A privatização do mundo, por Robert Kurz

Enviado por Sérgio T.
 
Do Resistir.info
 
A privatização do mundo

por Robert Kurz [*]

Robert Kurz

É de supor que a natureza já existisse antes da economia moderna. Daí o facto de a natureza por si própria ser grátis, sem preço. Isso distingue os objectos naturais sem elaboração humana dos resultados da produção social, que já não representam a natureza “em si”, mas a natureza transformada pela actividade humana. Esses “produtos”, diferentemente dos objectos naturais puros, nunca foram de livre acesso; desde sempre estavam sujeitos, segundo determinados critérios, a um modo de distribuição socialmente organizado. Na modernidade, é a forma da produção de mercadorias que regula essa distribuição no modo do mercado, segundo os critérios de dinheiro, preço e procura (solvente). Mas é um problema antigo que a organização da sociedade tenda a obstruir também o livre acesso a um número crescente de recursos pré-humanos da natureza. Essa ocupação traz, das mais diversas formas, o mesmo nome que os produtos da actividade social, a chamada “propriedade”. Ou seja, acontece um quiproquó: outrora livres, os objectos naturais não elaborados pelo ser humano são tratados exactamente como se fossem os resultados da forma de organização social, e daí submetidos às mesmas restrições.

A mais antiga ocupação dessa espécie é a da terra. A terra em si não é naturalmente o resultado da actividade produtiva humana. Por isso também teria de ser, em si, de livre acesso. Quando muito, a terra já transformada, lavrada e “cultivada” poderia estar submetida aos mecanismos sociais; e, nesse caso, teria de se tornar propriedade daqueles indivíduos que a cultivaram. Mas, como se sabe, não é exactamente esse o caso. Justamente a terra ainda de todo inculta é usurpada com violência. Já na Bíblia há a disputa entre lavradores e criadores de gado por território (Caim e Abel) e, entre os pastores nómadas, por “pastos mais férteis”. A usurpação do solo “virgem” é o pecado original e hereditário da “dominação do homem sobre o homem” (Marx). As aristocracias de todas as altas culturas agrárias repressivas se formaram na origem por essa apropriação violenta da terra, literalmente à clava e dardo. Contudo a propriedade nas culturas agrárias pré-modernas nem de longe se parecia com a propriedade privada no sentido atual. Isso significava, antes de tudo, que a propriedade não era exclusiva ou total. A terra podia ser utilizada e cultivada também por outros, que em troca pagavam certos tributos (a renda feudal na forma de víveres ou serviços) aos proprietários, estes originariamente violentos. Mas havia ainda possibilidades de uso gratuito. Por exemplo, em muitos lugares, os camponeses tinham a permissão de conduzir seus porcos até às terras incultas do senhor feudal, segar ali forragens crescendo livremente ou recolher outras matérias naturais. Diferentes possibilidades de uso livre nunca deixaram de ser controversas, como o direito à caça e à pesca. Quando os senhores feudais tentavam estabelecer proibições nesse sentido, estas quase nunca eram obedecidas. Assim, o caçador e o pescador ilegais passaram a figurar entre os heróis da cultura popular pré-moderna.

A DITADURA DA PROPRIEDADE

A propriedade privada moderna reforçou monstruosamente a submissão da natureza “livre” à forma da organização social, obstruindo assim o acesso aos recursos naturais com um rigor nunca visto. Essa intensificação da tendência usurpadora tem sua razão no facto de a ocupação ser efectuada agora não mais pelo acto pessoal e imediato de violência, mas pelo imperativo económico moderno, representando uma violência “coisificada” de segunda ordem. A violência armada imediata manifesta-se ainda hoje na ocupação dos recursos naturais, mas ela é já coisificada de forma institucional na própria figura da polícia e do Exército. A violência que sai dos canos das espingardas modernas já não fala por si mesma; ela tornou-se mero agente do fim em si mesmo económico. Esse deus secularizado da modernidade, o capital como “valor que se autovaloriza” incessantemente (Marx), não aparece, porém, apenas na figura de uma coisificação irracional; ele é ainda muito mais ciumento que todos os outros deuses antes dele. Por outras palavras: a economia moderna é totalitária. Ela tem uma pretensão total sobre o mundo natural e social. Por isso, tudo o que não está submetido e assimilado à sua lógica própria é para ela fundamentalmente uma espinha na garganta. E, como sua lógica consiste única e exclusivamente na valorização permanente do dinheiro, ela tem de odiar tudo o que não assume a forma de um preço monetário. Não deve haver nada mais debaixo do céu que seja gratuito e exista por natureza. A propriedade privada moderna representa somente a forma jurídica secundária dessa lógica totalitária. Ela é, por isso, tão totalitária quanto esta: o uso deve ser um uso exclusivo. Isso vale particularmente para os recursos naturais primários da terra. Sob a ditadura da propriedade privada moderna, não é mais tolerado nenhum uso gratuito para a satisfação das necessidades humanas, além das oficiais: os recursos têm de servir à valorização ou ficar em pousio. Dada a forma da propriedade privada, mesmo a parte da terra que o próprio capital não pode de modo nenhum usar deve ser excluída de qualquer outro uso. Essa imposição descabida suscitou repetidas vezes o protesto social. Na época anterior a 1848, uma experiência crucial para o jovem Marx, amiúde enfatizada na sua biografia, foi a discussão em torno da “lei prussiana contra o roubo de lenha”, que queria proibir os pobres de recolher gratuitamente a lenha nas florestas. O conflito sobre o uso livre de bens naturais, sobretudo da terra, jamais cessou em toda a história do capitalismo. Mesmo hoje, em muitos países do Terceiro Mundo, há movimentos sociais de “ocupantes da terra” que colocam em questão a ditadura totalitária da propriedade privada moderna sobre o uso do solo.

No desenvolvimento do moderno sistema produtor de mercadorias, o problema primário do acesso a recursos naturais gratuitos foi sobrepujado pelo problema secundário do acesso a recursos “públicos”, directamente relacionados ao todo da sociedade: as chamadas infraestruturas. Com a industrialização capitalista e a inerente aglomeração de massas gigantescas de seres humanos (urbanização), surgiram carências sociais, tornando necessárias medidas que não podiam ser definidas pela lei do mercado, mas somente pela administração social directa. Por um lado, trata-se agora de sectores inteiramente novos, resultantes do processo de industrialização, como o serviço público de saúde, as instituições públicas de ensino (escolas, universidades, etc.), as telecomunicações públicas (correio, telefone), o abastecimento de energia e os transportes públicos (caminho de ferro, metropolitano, etc.). Por outro lado, também os recursos naturais antes livremente acessíveis sem nenhuma organização social e os processos vitais humanos que se efectuam por si mesmos tiveram de ser socialmente organizados e colocados sob a administração pública: é o caso do abastecimento público de água potável, da recolha pública de lixo, dos esgotos públicos etc., chegando aos sanitários públicos nas grandes cidades. Sob as condições do moderno sistema produtor de mercadorias, a “administração de coisas” pública e colectiva não pode assumir senão a forma distorcida de um aparelho burocrático estatal. Pois a forma moderna “Estado” representa somente o reverso, a condição estrutural e a garantia do “privado” capitalista; o Estado não pode, por natureza, assumir a forma de uma “associação livre”. A administração pública de coisas permanece assim nacionalmente limitada, burocraticamente repressiva, autoritária e ligada às leis fetichistas da produção de mercadorias. Por isso os serviços públicos assumem a mesma forma-dinheiro que a produção de mercadorias para o mercado. Ainda assim não se trata de preços de mercado, mas somente de tarifas; algumas infra-estruturas até são oferecidas gratuitamente. O Estado financia esses serviços e agregados de coisas somente para uma pequena parte, por meio de tarifas cobradas dos cidadãos; no essencial, eles são subvencionados com a taxação dos rendimentos capitalistas (salários e lucros). Desse modo, a administração pública de coisas permanece ligada ao processo de valorização do capital.

A PRIVATIZAÇÃO DO PÚBLICO

Por um período de mais de cem anos, os sectores do serviço público e da infra-estrutura social foram reconhecidos em toda parte como o necessário suporte, amortecimento e superação de crises do processo do mercado. Nas últimas duas décadas, porém, impôs-se no mundo inteiro uma política que, exactamente às avessas, resulta na privatização de todos os recursos administrados pelo Estado e dos serviços públicos. De modo algum essa política de privatização é defendida apenas por partidos e governos explicitamente neoliberais; há muito ela prepondera em todos os partidos. Isso indica que não se trata aqui só de ideologia, mas de um problema de crise real. Seguramente, desempenha um papel nisso o facto de a arrecadação pública de impostos retroceder com rapidez por conta da globalização do capital. Os Estados, as Províncias e as comunas super-endividadas em todo o mundo tornaram-se factores de crise económica, ao invés de poderem ser activos como factores de superação da crise. Uma vez delapidadas as “pratas” dos sistemas socialmente administrados, as “mãos públicas” acabam por assemelhar-se fatalmente às massas de vítimas da velhice indigente, que nas regiões críticas do globo vendem nos mercados de segunda mão a mobília e até a roupa para poderem sobreviver. Porém o problema reside ainda mais no fundo. No âmago, trata-se de uma crise do próprio capital, que, sob as condições da terceira revolução industrial, esbarra nos limites absolutos do processo real de valorização. Embora ele deva expandir-se eternamente, pela sua própria lógica, ele encontra cada vez menos condições para tal, nas suas próprias bases. Daí resulta um duplo acto de desespero, uma fuga para a frente: por um lado, surge uma pressão assustadora para ocupar ainda os últimos recursos gratuitos da natureza, por fazer até mesmo da “natureza interna” do ser humano, da sua alma, da sua sexualidade, do seu sono o terreno directo da valorização do capital e, com isso, da propriedade privada. Por outro, as infraestruturas públicas de propriedade do Estado devem ser geridas, também, por sectores do capitalismo privado.

SOCIEDADE AUTO-CANIBALÍSTICA

Mas essa privatização total do mundo mostra definitivamente o absurdo da modernidade; a sociedade capitalista torna-se auto-canibalística. A base natural da sociedade é destruída com velocidade crescente; a política de diminuição dos custos e a terceirização a todo o preço arruinam a base material das infraestruturas, o conjunto organizador e, com isso, o valor de uso necessário. Há tempos é conhecido o caso desastroso das ferrovias e, de modo geral, dos meios de transporte, outrora públicos: quanto mais privados, tanto mais deteriorados e mais perigosos para a comunidade. O mesmo quadro se constata nas telecomunicações, nos correios etc. Quem hoje precisa, com uma mudança de casa, mandar instalar um telefone novo passa por incumprimento de prazos, confusão de competências entre as instâncias “terceirizadas” e técnicos pseudo-autónomos e praguejantes. O correio alemão, que se transformou num consórcio e global playeransioso por sua capitalização nas Bolsas, em breve distribuirá cartas na Califórnia ou na China; em troca, o serviço mais simples de entrega mal continua a funcionar internamente. Que prodígio sectores inteiros de actividade serem ajustadas a salários baixos, as zonas de entrega de poucos carteiros dobradas e triplicadas, e as filiais, extremamente desguarnecidas! As estações de correio ou de caminho de ferro transformam-se em quilómetros cintilantes de lojas estranhas à sua alçada, enquanto a qualidade do serviço próprio decai. Quanto mais estilizados os escritórios, tanto mais miserável o serviço.

PRIVATIZAÇÃO  —>   AUMENTO DE PREÇOS

Apesar de todas as promessas, a privatização significa cedo ou tarde não só a piora mas também o aumento drástico de preços. Porque és pobre, tens de morrer mais cedo: com a privatização crescente dos serviços de saúde, essa velha sabedoria popular recebe novas honras mesmo nos países industriais mais ricos. A política de privatização não dá trégua nem sequer às necessidades humanas mais elementares. Na Alemanha, as casas de banho das estações de combóio passaram a ser recentemente controladas por uma empresa transnacional chamada “McClean”, que cobra pela utilização de um mictório tanto como por uma hora de estacionamento no centro da cidade. Portanto agora já se diz: se és pobre, tens de mijar nas calças ou aliviar-te ilegalmente!

A privatização do abastecimento de água na cidade boliviana de Cochabamba, que, por determinação do Banco Mundial, foi vendida a uma “empresa de água” norte-americana, mostra o que ainda nos espera. Em poucas semanas, os preços foram elevados a tal ponto que muitas famílias tiveram de pagar até um terço dos seus rendimentos pela água diária. Juntar água da chuva para beber foi declarado ilegal, e ao protesto respondeu-se com o envio de tropas. Logo também o sol não brilhará de graça. E quando virá a privatização do ar que se respira? O resultado é previsível: nada funcionará mais, e ninguém poderá pagar. Nesse caso, o capitalismo terá de fechar tanto a natureza como a sociedade humana por “escassez de rentabilidade” e abrir uma outra.
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[*] Filósofo alemão. O original deste artigo encontra-se em http://www.krisis.org (“Die Privatisierung der Welt”). Tradução de Luís Repa publicada na Folha de São Paulo de 14/Jul/02.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info

 

Redação

5 Comentários

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  1. Ceres

    ALL THESE WORLDS ARE YOURS EXCEPT CERES ATTEMPT NO LANDING THERE USE THEM TOGETHER USE THEM IN PEACE

     

    Há duas luzes em Ceres que a NASA não consegue explicar

    Os dois pontos de luz são visíveis na fotografia do planeta anão enviada pela sonda Dawn

    Os dois pontos de luz são visíveis na fotografia do planeta anão enviada pela sonda DawnFotografia © NASA

    À medida que a sonda Dawn se aproxima, o planeta anão torna-se cada vez mais enigmático. Na última foto enviada, surgem dois pontos de luz que os cientistas não sabem identificar.

    A sonda Dawn, em missão de descoberta ao planeta anão Ceres, está cada vez mais próxima do seu alvo. Mas, à medida que a distância diminui, aumenta o mistério em torno de Ceres, o maior objeto da cintura de asteroides entre as órbitas de Marte e Júpiter. A sua composição e características geológicas são desconhecidas e os cientistas da NASA esperam conseguir obter informações mais precisas quando a Dawn entrar em órbita de Ceres, no próximo dia 6 de março.

    Mas, por agora, as fotografias enviadas pela sonda estão a intrigar os investigadores, que não conseguem perceber o que lhes tem sido dado a ver. A última imagem de Ceres, que foi capturada pela Dawn no dia 19 de fevereiro a cerca de 46 mil quilómetros de distância do planeta anão, mostra dois pontos brilhantes, um deles de maior dimensão, que os cientistas não são capazes de identificar.

    Em comunicado divulgado pela NASA, o investigador responsável pela câmara da sonda, Andreas Nathues, explicou que “o ponto mais brilhante continua a ser demasiado pequeno para ser captado com alguma resolução, mas apesar do seu tamanho brilha mais do que qualquer outro objeto visível em Ceres. Isto é realmente inesperado e permanece um mistério para nós”.

    Inicialmente, a câmara da Dawn detetava apenas uma luz brilhante, surgindo depois um novo foco de luz, mais pequeno, bem ao lado do primeiro. Para Chris Russel, investigador principal para a missão da Dawn, este facto pode indicar que ambos os pontos têm origem vulcânica, mas é necessário esperar por imagens com melhor resolução que permitam confirmar – ou não – estas interpretações geológicas.

     

  2. O filósofo está certo.

    O filósofo está certo. Gêneros de primeira necessidade não poderiam jamais ser privatizados. Há que se deixar as privatizações para carros, eletrodomésticos, eletrônicos e demais bens cuja carência não compromete a sobrevivência humana.

    “… A política de privatização não dá trégua nem sequer às necessidades humanas mais elementares..”

     “A privatização do abastecimento de água na cidade boliviana de Cochabamba, que, por determinação do Banco Mundial, foi vendida a uma “empresa de água” norte-americana, mostra o que ainda nos espera. Em poucas semanas, os preços foram elevados a tal ponto que muitas famílias tiveram de pagar até um terço dos seus rendimentos pela água diária. Juntar água da chuva para beber foi declarado ilegal, e ao protesto respondeu-se com o envio de tropas. Logo também o sol não brilhará de graça. E quando virá a privatização do ar que se respira? …”

  3. “A mais antiga ocupação dessa

    “A mais antiga ocupação dessa espécie é a da terra. A terra em si não é naturalmente o resultado da actividade produtiva humana. Por isso também teria de ser, em si, de livre acesso. Quando muito, a terra já transformada, lavrada e “cultivada” poderia estar submetida aos mecanismos sociais; e, nesse caso, teria de se tornar propriedade daqueles indivíduos que a cultivaram. “

     

    Concordo. Quando os portugueses cá chegaram várias tribos indígenas praticavam agricultura de subsistência e, em razão do nomadismo, não conheciam a propriedade da terra. Cada aldeamento, por razões óbvias, defendia suas roças como se fossem suas, mas não lhes parecia natural ou racional defender a própria terra em que estavam. Até porque eles inevitavelmente se mudariam assim que fosse necessário, quer porque outra tribo havia chegado à região para competir pelos mesmos recursos, quer porque os referidos recursos já haviam começado a se tornar escassos. 

    Quem cercou a terra e disse “esta terra é minha” foram os colonos. Quando perceberam o que aquilo significava: exclusão violenta da própria terra, os indígenas já estavam sendo massacrados para que mais terras fossem retiradas do universo comum e incorporadas à lógica da propriedade privada. O conceito natural de direito dos índios foi substituído pelo artificialismo da propriedade. O resultado é a tragédia nacional em que seguimos existindo. 

  4. “quanto vale a terra?”

    Este excelente artigo pode ser confrontado com o documentário chamado “QUANTO VALE A TERRA”  produzido por Bullseye Productions da Zodiac Media Company, feito em 2012, em que se pretende precificar todo o recurso da terra: minérios, água, recursos de toda ordem. Se houver lógica, pretende-se, sim, controlar toda a terra e vender fraçoes dela para quem tiver recursos.

  5. O Filósofo da economia

    Robert Kurz, para mim uma das figuras filosóficas mais importantes da modernidade, com respeito a suas análises economicas e sociais.

     

    Mais um artigo brilhante!

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