esse subsídio agora, nesse momento de crise fiscal?

De jeito nenhum. Então, esse é outro problema. O governo não tem a menor condição de desonerar nada nesse momento. Seria virtualmente impossível imaginar agora que o governo abrisse mão. E eu não digo nem o Governo Federal. O Governo Federal até fez um esforço de desoneração grande nos últimos três, quatro anos, para construção de infraestrutura de telecomunicações.

Mas os governos estaduais, com essa crise de arrecadação…

O problema são os governos estaduais. O ICMS hoje é arrecadado sobre combustível, energia e telecomunicações. Daí é que vem o grosso do dinheiro. Se você tira o ICMS de telecomunicações, os governos estaduais, que já estão quebrados, ficam em uma situação econômica inadministrável.

E isso está na pauta também, reduzir as alíquotas de ICMS para o setor de telecomunicações?

Todo mundo fala que é preciso rever o modelo tributário do setor de telecomunicações. Todo mundo reconhece que o modelo tributário de telecomunicações onera demais o consumidor. Porque em alguns estados a carga tributária passa de 50%. Por conta do ICMS, que os estados vêm aumentando, por conta do peso que isso tem na prestação do serviço.

A gente sabe que os estados não vão abrir mão dessa arrecadação. Então, todo mundo diz que precisa que fazer, mas ninguém sabe como fazer. E não tem um estado também, um governador, que chame no peito e diga “vamos lá, vamos rever o modelo, criar um outro tipo de imposto para telecomunicações, vamos diminuir para que ganhe no crescimento de volume”, ou qualquer coisa desse tipo.

Não tem nenhuma proposta?

Nenhuma. Zero. Nenhum governo estadual está sequer cogitando fazer isso. Pelo contrário, o que eles fizeram foi aumentar.

Quer dizer que eles estão aumentando a tributação de um setor que está perdendo receita?

Eles estão aumentando porque estão quebrados. Isso aconteceu com telefonia móvel, com TV por assinatura, com banda larga. Todos esses serviços tiveram, em alguns estados, aumento de ICMS nos últimos 12 meses. Porque os estados precisam aumentar arrecadação desesperadamente.

Então, um setor que já está perdendo base – porque a crise realmente afetou, principalmente a telefonia fixa, mas afetou a telefonia móvel também, afetou as TVs por assinatura – é ainda mais afetado com o aumento da carga tributária nos estados. Os estados estão completamente insensíveis e sem nenhum interesse em discutir qualquer tipo de desoneração.

E o que isso significa para as teles?

Aumenta cada vez mais a pressão em cima delas do ponto de vista de receita. Você tendo uma carga tributária desse tamanho você perde competitividade, perde condições de crescer, fica mais suscetível a crises.

E cresce a pressão sobre o governo justamente para rever o modelo. Porque para as empresas, se o negócio começa a ficar muito ruim, elas passam a diminuir investimentos, não conseguem fazer o volume de investimentos que pretendiam fazer.

Por exemplo, grupos como América Móvil, este ano, vão reduzir mais de 20% os investimentos que faziam nos outros países. Grupo Oi, que está em uma situação econômica bastante delicada, bastante frágil, está prevendo investir nos próximos três anos menos do que investiu no ano passado.

E tirando a telefonia fixa do regime público você ajuda as empresas a conter gastos?

Dá um alívio para as concessionárias. Porque elas deixam de ter uma série de obrigações e conseguem prestar o serviço de uma maneira mais flexível.

Mas por outro lado, aí você tem um outro problema dessa história toda. A prestação de serviço em regime público – como tem a questão de o governo voltar a prestar o serviço caso a empresa vá à falência – ela está toda lastreada em um negócio chamado bens reversíveis. Que são os ativos, os bens que as operadoras têm, que fazem parte da infraestrutura delas, que precisam retornar para a União, precisam retornar para o Estado, caso elas deixem de prestar o serviço.

Então, toda a rede de telecomunicações que hoje dá suporte para a telefonia fixa, por exemplo, a rede que chega na sua casa com os fios de cobre, as centrais telefônicas…

Isso é patrimônio da União?

Não é patrimônio da União, é um bem reversível. É patrimônio da concessionária, ela tem a propriedade sobre esses bens, mas eles precisam retornar para a União no caso de o contrato ser encerrado ou de a empresa não ter mais condições de prestar o serviço.

E isso é um problema por quê?

Porque ninguém sabe como fazer essa conta.

A empresa não pode simplesmente vender ativos para fazer caixa…

Não pode. Primeiro, ela não pode vender ativos para fazer caixa porque alguns desses ativos são retornáveis e sendo retornáveis o governo tem controle sobre eles. Então, qualquer transação que envolva esses ativos é preciso que peça autorização para o governo.

E se você for fazer… digamos que amanhã vá passar a prestar o serviço em regime privado. É preciso fazer uma conta de quanto valem esses ativos. Porque esses ativos seriam de direito da União no final do contrato.

Então, já que você não vai ter mais o contrato, tem que refazer essa conta e ver quanto vale isso. Porque aí a União pode cobrar das empresas esse valor, ou o valor que ainda não estiver amortizado desses bens reversíveis, seja na forma financeira, seja na forma de compensação de prestação de serviços de outra natureza. Você pode pedir para que as empresas prestem serviços privados como uma obrigação regulatória, isso pode acontecer.

Você precisa fazer esse encontro de contas, esse cálculo, que pode inclusive dar desfavorável para o governo. De repente, você pode fazer essa conta e descobrir que esses ativos hoje já foram amortizados e que o governo na verdade é que deve para as empresas pelo investimento feito.

O que é pouco provável. É muito provável que esses ativos tenham um valor em favor do governo. O TCU [Tribunal de Contas da União] já fez uma conta e estima em mais ou menos R$ 17 bilhões em bens reversíveis. Tem gente que fala que vale R$ 60 bilhões. Tem gente que fala que vale R$ 40 bilhões. Mas é muito controvertido porque não existe, hoje, um controle de quais sejam esses bens. Não existe uma lista de bens reversíveis que seja fiscalizável. É um volume absurdo.

Esses ativos não têm inventários?

O inventário é desatualizado. Não é claro o critério que se aplica. Se esses ativos devem ser contados só da maneira patrimonial ou se devem ser contados da maneira contratual. Por exemplo, se você tem um contrato com uma empresa de satélites, e aquele satélite é essencial para prestar o serviço, mas não é seu, como é que faz? Esse contrato é reversível ou é o satélite que é reversível, mesmo não sendo seu?

Não é uma conta trivial de ser feita. Na eminência que a gente está de uma revisão do modelo, essa conta começa a ser feita, há uma pressão grande para que essa conta comece a ser feita. E uma dificuldade muito grande de se encontrar um modelo que todas as partes concordem.

É uma discussão longa, complexa, cheia de interesses, porque obviamente as empresas têm interesse de desvalorizar ao máximo esses ativos e o governo tem interesse de valorizar ao máximo. Não é uma coisa simples de você fazer, essa transformação de modelo.

E você tem que definir ainda o que você quer como política pública. Se você vai querer expandir a banda larga, por exemplo, que recursos você vai aportar ali? São só os recursos dos bens reversíveis? Só os recursos dos fundos setoriais? É dinheiro do orçamento que vai entrar? Como que você vai fazer essa conta?

E quais são as políticas que você quer? Você quer universalizar a banda larga? Quer baratear a banda larga? Quer que ela seja decidida pela própria dinâmica do mercado, pela livre iniciativa? A definição dessas políticas ainda está muito crua…

O senhor arriscaria alguma previsão?

Eu acho que no contexto desse governo, eles vão tomar uma decisão mais pró-mercado, ou seja, prestação do serviço em regime privado, com menos obrigações do que você poderia esperar em um governo de esquerda, ou no governo da Dilma. A tendência é que vá por aí. Mas juridicamente também a coisa ainda é muito controvertida. Você vai ter disputas judiciais.

Mesmo esse governo vai brigar com o mercado na justiça?

Com certeza.

E quais são os prós e os contras dessa postura em favor do mercado? A população corre o risco de ficar sem o serviço?

Não. A gente já passou do ponto de a população ficar sem o serviço, até porque existe uma atratividade econômica. Mas você corre o risco de ter uma estratificação do serviço em cidades de baixa renda e de pouco interesse econômico. Então, talvez nessas cidades o serviço seja prestado em condições que não são as mais acessíveis. Talvez o serviço seja mais caro, talvez seja prestado em condições menos interessantes para o usuário, ele não tem a garantia da prestação desse serviço.

Você vai ver, com certeza, situações em que o usuário não vai conseguir ter o serviço no tempo que ele quer. Enfim, todos os benefícios que você tem hoje em um serviço prestado em regime público, você vai deixar de ter garantias legais de que esse serviço vai ser prestado no regime privado. Você fica muito mais suscetível à vontade das empresas.

Quais são os benefícios?

Supostamente, você vai ter um mercado mais competitivo, vai ter as empresas mais livres para prestar essa oferta. E se você fizer uma boa amarra regulatória, com boas garantias regulatórias da prestação do serviço, você pode ter mais espaço para que os serviços venham com mais inovação, mais dinamismo, que as empresas modernizem suas redes, suas infraestruturas, tragam um pouco mais de frescor para esse serviço que hoje é prestado como obrigação e que elas não têm interesse de oferecer.

Então, é uma questão realmente conceitual sobre o que você quer para o futuro do país. Se você quer um país em que as coisas funcionem com base no interesse da iniciativa privada, ou se quer um país com maior direcionamento econômico a partir da intervenção estatal, seja regulatória, seja política.

Essa é uma discussão que está no fundo dessa história. E tem também a discussão do cenário econômico, que é desfavorável, hoje, para investimento. Então, se você vai para a iniciativa privada e dá à iniciativa privada a liberdade de prestar o serviço, você tem a promessa, mas não quer dizer que isso vai ser cumprido, de que você vai ter mais investimentos. E talvez com isso você tenha um alívio na sua situação financeira. Lembrando que você vai ter menos instrumentos para cobrar a iniciativa privada. Então, esse é um risco.

E no final das contas tem que ver quanto o governo está disposto a botar de dinheiro nessa história. Porque tem regiões do país que não são atrativas economicamente. E o mercado não vai fazer. Nenhuma empresa vai fazer um investimento em uma rede de fibra ótica, ou de 4G, ou de TV por assinatura no rincão da região amazônica.

E aí não é só o consumidor pessoa física que sai prejudicado. Há o desenvolvimento econômico e social para se levar em consideração…

É óbvio. Porque telecomunicação é insumo para tudo. Não existe uma área da economia que não tenha uma dependência brutal do setor de telecomunicações. Nenhuma atividade econômica se desenvolve sem telecomunicações. É tão essencial quanto energia elétrica, tão essencial quanto água. Mas é o único serviço que hoje é prestado sem participação do Estado.

Quer dizer, tem um pouco de participação do Estado, por meio da Telebras, mas é muito marginal, muito pequena, no mercado de telecomunicações. O Estado tem uma presença muito forte como financiador das concessionárias. O BNDES fez investimentos muito importantes das empresas ao longo desses anos e é inclusive um dos credores da Oi nesse processo de recuperação judicial que a empresa está enfrentando. O Banco do Brasil idem, a Caixa idem. Então, tem dinheiro público no setor de telecomunicações, não dá para dizer que não tem. Mas é um dinheiro que veio na forma de dívida, não na forma de atuação direta no setor.

Mas quando a gente fala de levar tudo para o serviço privado, você precisa não só ter a garantia de que a população será atendida, como você necessariamente vai ter que ter mais investimento público nesse setor. Quanto o Estado está disposto e tem condições de fazer de investimento a gente não sabe. Ainda mais na situação econômica que a gente se encontra.

Quer dizer, o país precisa voltar a crescer para que possamos ter qualquer horizonte positivo para o setor…

Exatamente. Não tem remédio.

E a Oi quebra?

Eu acho que ela é grande demais para quebrar. É uma empresa que está presente, hoje, em 26 dos 27 estados, como concessionária de telefonia fixa. É a única prestadora de telecomunicações em muitos municípios brasileiros. E ela tem uma importância social imensa, tem uma importância sistêmica, porque ela também é provedora de insumos de telecomunicações para as outras concorrentes. Ela chega com redes em lugares que as concorrentes não chegam e as concorrentes precisam dessa rede dela para chegar nesses lugares.

Se ela quebra ou se ela deixa de operar, ela traz um risco sistêmico para o setor de telecomunicações muito grande. Tem um colapso. Ela é grande demais para quebrar.

Então, ela precisa ser salva, não tem saída…

A saída é os credores abrirem mão de parte da dívida, é os acionistas deixarem de pensar só nos seus interesses e permitir que a empresa sobreviva. Espero que o governo não precise colocar dinheiro nisso, mas ele está muito atento ao que está acontecendo para não deixar a empresas entrar em parafuso mais do que ela já entrou.

Mas o governo como credor provavelmente vai perder dinheiro nessa negociação também. Já emprestou dinheiro e, como todo mundo que emprestou dinheiro para a Oi, vai perder esse dinheiro.

Algo a acrescentar? Uma opinião pessoal?

Eu nem gosto muito de dar minha opinião pessoal, mas o país vive um governo que tem uma visão liberal da economia e eu acho que vai caminhar para esse sentido. Esse é o encaminhamento que está tendo. Com todos os prós e contras.

Mais prós ou mais contras?

Pessoalmente, eu penso que se você tiver um ambiente regulatório forte, com uma agência reguladora que consiga fazer o seu papel com independência, não sendo nem capturada pelo governo de plantão e nem capturada pelas empresas que ela regula, uma agência que consiga fazer o trabalho tecnicamente qualificado, você não corre muitos riscos, porque o setor de telecomunicações tem vivido da iniciativa privada nos últimos 18 anos. Fora o dinheiro que foi emprestado pelo governo, que aí é outra história. Mas a atuação tem sido predominantemente privada.

Então, eu acho que esse risco a gente não corre. Mas é preciso atenção e é preciso que tenha um acompanhamento, porque o setor de telecomunicações é essencial para qualquer área da atividade econômica e social no país e no mundo. Não dá para bobear e achar que isso daqui é um mercado de quindim. Não é um mercado de quindim, é um negócio que muda muito a vida das pessoas.

Redação

2 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Salvo engano,

    quando a British Telecom foi privatizada, a medição do custo para seus clientes foi estabelecida em bits. A partir disso, essa teleco substituiu a sua antiga rede semi-digital por rede digital, o que provavelmente permitiu que a dita pudesse implantar outros serviços digitais. 

  2. Ótima matéria.

    Matéria importante para esclerecer os riscos de estratificação social caso o setor de telecomunicações não seja discutido com seriedade merecida, ou seja, levando em consideração a importância das telecomunicações para o desenvolvimento social e não do interesse de crescimento corporativo de algumas empresas.  

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador