Brasil na contramão: Aposentadoria capitalizada fracassou no Chile e no mundo

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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"O experimento da privatização das pensões fracassou no mundo", escreve o relatório da OIT lançado este ano e que o GGN detalha neste especial

Foto: Patricia Faermann/GGN

Jornal GGN – A exemplo do que ocorre hoje no Brasil, no Chile da ditadura Pinochet (1973-1990), os defensores do sistema neoliberal usavam diversos argumentos para sustentar a aparente necessidade de uma mudança no sistema de Previdência do país: a quebra das contas públicas, o suposto déficit da União, o envelhecimento da população, a insustentabilidade do modelo solidário, entre outros. Como resultado, o Chile da atualidade convive com a pobreza dos idosos, porque as novas gerações já nasceram com o fim do conceito de que o empregador ou o Estado precisam aportar com a velhice dos trabalhadores, estes últimos tornando-se os únicos responsáveis pela quantia que conseguiram ou não economizar ao longo da vida.

O Chile foi pioneiro na criação do modelo neoliberal no último e mais delicado pilar da Segurança Social. E chegou a inspirar outros países, como vimos nas reportagens anteriores deste especial (aqui e aqui). Mas enquanto um relatório de 1994 do Banco Mundial publicitava e incentivava a capitalização da aposentadoria em todo o mundo, quando ainda não haviam números suficientes para comprovar a elogiada eficácia, passados 38 anos, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) precisou reescrever esta história com uma conclusão enfática: “o experimento da privatização das pensões fracassou”.

A publicação histórica foi divulgada neste ano pela OIT, lançada na Suíça, em versões em inglês e espanhol, e é uma recomendação direta aos governos “que tentam melhorar seus sistemas nacionais de pensões”. Trata-se de um profundo estudo de caso de todos os 30 países que reverteram total ou parcialmente seus modelos de repartição para os de contas individuais, começando pelo Chile em 1981, passando por outros 13 Estados na América Latina, 14 na Europa e Rússia e 2 no continente africano, até o ano de 2014. Como previsto, esses países contaram com o estimulo de organismos como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional (FMI), a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID) e de bancos. Desse total, até o ano passado, 18 tiveram que retornar ao sistema de repartição após perceberem o fracasso.

O Chile prévio ao golpe militar vivia a polarização política nas ruas e uma grande instabilidade econômica, cenários propícios não somente para a entrada da ditadura, como também para o estado de choque das mudanças econômicas dos neoliberais que haviam estudado na Universidade de Chicago, conforme vimos na reportagem “O falso milagre econômico: Chile, um exemplo do fracasso das capitalizações”.

Paulo Guedes foi considerado um Chicago Boy porque estudou na escola de Milton Friedman, o pai do neoliberalismo, em 1974, cerca de duas décadas depois que os primeiros estudantes de economia chilenos, e desembarcou em plena ditadura de Pinochet, aceitando uma cadeira na então censurada Universidade de Chile nos anos 80, quando os Chicago Boys chilenos comandavam a economia do país. Quase quatro décadas depois, o hoje ministro da Economia quer reproduzir o que viu nos dois anos que esteve no país, contrariando o que o relatório da OIT vem justamente mostrar.

E argumentos similares ao que hoje vemos no Brasil foram sustentados naqueles anos para a sequência de privatizações e a capitalização da Previdência. Especialistas ouvidos pelo GGN afirmam que o modelo anterior continha falhas e que precisava ser reestruturado, mas que era sustentável, o que não justificava a mudança para o sistema de contas individuais. “Funcionava com Caixas divididas pelas diferentes categorias de trabalho, como a Caixa do Cobre, a Caixa dos Empregados Públicos, etc, então não era completamente solidário. Era isso que faltava terminar e corrigir, porque a Segurança Social nos países da América Latina é um processo contínuo desde os anos 20. Era preciso concluir o seu desenvolvimento, e não destrui-lo”, apontou o economista Marco Kremerman.

De acordo com Andras Uthoff, economista, ex-diretor da CEPAL e integrante da Comissão Presidencial de Pensões, em 2016, foi todo um contexto que acompanhou as mudanças da época que foram responsáveis pelo aumento da pobreza e desigualdade no país. “A introdução dos seguros individuais de saúde e as contas individuais de poupança foram a forma que o modelo neoliberal chegou a afetar a Seguridade Social no Chile, saindo do Estado e passando a incorporar a gestão privada, do mercado. Isso estava ocorrendo em toda a economia, desde as privatizações das empresas públicas, eletricidade, água, em todas as partes.”

No caso específico da aposentadoria, uma das bandeiras de convencimento era que o então sistema de repartição solidário gerava um déficit orçamentário, o que depois se provou o contrário. “Os defensores das Administradoras de Fundos de Pensão (AFPs) levantaram o slogan de que o sistema antigo estava a ponto de quebrar, mas os estudos que existem daquele período davam conta de que não era assim, porque todas as ramas da Seguridade Social tinham superavit e as pensões também”, narrou Kremerman, que é também pesquisador da Fundação Sol.

A Organização Internacional do Trabalho revelou que foi justamente o modelo capitalizado que gerou grandes déficits fiscais aos países, pelos altos custos de transição. “A crise fiscal recém criada pela privatização das pensões era inaceitável para muitos governos, principalmente porque o principal motor das reformas de privatização em todos os países tinha sido a preocupação pelas pressões fiscais e a sustentabilidade financeira dos sistemas públicos. A privatização havia sido apresentada como o remédio para evitar uma ‘crise da Seguridade Social’ e para garantir um financiamento futuro mais sustentável dos sistemas de pensões”, aponta um trecho do estudo.

Estes custos, assinala o documento, haviam sido “gravemente subestimados” nos países que empreenderam as reformas:

“Se fazem essa reforma no Brasil será muito caro. Porque tem um custo de transição que significa pagar um deficit previdenciário que nós ainda estamos pagando. A conclusão é que se gastou muito dinheiro em implementar algo que não serve”, apontou Uthoff.

Ao longo de dois meses de cobertura especial no Chile, o GGN identificou nas mais de dez entrevistas realizadas junto a especialistas da área e aos próprios aposentados que a mudança na forma de se pagar as pensões no país significou uma transformação cultural na maneira de lidar com o tema, quando se aposentador passou a ser uma resposta do esforço individual dos trabalhadores e deixou de ser Segurança Social. E essa conclusão ultrapassa o fato de empresas privadas serem as controladoras das cotizações, gerando lucros próprios para investimentos, como mostramos na reportagem “A quem interessa uma aposentadoria capitalizada?”, mas por duas características base do sistema capitalizado: o fim do aporte tripartite e o mecanismo de contas individuais de poupança.

“A rigor, as AFP geram rentabilidade com os aportes, que apesar de vir diminuindo, desde o ano 1981 teve um histórico promédio de quase 8% ao ano real sobre a inflação, o que não é ruim. Mas não funciona. Por que? O problema é que organizar um sistema de pensões exclusivamente em contas individuais fracassou, porque que à metade dos aposentados se entrega uma taxa de reposição abaixo dos 20%, 15%, 10% do salário é um desastre. E o tema central aqui não é quem administra, se o Estado ou não, mas como se administra. Por outro lado, se o Estado administra reparto, ai muda a situação”, explicou Kremerman.

O economista ressaltou que a aposentadoria acompanha o contexto laboral de um país. Dessa forma, o desemprego, as interrupções, as condições de trabalho, entre outros fatores, vão influenciar, mas não podem ser justificativa para explicar o fracasso. “Porque não é o país que tem que se adaptar ao modelo, ao contrário. No Chile e América Latina, efetivamente, há muitas pessoas que não têm 30, 35 anos de cotização, há muita informalidade, empregos instáveis, mas é o sistema que tem que se adaptar à realidade latino-americana.”

E inclusive nos casos aonde houve uma contribuição efetiva, acima dos 30 anos de trabalho, a porcentagem da taxa de reposição recebida pelos aposentados foi baixa. Estes dados obtidos pelo GGN com aposentados foi confirmado com números da Superintendência de Pensões: a maioria dos que cotizaram entre 30 e 35 anos recebeu menos de um salário mínimo. E é neste ponto que o caráter capitalizado influencia, porque o quanto um aposentado vai receber depende diretamente da rentabilidade obtida pela AFP no mercado de investimentos.

A Fundação Sol, da qual Kremerman é um dos pesquisadores, realizou um estudo calculando que se aumentasse a contribuição mensal dos trabalhadores ao sistema, subindo de 12,8% para 18,4%, que é o promédio dos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) –outro dos argumentos dos defensores –, os que se aposentassem em 40 anos mais receberiam o mesmo que os atuais aposentados, justamente pelo efeito da queda da rentabilidade. “Porque por cada ponto menos de rentabilidade que a AFP entrega à tua poupança, a pensão diminui 20%”, disse o especialista. Assim, a tendência é ainda pior, porque o lucro desse investimento vem diminuindo ano a ano.

E ao se tratar de mercado, o sistema de Previdência capitalizado gera ainda outro problema: a exigência de que os aposentados entendam de finanças e investimentos.

“Eu, como trabalhador, não tenho direito a saber que pensão vou receber, o único que sei é que tenho a liberdade de colocar os meus 10% em uma AFP, em outra, em um tipo de fundo ou outro, mas eu nunca sei quanto vou receber ou se vão me entregar alguma prestação de algum nível. Isso se chama sistema de contribuição definido: o único que sei quando chegar aos 65 anos, se é que me entregaram bem a informação, é quanta economia consegui. E como estamos projetando, ao futuro, uma taxa de interesse que não é de 8%, mas de 4%, significa que o preço de comprar uma pensão encarece e, ainda, com o aumento da expectativa de vida, menor será a aposentadoria”, afirmou Andras Uthoff.

“É muito difícil de entender o sistema, quanto dinheiro tenho que ter para tirar uma boa pensão, em qual tipo de fundo tenho que investir, no fundo A que tem maior risco, até o E, mais conservador, de menor risco. Então, a pessoa tem que se transformar em um especialista financeiro, como trabalhador, para saber como conseguir um pouco mais”, disse Marco Kremerman. “Assim, vão transformar os brasileiros em consumidores, em um mercado aonde são ignorantes, não de maneira pejorativa, mas porque têm total incerteza do que podem ou não podem fazer, o que desmente essa ‘liberdade’ de tomar decisões, porque não existem as condições para isso”, completou Uthoff.

Nesse sentido também aponta o documento da OIT, que entre as “lições passadas três décadas da privatização das pensões”, na página 21, conclui: “na prática, a privatização não gerou os resultados esperados. As taxas de cobertura se estancaram ou diminuíram, os níveis de prestações se deterioraram e as desigualdades de gênero e de ingressos se agravaram, o que fez com que as reformas fossem muito impopulares. O risco de flutuações nos mercados financeiros se transladou para os indivíduos. (…) As funções de regulação e supervisão foram capturadas pelos mesmos grupos econômicos responsáveis pela gestão dos fundos de pensão, o que criou um grave conflito de interesses, além disso, o setor de seguros privados, que na última instância se beneficia das economias previdenciárias, avançou para a concentração.”

Por outro lado, quando se compara com o sistema de repartição solidário, que funcionava no Chile antes da ditadura e que hoje vigora no Brasil, um outro estudo também materializou em números a eficácia de um sobre o outro: segundo Kremerman, com a mesma quantia que manejam as AFPs –nos últimos 30 anos foram mais de 100 bilhões de pesos e gastos somente 40 bilhões com as aposentadorias–, o sistema solidário poderia duplicar o que se paga hoje em pensões e ainda deter uma reserva a título de mudanças demográficas.

“Esse é o problema que temos no Chile, há dogmáticos que pensam que se pode resolver todos os problemas dentro do mercado e não se dão conta que as estruturas do mercado têm fatores limitantes que impedem avanços”, resumiu Uthoff.

 

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No especial de hoje, disponibilizamos aos nossos leitores a íntegra do documento da OIT “A reversão da privatização das pensões: Reconstruindo Sistemas Públicos das pensões nos países da Europa Oriental e América Latina (2000-2018)“, publicado este ano:

OIT - La reversion de las privatizaciones pensiones

 

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Esta reportagem faz parte de uma campanha coletiva do GGN, pelo Catarse, sobre o sistema previdenciário no Chile. Acompanhe abaixo as demais publicações deste especial:

Especial: como a aliança entre liberais e militares na ditadura chilena mudou a Previdência

O falso milagre econômico: Chile, um exemplo do fracasso das capitalizações

Reuniões secretas revelam conflitos para Pinochet capitalizar a aposentadoria no Chile

Ditadura e desinformação: as promessas aos trabalhadores para capitalizar a Previdência no Chile

Quanto vale uma aposentadoria capitalizada: o exemplo do Chile

A introdução do neoliberalismo na Reforma da Previdência

A quem interessa uma aposentadoria capitalizada?

Quanto ganha o BTG com os aposentados no Chile e o fim do discurso do Banco Mundial

 

Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

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