Cesar Locatelli
César Locatelli, economista, doutorando em Economia Política Mundial pela UFABC. Jornalista independente desde 2015.
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Belluzzo: o Brasil é um Ford bigode, por César Locatelli

Luiz Gonzaga Belluzzo ministrou a última aula do curso Decifrando o economês e desmontando o mito da austeridade fiscal, promovido pelo Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé e buscou mostrar alternativas sustentáveis e inclusivas para a economia brasileira.

Créditos da foto: 1908 – O Modelo T começou a ser vendido no Brasil. Logo caiu no gosto popular e ganhou o carinhoso apelido de Ford Bigode, devido às duas alavancas na barra de direção. (Reprodução ford.com.br)

da Carta Capital

Belluzzo: o Brasil é um Ford bigode

“Você não tinha rentismo na China, para ganhar tinha que investir na produção”

por César Locatelli

O simpático carrinho, usado pelo professor Belluzzo para definir o estágio atual da economia brasileira, era o que havia de mais avançado no início do século XX. Há mais de 100 anos, portanto. Sua afirmação completa, no entanto, foi que “o Brasil é um Ford bigode dirigido por um motorista bêbado”. Simbolizando não somente a regressão do desenvolvimento brasileiro, mas a condução das políticas econômicas e o lugar onde o debate econômico no país está enclausurado: completamente fora do que acontece no mundo.

Luiz Gonzaga Belluzzo ministrou a última aula do curso Decifrando o economês e desmontando o mito da austeridade fiscal, promovido pelo Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé e buscou mostrar alternativas sustentáveis e inclusivas para a economia brasileira.

Para exemplificar e mostrar a guinada do governo dos Estados Unidos na direção de um protagonismo sensivelmente maior do Estado, ele citou um importante relatório divulgado há poucos dias, pelo governo norte-americano, com a tarefa de recomendar ações para “construir cadeias de suprimentos resilientes” no país.

A pandemia deixou evidente a dependência de produtos finais e intermediários manufaturados no exterior. O relatório é resultado de uma ordem executiva de Biden que determinou a análise de cadeias críticas para identificar riscos, encaminhar soluções para as vulnerabilidades e desenvolver uma estratégia para promover a resiliência.

Em suas 250 páginas, o relatório, não por acaso, menciona a China mais de 400 vezes, aclarando o incômodo com a escalada chinesa. O relatório resume seus resultados:

“Dividimos as recomendações em seis categorias:

1) reconstruir nossas capacidades de produção e inovação;

2) apoiar o desenvolvimento de mercados com alto padrão de produção, de trabalho e de qualidade do produto;

3) alavancar o papel do governo como participante do mercado;

4) fortalecer as regras de comércio internacional, incluindo mecanismos de fiscalização do comércio;

5) trabalhar com aliados e parceiros para diminuir vulnerabilidades nas cadeias de abastecimento globais; e

6) estabelecer parceria com a indústria para tomar medidas imediatas para lidar com a escassez existente.

Se por um lado os EUA parecem caminhar para uma decisiva intervenção do Estado para a correção da rota neoliberal dos últimos 40 anos, os governantes brasileiros, assim como a mídia, não se empenham em discutir nossa regressão a um país meramente exportador de bens agrícolas e primários, extremamente dependente da importação, até mesmo de fármacos básicos.

Belluzzo se revela aflito com o grau de desorganização do esquema institucional que garantiu nosso crescimento e desenvolvimento dos anos 1930 aos anos 1980. “Houve uma continuada desarticulação das políticas que garantiram o crescimento brasileiro de 7% ao ano, destruições estruturais na forma que organizávamos o crescimento. Havia um ecossistema composto pelo setor público, pelo setor privado, por bancos públicos”.

“A participação da indústria de transformação no PIB brasileiro caiu de 35% para 11% hoje. Perdemos indústrias de peças e componentes. Perdemos até empresas estrangeiras de bens de capital que vinham de diversos países do mundo. Tínhamos um sistema industrial integrado e o perdemos”, complementa ele.

No setor eletroeletrônico nosso retrocesso é elevado ao quadrado: além da destruição da indústria que tínhamos, não acompanhamos o salto tecnológico dos anos recentes. A imagem do “fordinho” de 1908 volta à mente: “a regressão da economia brasileira foi dolorosa, estávamos no estado da arte e hoje temos deficiências graves de articulação entre os setores. E a preocupação revelada por essa administração é privatizar, enquanto o mundo tenta restabelecer as relações entre o setor público e o setor privado com planejamento, com política industrial”.

Voltando ao relatório do governo norte-americano, Belluzo reforça nosso descompasso com as transformações por que passa o mundo. “O documento da Casa Branca foca quatro cadeias críticas: semicondutores, baterias de alta capacidade, minerais e matéria primas críticas e produtos farmacêuticos e insumos farmacêuticos ativos.”

Além do impacto causado pela incapacidade norte-americana de atender a demanda provocada pela pandemia por respiradores, equipamentos de proteção individual etc., a administração Biden-Harris inquieta-se com a China, que, segundo o relatório:

– refina 60% do lítio mundial e 80% do cobalto, essenciais para baterias de alta capacidade, por exemplo para carros elétricos;

– controla 55% da minas de terras raras e 80% do seu refino;

– detém mais de 75% da capacidade fabricação de baterias avançadas; e

– compete com a Índia pelo mercado norte-americano de remédios, mas é a origem de 70% da importação indiana de insumos farmacêuticos ativos.

O protagonismo dos rentistas, pessoas cuja renda provém exclusivamente de aplicações financeiras, na determinação das políticas econômicas brasileiras está na origem do nosso atraso: “no Brasil, o rentismo quer continuar mandando. Isso é a terceira via. A afirmação dos economistas conservadores brasileiros de que a indústria não tem importância é incompatível com um país de mais de 210 milhões de habitantes”.

Belluzzo acrescenta a crítica de que Guedes não menciona a indústria e, ainda, reduz tarifas de importação para, pretensamente, “oxigenar” a indústria e aumentar a produtividade: “aumentar a produtividade é uma expressão vazia, não se faz sem avanço tecnológico.” Ou como dia o relatório da Casa Branca: “quando a manufatura ruma para o exterior, a inovação a segue”.

“O foco na maximização dos retornos de capital de curto prazo levou ao subinvestimento do setor privado em buscar a resiliência de longo prazo. Por exemplo, as empresas no Índice S&P 500 distribuíram 91 por cento do lucro líquido aos acionistas em recompras de ações ou dividendos entre 2009 e 2018. Isso significou um declínio da parcela da receita corporativa destinada a pesquisa e desenvolvimento, novas instalações ou processos de produção resilientes”, afirma o relatório norte-americano.

Belluzo criticou duramente os economistas ligados ao setor financeiro, praticamente os únicos a frequentar com assiduidade os meios de comunicação corporativos brasileiros: “o pessoal da Faria Lima não entende nada, eles são de baixo nível mesmo”. E completa: “a discussão no Brasil é deplorável, só se discute a gestão de curto prazo”.

“Eu vivi a época em que havia a expectativa que o país ia dar certo. Tínhamos uma classe dirigente comprometida com o desenvolvimento do país. Depois da crise da dívida isso foi se dissolvendo. O Plano Real, celebrado pela queda da inflação, marca o começo da destruição da indústria. Impossível sobreviver com uma taxa de juros real de 22% ao ano.”

Lembrando a “política de fabricar o fabricante”, a que Gramsci se referia, ele lamenta que os empresários produzidos por Getúlio Vargas tenham desaparecido: “nosso processo liberal e tão atrasado”. Ele brinca que a letra “i”, de FIESP, agora quer dizer importadores: “o Brasil perdeu o bonde e a China montou no bonde”.

“Você não tinha rentismo na China, para ganhar tinha que investir na produção”.

Cesar Locatelli

César Locatelli, economista, doutorando em Economia Política Mundial pela UFABC. Jornalista independente desde 2015.

1 Comentário

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  1. E este governo (até) fechou a única industria de semicondutores do país. A CEITEC, em Porto Alegre, que recém estava começando a produzir.

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