Alemanha abandona o austericidio fiscal, por Luis Nassif

100 bilhões de euros foram utilizados para recapitalizar e comparar participações em empresas afetadas pelo coronavirus.

A Alemanha é a terra de Kant. O Brasil, dos cabeças de planilha, das modas que custam a sair de moda. Cria-se um discurso da austeridade fiscal. Mostram-se anos e anos de resultados pífios, permitindo a qualquer analista racional no mínimo duvidar das relações mágicas entre austeridade fiscal – pró-cíclica, pois aplicada em períodos de recessão – e os resultados alcançados.

Mas não adianta. Nas televisões, analistas-sela, deixando-se cavalgar pelo mercado financeiro, repetindo sempre a mesma cantilena, de que se não houver mais cortes, os investidores não recuperarão a confiança no Brasil. São convicções férreas, sólidas, invulneráveis a qualquer ataque da lógica. Diz o cara de mercado, repete o jornalista dito especializado, repicam os apresentadores e se torna verdade final. Mesmo com a pandemia correndo solta e as previsões de desempenho do PIB em desabalada queda.

No mundo real, a falta de perspectiva de recuperação da economia afasta cada vez mais os investidores internos e externos.

Vamos conferir o que se passa na Alemanha, o centro gravitacional da austeridade fiscal, país que, com sua influência na União Europeia, quase destruiu economias como a Espanha, Grécia e Itália.

Recentemente, o campeão alemão da austeridade, Jörg Kukies, um ex-banqueiro do Goldman Sachs, vice-ministro das Finanças nos últimos dois anos, foi o principal inspirador da proposta de levantar € 500 bilhões através de dívida comum da União Europeia, entregando como doação para os países mais afetados pelo coronavirus. A lógica é clara: a UE não se consolidará se não for isonomia entre as diversas economias.

A Alemanha, e a União Europeia, atravessaram dois mandatos austericidas, de Wolfgang Schauble e Olaf Scholz. Mas, segundo reportagem do Financial TImes, antes da pandemia, em janeiro de 2019 já se estudava a flexibilização fiscal, de déficit zero. Scholz substituiu Ludger Schuknecht, seu economista-chefe, pelo social democrata Jakob von Weizsäcker,  social-democrata. A perda de dinamismo da economia europeia mostrava que a manutenção do rigor fiscal impediria qualquer recuperação.

Eclodindo a pandemia, Scholz autorizou novos empréstimos de 10 bilhões de euros na Alemanha, através de um corte inédito no imposto sobre valor agregado. No plano europeu, Scholz montou a proposta franco-alemã, com o francês Bruno Le Maire, de 500 bilhões de euros em medidas de emergência na zona do euro. Desse total,  100 bilhões de euros foram utilizados para recapitalizar e comparar participações em empresas afetadas pelo coronavirus.

Obviamente, é um dinheiro com contapartidas. A principal é de países garantirem compromissos com a racionalidade fiscal após passar a crise.

Essa revisão da ortodoxia econômica está se dando em todas as economias. O Brasil continua preso a uma falsa ortodoxia. Resta o consolo de que o acirramento da crise política deverá acelerar as medidas para tirar Bolsonaro.

 

Luis Nassif

8 Comentários

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  1. Caro Nassif,
    A alemanha, internamente, nunca foi austericida. Ela simplesmente tinha superavits fiscais e externos porque é a economia industrial vencedora da Europa depois da União Europeia, como a China é a vencedora mundial. Isso dá à Alemanha uma imensa receita tributária interna, além de superávits comerciais, permitindo-a estar sempre superavitária.
    Como nação mais forte da UE, ela impunha aos outros países perdedores, principalmente os latinos do sul (os morenos “preguiçosos”) uma austeridade que eles não eram capazes de manter. Mas internamente, ela sempre fez política industrial e desmantelou de forma mais lenta seu estado de bem estar social, pois tinha dinheiro para isso.
    Agora, com a crise, a Alemnha não titubeia em injetar dinheiro em seu maior ativo, a indústria, assim como os EUA, Japão, China e Coreia do Sul, países vencedores da competição capitalista. Eles são todos pragmáticos e keynesianos internamente, mas impõe austericídio (por meio da Troika e do FMI) aos perdedores, para que eles se endividem para comprar seus produtos, mas ainda tenham condições de rolar as dívidas sem dar calote.

    1. Perfeito. Só país com elite de quinta leva ideologias a ferro e fogo e acabam levando chumbo. País com elite de verdade é pragmática, faz o que for necessário pro bem estar do seu povo – mesmo que isso signifique sacrificar um outro país. Ainda mais num país cuja elite aprendeu a um preço altíssimo que se vc deixar seu povo ao Deus dará (como fez a República de Weimar) o povo acabará abraçando o diabo.

      1. Há um engano crasso aí. O Wilton falou: “e desmantelou de forma mais lenta seu estado de bem estar social.”. Mas, amigos, isso é um pecado capital que destrói qualquer coisa que a Alemanha tenha feito. Em outras palavras, quem está se ferrando é o povão da Alemanha, que como dizem os americanos vivem hoje de “holerite a holerite”, quer dizer, não sobra nada no fim do mês. Estou bem ao par disso pois viajei à Alemanha bastante nestes últimos anos. Antigamente o alemão não comprava plano de saúde — a saúde fazia parte do pacote de Estado de Bem Estar Social alemão. Hoje um plano simples do governo custa 500 euros. Os sálarios estão super achatados, aí na faixa de 2500 euros (para operários horistas; terceirizados podem ganhar ainda menos). Tudo isso é basicamente culpa do CDU (Partido Democrata Cristão Alemão), de direita, que domina a política alemã desde 1976. Em outras palavras a dona Merkel pode ter deixado a Alemanha em boas condições, no entanto, o povo alemão hoje está numa saia justa danada.

      1. Penso que a pergunta do Evandro seja para mim. Até uma certa época o alemão só pagava o INSS deles. A saúde estava incluida no sistema de bem estar social. Quer dizer quando o sujeito, ou alguém de sua família, tinha que ir ao médico ou ao hospital ele não pagava nada. Agora além do INSS normal, o cidadão tem que comprar um plano de saúde, senão ninguém da família consegue se tratar de nada. Mas na Aleemanha o próprio governo tem planos de saúde para vender. E o sujeito inicialmente tem, necessariamente, que comprar o plano do governo. Se o cara tem muita grana depois ele pode comprar um plano particular. Na verdade o CDU, antes com o Kohl e agora com a Merkel, está cobrando extra para que o povo alemão vá ao médico.

        O que para mim é um mistério insondável é porque os alemães votam no CDU, um partido de direita que está ferrando eles, e não vota no SPD, o partido
        socialista de centro-esquerda, o qual garantiria um Estado de Bem Estar Social pleno.

  2. Kant diz que, para que se garanta a liberdade individual (autonomia do indivíduo), uma iniciativa privada, digamos assim, é necessário que haja a garantia outorgada pela liberdade social (o povo). Ele concorda com Rousseau, sobre a República (o Estado democrático) ser a indutora da liberdade. Isso está no §46 da Doutrina do Direito e no item 49 dos Os Princípios de Direito Público, onde trata da autonomia do Estado (página 173; http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/0139_Bk.pdf).

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